Por DÉBORA MAZZA*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
“A ignorância de qualquer ser humano me diminui, e a habilitação de todo ser humano é um ganho comum de horizontes” (WILLIAMS, p. 42)
Acabo de ler o livro Raymond Williams & Educação, de Alexandro Henrique Paixão fruto de pesquisa realizada no Richard Burton Archives, da Universidade de Swansea, País de Gales, Reino Unido, que guarda papéis, planos de aula, cursos, cartas e cópias de artigos do período que trabalhou como professor de de adultos entre 1946 e 1961. Pergunto-me: – o que o autor tentou me dizer? – que pulsões mobilizaram sua escrita?
1.
O livro dialoga com um conjunto de outros textos produzidos por Alexandro Henrique Paixão e sua equipe de pesquisa e se propõe a cobrir uma lacuna relevante da vida e obra de Raymond Williams (1921-1988), o galês, grande historiador da Nova Esquerda britânica, referência na área dos Estudos Culturais, anticapitalista e socialista que enfrentou o problema da cultura nos contornos da teoria marxista, ou seja, “descrever como a base material – a esfera da produção e reprodução da vida – determina a superestrutura – a esfera da produção simbólica” (p. 16).
O conceito de “estrutura de sentimento” mirou escapar da visão mecanicista que ronda algumas formulações, entendendo por estrutura “a produção simbólica que se dá dentro dos limites impostos e das pressões exercidas pela esfera da produção”, e por sentimento “a produção de sentidos em determinado tempo histórico, seja pela produção artística, seja pela educação ou pelas formas de comunicação” (p. 17).
Raymond Williams foi um sobrevivente da classe trabalhadora britânica, da sociedade de classes capitalista, do sistema educacional excludente (aluno bolsista na Universidade de Cambridge, cursou graduação em literatura inglesa) e das frentes de batalha da Segunda Guerra Mundial.
Quando regressou da guerra, em 1945, se autoexilou empenhando-se por dirimir as desigualdades sociais e o sistema de ensino elitista resgatando os que ficaram de fora do processo educacional, dedicando-se à educação de adultos por meio de estratégias e práticas teórico-metodológica-educacionais que levassem a constituição de uma “cultura comum”, uma “estrutura de sentimento” compartilhada.
Seu primeiro trabalho profissional no sistema educacional britânico se deu como tutor na educação de adultos (1946) desenvolvendo ações educacionais extensionistas no Departamento Extramuros da Universidade de Oxford e na Workers´ Educational Association (WEA), até 1961. Nesta empreitada, produziu um repertório expressivo de aulas de literatura e crítica sociológica baseadas em um método chamado de “discussão”, atuando junto a trabalhadores-estudantes-adultos, empregados e desempregados, segundo uma perspectiva humanista.
A educação de adultos trabalhadores mirava uma sociedade mais educada, participativa e democrática e representava, para o autor, um “recurso de esperança” que poderia alavancar processos de reconstrução – material e simbólica, individual e coletiva.
Raymond Williams entendia que era preciso transformar a precariedade da vida comum da população britânica, do “populacho” e, para tanto, era necessário a elaboração de novas teorias da cultura e novos programas educacionais de inovação cultural voltados para educação de adultos (p. 25), dinamizando uma nova compreensão da sociedade.
2.
Indicava que a Revolução Industrial havia promovido “acontecimentos” (imprensa, literatura, alfabetização) que geravam possibilidades de se aprender em todos os lugares – dentro e fora da escola. No entanto, esses aparatos foram rapidamente subsumidos pela lógica capitalista, classista e mercadológica produzindo rebaixamento de horizontes e massificação de conteúdos voltados estritamente para treinar para o emprego.
Propunha a iniciação de uma formação humanística vinculada ao estudo da literatura em geral (Blake, Virgílio etc.), mobilizando a constituição de cidadãos mais educados e participativos por meio de um ambiente de educação democrática que promovesse a “discussão” de conteúdos disparadores de pensamentos e sentimentos comuns, experiências reais, interesses e necessidades, tomadas de posição adotando como ponto de partida a condição de trabalhadores-estudantes. Isso poderia produzir um sentimento de comunidade, uma “cultura comum”.
Os homens e as mulheres que frequentavam as aulas de Raymond Williams eram trabalhadores temporários da construção civil, do setor de serviços, da área do turismo – proletários com necessidades específicas de formação ligadas às suas ocupações (p. 28). Desta forma, os cursos objetivavam dotar os trabalhadores de saberes e experiências recolhidos da literatura e da crítica sociológica oferecendo-lhes formação humanista e recursos para a participação social.
Raymond Williams entendia que a condição de classe social promovia uma “cultura comum” na medida em que a “discussão” compartilhada de “categorias de interesses, experiências sociais, tradição e sistemas de valores” produzia um “acontecimento” – mediado por uma formação humanista da classe trabalhadora – e “uma nova versão das relações de poder” (p. 29)
Defendia que a “cultura comum”, “o sentimento de comunidade”, era a base de reconstrução da sociedade britânica democrática assentada na dobradiça educação e comunicação, partindo de uma “cultura ordinária, não extraordinária” (p. 41). Apontava que a difusão dos meios de informação, como televisão, rádio, revistas não garantiam o desenvolvimento da “capacidade de julgar, criticar, compreender “ e poderiam se restringir a conquistar “simples condições básicas de direito, ética, bem-estar e emprego” (p. 41)
3.
As tragédias do século XX, as conquistas e as derrotas do pós-guerra, produziram lugares estranhos, pessoas cindidas, “sobreviventes, sem autonomia e unidade” (p. 44), pois o avanço dos meios de comunicação acarretou, paradoxalmente, o desencontro comunicativo entre as pessoas. O desafio era, portanto, o de reabilitar a experiência de comunicar coisas habituais porque “a ignorância de qualquer ser humano me diminui, e a habilitação de todo ser humano é um ganho comum de horizontes” (WILLIAMS, p.43-44).
Nesse empenho, Raymond Williams dialogou com a nova esquerda, o partido socialista, o partido trabalhista, o partido conservador e os sindicatos; vislumbrou que a medida para o futuro não acessava desejos de grandes rupturas, mas encaminhamentos de problemas que surgiram no contexto do pós-guerra. Era preciso, portanto, compreender as “sementes de vida”, as pessoas comuns, as questões corriqueiras, a comunicação da cultura e forçar a implantação da democracia.
Havia uma contradição que precisava ser enfrentada, pois a propriedade dos meios de comunicação pelas grandes empresas de publicidade e propaganda promovia a massificação da cultura por meio de conteúdos ”sintéticos”, artificiais, de venda rápida e descartáveis (p. 50).
A democracia educada e participativa, a educação de adultos, o ensino de literatura e a crítica sociológica poderiam promover processos de acesso à cultura comum alavancando estruturas de sentimento que superassem a violência física, a confusão mental, os colapsos da guerra, as ruinas da dor, o sofrimento das perdas e o desejo de morte.
O autoexílio, os escritos de educação, a educação de adultos, o trabalho de extensão extramuros realizado pela Universidade Oxford foram “recursos de esperança” que mobilizaram estruturas de sobrevivência em Raymond Williams e reverberam no texto de Alexandro H. Paixão e na densidade da minha leitura.
Raymond Williams assumiu posições públicas contra o sistema de ensino na Grã-Bretanha, defendendo que ele deveria ser público, subvencionado pelo Estado, gratuito e extensivo a todos os cidadãos sem necessidade de testes nacionais e exames seletivos de ingresso. Defendeu a democratização da cultura em larga escala, questionou o ensino clássico, meritocrático para poucos, criticou a reconstrução do campo educacional em termos capitalista, mercadológico e privatista, denunciou a orientação da educação da classe trabalhadora voltada para o treinamento para um emprego, defendeu a educação democrática e participativa alegando que “uma nação não é uma firma” (p. 117).
Para tanto, propunha superar o sistema de ensino que reproduzia uma falsa ideia de igualdade de classes por meio de chances proporcionadas aos “astutos”. Indicava que as bolsas de estudo para os estudantes pobres que se destacavam eram uma face hedionda da sociedade britânica pois a sociedade desigual não era alterada com chances para alguns, mas com igualdade de oportunidades para todos.
Dizia ser necessário evitar “a polarização da cultura” e enfatizava “não a escada, mas o caminho comum” (WILLIAMS, p. 135). Como Marx, entendia que faltava “um sistema de ensino novo para poder modificar as condições sociais” (MARX, p. 141)
Assim, dialogando com os vários espectros políticos, compreendeu que o horizonte da ação não se abria para as promessas da Terceira Internacional Comunista mas para o longo processo de expansão democrática via educação de adultos (p. 101)
4.
Gostaria de dizer que Alexandro H. Paixão é colega de Departamento de Ciências Sociais na Educação/Unicamp, vizinho de bairro e, a partir de afinidades eletivas, fomos parceiros em disciplinas, orientação de estudantes, organização de eventos, debates de pesquisa,[i] publicação de coletânea (PAIXÃO, MAZZA & SPIGOLON, 2021), gestão acadêmica etc.
Sensibiliza-me a intuição de que, talvez, a mensagem mais candente do livro é a de que somos pessoas cindidas, desentendidas, sobreviventes. Assim se passa com Raymond Williams, Alexandro H. Paixão, comigo e talvez com toda humanidade.
Entretanto, o que é ser um sobrevivente?
Talvez seja agarrar-se a “recursos de esperança” depositados em um mundo em construção após colapsos, guerras e que necessita ser reabilitado e ressignificado. Trata-se, portanto, de um lugar que provoca sentimentos de sofrimento, desilusão, desproteção e, neste cenário distópico uma das frentes de sobrevivência trilhada por Raymond Williams, e suponho por Alexandro Paixão, foi depositar no ofício de professor, na área da educação, no recurso epistemológico, nos métodos de ensino, no trabalho com adultos, na literatura e na análise sociológica os recursos de esperança.
A estrutura de sobrevivência, o autoexílio para estudos, a reflexão crítica, a produção de cultura, o tempo estendido com literatura, arte, cinema, livros e os exercícios de uma educação democrática (p. 54-55) se configuram como caminhos trilhados por ele, por muitos professores, educadores, pesquisadores e intelectuais.
Raymond Williams define o exílio como “homens expulsos de sua sociedade” e o autoexilado como aquele que “vive e se move na sociedade na qual nasceu, mas rejeita seus objetivos e deprecia seus valores, em razão de princípios alternativos com os quais está comprometida toda a sua realidade pessoal […] [ele] quer que a sociedade mude para poder pertencer a ela, e isso implica […] em associar-se (WILLIAMS, p. 100).
Raymond Williams não desistiu de lutar, distanciou-se das promessas de rupturas radicais e aproximou-se da longa revolução semeada cotidianamente na educação de adultos visando a expansão democrática.
Talvez essa seja a pulsão e a mensagem do autor do livro: a educação pode conectar recursos de esperança, cultura comum possibilitando alívios, encontros e sobrevivências em um mundo desencantado.
*Débora Mazza é professora do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp. Autora, entre outros livros, de Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira (Editora da Unicamp).
Referência

Alexandro Henrique Paixão. Raymond Williams & educação. Campinas, Editora da Unicamp, 2025, 160 págs. [https://amzn.to/4p5IoBz]
Nota
[i] Colóquio Internacional: Centelhas de transformação: Paulo Freire & Raymond Williams. Faculdade de Educação: Unicamp, 26/07/2021 a 25/08/2021. Disponível: https://www.fe.unicamp.br/agenda-de-eventos/coloquio-internacional-centelhas-de-transformacoes-paulo-freire-raymond-williams/
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