Proibição de celulares nas escolas

Imagem: Alok Sharma
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Por FERNANDO LIONEL QUIROGA*

O que deve orientar a decisão não são tanto argumentos em favor ou contra as tecnologias, mas sobre os efeitos nocivos que elas têm produzido, cuja base científica é bastante expressiva a respeito

Políticas públicas sérias apoiam-se em fatos sociais, não em experiências locais, sejam elas exitosas ou não. O êxito e o fracasso, aliás, são sempre questões localizadas dentro de um contexto específico. Demandam reflexão e exercício de crítica, algo que se distancia da “febre histórica” e do entusiasmo que costuma acompanhar o fetiche da novidade.

O conceito de “fato social”, de Émile Durkheim, diz respeito aos modos de agir, pensar e sentir localizados fora do indivíduo, já que são impostos socialmente, de modo coercitivo, sobre eles. Daí a ingenuidade de esperar respostas individuais a tais problemas. Apoiar-se nelas implica não enxergar os sentidos sociais que orientam nossas trajetórias e determinam, parafraseando a formulação irônica de Pierre Bourdieu, nossa própria “escolha do destino”.

O anúncio recém-publicado pelo Ministério da Educação acerca do projeto de lei que prevê a proibição dos aparelhos celulares nas escolas é um sinal de que seu uso, no ambiente escolar, tem se tornado mais problemático do que exitoso. É o que apontam diversos estudos em várias regiões do planeta, que vem regulamentando ou mesmo proibindo seu uso na escola, como França, Espanha, Grécia, Dinamarca, Finlândia, Holanda, Itália, Suíça etc.

Nestes estudos, de modo genérico, não faltam exemplos dos efeitos perniciosos que estes aparelhos causam no desenvolvimento intelectual de crianças e adolescentes. Citamos alguns: o cyberbullying, a nomofobia (abreviação de no mobile phone phobia) ou medo extremo de ficar sem acesso ao celular ou a serviços digitais, como internet e redes sociais, o aumento da ansiedade, a precarização do sono, a desinformação, a dessubjetivação, a desinformação, a esmagadora predominância do uso para entretenimento, o hikomori (termo japonês usado para descrever pessoas, geralmente jovens, que se isolam socialmente por longos períodos muitas vezes vivendo reclusos em seus quartos ou casas e evitando qualquer tipo de interação presencial com a sociedade), a desintegração da memória, a fadiga cognitiva, dentre outros.

Um belo livro, rico em fontes de estudos sérios acerca de cada um destes aspectos é o do neurocientista francês Michel Desmurget – A fábrica de cretinos digitais.

Mas há outro problema, central, a meu ver, que é o mais profundo de todos eles. O que o uso intensivo do celular tem produzido (uso intensivo, aqui, é o que costuma-se chamar de “novo normal”) e que tem se apresentado como fato social, é a perda da capacidade de atenção.

O que o frenesi do uso do smartphone e ecrãs (telas) de modo geral tem produzido como efeito colateral ao entretenimento ininterrupto, é a depauperação da capacidade de atenção. Para isto é fundamental a compreensão do que é que estamos perdendo em troca do magnetismo presente das telas. Segundo o filósofo alemão Christoph Türcke, a atenção seria o ponto fulcral da constituição do próprio fundamento da humanidade, do homo sapiens tal como o conhecemos, de um processo de aproximadamente 300 mil anos de evolução.

Segundo o filósofo, “nos primórdios da humanidade (a atenção) estava entre as coisas mais difíceis. Era algo que não existia ainda em parte alguma na natureza. Apenas coletivamente podia entrar em andamento: quando a repetição compulsiva (termo cunhado por Freud em Além do princípio de prazer), ritualizada do horror vivido se direcionava a algo mais elevado – a um destinatário comum. Sua imaginação foi equivalente tanto à inauguração do espaço mental quanto à constituição da atenção humana”.

Foi por meio da reprodução do horror (os rituais de sacrifício) pela própria imaginação como “mecanismo de legítima defesa” que o homem conseguiu controlar o horror natural. Por meio da produção de uma descarga capaz de produzir um refúgio da experiência em face do horror. Foi por meio da busca pela redenção, do alívio contra tais experiências produzidas pela natureza: ameaças naturais, tempestades, catástrofes, invasões de tribos inimigas, etc. que teria se dado à hominização. “Buscava-se a redenção, encontrou-se a cultura”, escreve Christoph Türcke. A atenção, portanto, não pode ficar restrita ao conjunto de disposições sociais como civismo, solidariedade e empatia.

A atenção diz respeito ao berço de toda cultura. Trata-se do ponto decisivo que nos permitiu, após milênios de evolução, chegar até as civilizações modernas. Interessante é a ideia que Christoph Türcke recupera de Malebranche sobre a atenção. Segundo este, a atenção seria uma “oração natural”. Decorre da atenção o desenvolvimento da imaginação. A imaginação nasce do tédio profundo, do ócio, da contemplação desinteressada. É a partir desse aparente vazio, desse espaço intersticial e amorfo que a imaginação encontra sua verdadeira vocação.

Ora, o que ocorre na atmosfera digital é a captura total desta função. E, finalmente, chegamos à intencionalidade política desta condição, cuja principal característica é a desintegração da mentalidade. A alma é o último recurso natural a ser explorado pela selvageria capitalista. Mas essa é a mesma história desde a colonização pela Companhia de Jesus, alguém poderia observar. Sim e não. A diferença daquele para o modelo atual de colonização neoliberal movida pelas forças de um oligopólio avassalador e apocalíptico é que, ao invés de operar pelo método da inculcação, o faz através de algo que aqui chamamos de uma “descompressão cognitiva” como resultado da lógica behaviorista subjacente aos artefatos digitais.

Observados estes pontos, ainda que de modo grosseiramente resumidos, constatamos que as tecnologias digitais ultrapassam de longe o significado de “ferramentas” quando incorporadas ao ambiente escolar. Todavia, ainda que elas o sejam, e é preciso admitir seu enorme potencial em favor do ensino nas mais variadas áreas do conhecimento, deve-se olhar também para seus efeitos mais nocivos, como o cyberbullying, a depauperação da ética, a concorrência desleal de atenção entre conteúdos da escola e o maravilhoso mundo das redes sociais, etc. É preciso mudar de perspectiva para a compreensão do que quer que seja a noção de ferramentas.

Herbert Marcuse, no livro Tecnologias, guerra e fascismo, reflete sobre o uso das tecnologias, especialmente por meio da propaganda nazista e de técnicas de instauração do medo coletivo como elementos-chave para a formação de uma “nova mentalidade alemã”. Elas (as tecnologias) são, portanto, ferramentas. Mas são esmagadoramente ferramentas à serviço do capital. Daí que sua incorporação à sala de aula e à escola deve-se precaver contra a ingenuidade de tratá-las como ferramentas neutras.

Por último, é em razão da ambiguidade inerente às tecnologias que o projeto de lei que está em curso tende à polêmica. O momento exige um debate de natureza essencialmente ética. Não se trata de localizar o aspecto nuclear quanto ao uso ou não de celulares no espaço escolar, justamente porque não há núcleo: a ambiguidade é sua principal característica.

Neste sentido, a mensagem histórica que o tema nos provoca a pensar diz respeito a uma decisão digna de um dos célebres diálogos socráticos. “Deve-se ou não banir o celular no ambiente escolar?” – é uma dessas questões implicadas no enfrentamento, de um lado, da febre histórica que promove a disseminação desenfreada de tecnologias digitais em tantos espaços da vida quanto for possível e, de outro, da ideologia embutida por meio de algoritmos nas plataformas digitais.

O que deve orientar a decisão não são tanto argumentos em favor ou contra as tecnologias, mas sobre os efeitos nocivos que elas têm produzido, cuja base científica é bastante expressiva a respeito. O peso da decisão sugere uma reflexão sobre qual dos pratos da balança mais tem cedido para, a partir daí, e mesmo que para o atual momento isso signifique o afastamento total destes aparelhos no espaço escolar, tome-se a decisão balizada pela ética e pela ciência, e sobretudo orientada para a garantia do próprio futuro das novas gerações.

*Fernando Lionel Quiroga é professor de Fundamentos da Educação na Universidade Estadual de Goiás (UEG).


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