Que os mortos tenham direito de votar

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VLADIMIR SAFATLE*

Quando estivermos na cabine de votação, não estaremos sozinhos. Haverá 700 mil pessoas votando através de nosso gesto

“Que os mortos tenham direito de votar” é uma das mais belas passagens de Jacques Lacan. Trata-se do momento em que ele descobriu haver algo pior que a morte. Pior que a morte havia a morte da morte, havia o ato de matar a morte, ou seja, impedir que a morte pudesse ocorrer, com seu luto, com seu acolhimento simbólico, com seu dolo, com seu dever de memória. Nesse caso, era como se sujeitos fossem mortos pela segunda vez. Não só a morte física, mas uma ainda pior, ainda mais brutal: a morte simbólica.

O Brasil viu então o horror de um governo que lutava contra a vacinação de seu próprio povo, que zombava de suas mortes, que sabotava as tentativas da sociedade de se autodefender, que escondia números, que “desaparecia” corpos enquanto fazia de tudo para preservar os rendimentos da elite rentista, do sistema financeiro, dos empresários da corte. Um governo que matava a morte. O resultado foi inapelável: mesmo levando em conta apenas os números incertos que conseguimos levantar, descobrimos que tínhamos 3% da população mundial e 15% das mortes por Covid no mundo (5x mais).

No entanto, eis que eles continuam e, anos depois, ameaçam ser reeleitos. Uma reeleição que significaria jogar na vala comum todos os que morreram por irresponsabilidade e indiferença do Estado, deixar seus corpos sem sepultura apodrecendo a céu aberto. Corpos sem memória. Significaria o crime aterrador de esquecer e perdoar quem os matou, não uma, mas duas vezes. Os gregos têm uma bela tragédia, Antígona, a respeito do que deve (e esse “deve” está aí por rigor) ocorrer quando uma sociedade vê como possível matar duas vezes alguém. Ela deve desaparecer. Ela perdeu toda e qualquer substância ética, é só uma associação de “assassinos sem maldade e vítimas sem ódio”, como dizia Günther Anders.

Por isso, hoje não votarão apenas os vivos, votarão também os mortos. Ressurretos por um momento, eles segurarão a mão da insanidade como quem diz: “Nós não seremos mortos uma segunda vez”. E será essa ressureição dos mortos que salvará o que sobrou de nossa sociedade brasileira, que nos permitirá começar a construir outra sociedade a partir dos escombros dessa que já terminou. Nesses paradoxos tão estranhos quanto belos, quando uma sociedade se encontra no seu mais profundo perigo, são os mortos que nos salvam, é sua força de não se deixarem esquecer que preserva a abertura de nosso futuro.

Quando estivermos na cabine de votação, não estaremos sozinhos. Haverá 700 mil pessoas votando através de nosso gesto. Há momentos em que uma eleição é apenas uma eleição. E há momentos em que uma eleição é o gesto derradeiro de uma sociedade que usará da força de seus mortos para forçar as portas cerradas do futuro.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Sofia, filosofia e fenomenologia
Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro de Alexandre Kojève
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O humanismo de Edward Said
Por HOMERO SANTIAGO: Said sintetiza uma contradição fecunda que foi capaz de motivar a parte mais notável, mais combativa e mais atual de seu trabalho dentro e fora da academia
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES