Por SÍRIO POSSENTI, LUZMARA CURCINO E CARLOS PIOVEZANI*
Comentário sobre a recém-lançada autobiografia de Didier Eribon
Em 2003, o intelectual francês Didier Eribon recebeu um prestigioso prêmio da Universidade de Yale, nos EUA. O caminho que o conduziu até lá compreendeu a saída da casa de seus pais ainda muito jovem, a mudança de sua cidade natal Reims para Paris, o gesto de assumir publicamente sua homossexualidade, o trabalho como jornalista em reconhecidos veículos da mídia francesa, até a frequentação e a amizade com notáveis da intelectualidade francesa, tais como Claude Levi-Strauss, Michel Foucault e Pierre Bourdieu, e a assunção à condição de professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Amiens e professor visitante nas Universidades de Berkeley, de Cambridge e no King’s College.
Já gozando de grande reconhecimento intelectual, Eribon acrescenta mais uma obra muito bem-sucedida entre suas já célebres publicações, como Michel Foucault. 1926-1984 (Flammarion, 1989); Foucault e seus contemporâneos (Fayard, 1994); Reflexões sobre a causa gay (Fayard, 1999), Uma moral do minoritário (Fayard, 2001) e Dicionário das culturas gays et lésbicas (Larousse, 2003), entre outras. Trata-se de Retorno a Reims é uma consistente e emocionante autobiografia sociológica.
Depois da morte de seu pai, Didier Eribon retorna a sua cidade natal e reencontra sua família e seu meio social de origem, dos quais havia se afastado trinta anos antes. Decide então mergulhar em seu passado e retraçar a história de sua família, que será narrada em articulação com a própria história da sociedade contemporânea. Os estigmas de classe que sempre recaíram sobre sua família de operários se mostram decisivos na determinação dos destinos de seus familiares e, particularmente, no próprio distanciamento de Eribon de suas origens populares.
Tendo acreditado por muito tempo que a homofobia de seu meio era causa exclusiva que o afastara dos seus, ele constata em seu retorno que, na verdade, esse distanciamento resultou igualmente de uma vergonha social, da vergonha de sua origem proletária e de sua condição de filho de operário. Eribon evoca o mundo operário de sua infância, reconstruindo o processo de sua ascensão social, e articula a cada etapa de bela e perturbadora narrativa pessoal os elementos de uma reflexão histórica, sociológica e política sobre as classes populares, sobre os bairros pobres e seu sistema escolar, sobre os processos de fabricação das identidades de classe e de distinção social, sobre a sexualidade e suas interconexões com as tendências políticas, com o voto em certos partidos, com a democracia…
Reescrevendo assim trajetórias individuais atravessadas pelas coerções dos meios sociais e dos grupos coletivos, por veredictos da reprodução social anteriores ao nascimento, Didier Eribon analisa a multiplicidade de formas de dominação e de resistência e examina os modos pelos quais os membros das classes populares, ou seja, de sua mesma origem social experimentaram na própria carne o que é pertencer a essas classes pauperizadas e vulneráveis. O autor concilia uma densa reflexão histórica e sociológica com uma narrativa em linguagem clara, simples e envolvente sobre as identidades sociais e seus mecanismos de reprodução, sobre as trajetórias de pertença e de identificação de classe, tanto de seus membros que foram impedidos de conquistar bens materiais e simbólicos das classes médias e dominantes quanto daqueles que como ele romperam socialmente com o mundo que lhes havia sido destinado.
Trata-se de uma sensível e comovente autobiografia e, ao mesmo tempo, de uma densa obra intelectual, um grande livro de sociologia, de teoria crítica e de história contemporânea. A obra pode ainda ser concebida, conforme o próprio autor a considera, como uma manifestação de revolta contra a violência social que toma formas muito variadas e que é vivida cotidianamente por uma maioria sofrida e silenciada. Sua reflexão incide, então, sobre essa violência que produz a distinção entre aqueles que cursarão o ensino superior, apreciarão a literatura de prestígio, as artes plásticas e a ópera, e aqueles que ansiarão pelo emprego na fábrica, assim como ela ansiará por eles. Estes últimos, que trazem já em seus nomes e sobrenomes as marcas de seu pertencimento de classe, acreditarão escolher, quando na verdade são escolhidos.
Em razão de seu grande êxito editorial na França, a partir de seu lançamento em 2009, a obra ganhou rapidamente traduções para o inglês e para o espanhol. Logo depois, também para o italiano e o alemão. Deu igualmente origem a uma peça de teatro de grande sucesso de público e de crítica. Essa sua grande e bem-sucedida repercussão certamente se deve ao fato de que o livro mostra a diversidade e a amplitude das formas de dominação e indica a necessidade de meios não menos diversos e amplos para que indigentes, marginais e estigmatizados de toda ordem possam resistir.
Em função de seu estilo de narrativa autobiográfica, o texto não conta com um sumário, com títulos que nomeiem suas partes e capítulos. O autor opta, portanto, por conduzir a narrativa em fluxo contínuo, interrompido somente por certas divisões temáticas marcadas por números: o livro dispõe, então, de 5 partes, indicadas por algarismos romanos, cujas subdivisões em capítulos são assinaladas por algarismos arábicos, e ainda um epílogo.
A primeira parte apresenta particularmente a figura do pai, sua infância e morte, sua vida como operário, sua vida como marido e pai, sua inscrição política junto ao partido Comunista e as durezas de sua vida que moldaram a dureza de seus gestos e formas de ser.
Na segunda parte, Eribon se dedica a descrever principalmente a vida privada e social de sua mãe: filha de mãe solteira, abandonada ainda jovem por essa mãe, impedida de seguir seus estudos, assediada no trabalho e infeliz no casamento.
A terceira examina a relação do próprio autor com a política que caracteriza sua juventude, sobretudo sua adesão às ideias comunistas, e as razões pelas quais ocorreu junto a seus familiares a migração dos votos nos partidos de esquerda para um partido de extrema direita. O que marca dolorosamente essa passagem é a avaliação de Eribon de que houve um tempo em que o OUTRO dos operários franceses eram os capitalistas, e agora são os imigrantes, e por isso eles passaram a votar na direita
Já a quarta é dedicada ao percurso escolar do autor, ao modo como por seu intermédio ele escapou a seu destino desde sempre determinado e à deterioração dessa escola, que, até então poderia emancipar alguns membros das classes populares, já não goza do mesmo valor que antes.
A quinta parte, por sua vez, reflete sobre sua história como garoto gay nascido em uma cidade do interior e sua relação com a vergonha sexual e o processo por meio do qual assumiu essa sua condição, os sofrimentos e os desafios desse processo.
No epílogo, enfim, com a mesma sensibilidade que atravessa todo o livro, Eribon apresenta uma bela reflexão sobre sua trajetória como filho de operários que se torna jornalista, autor conhecido e reconhecido e professor de filosofia, mediante uma constante evocação e interpretação de questões fundamentais da sociologia, da filosofia e história contemporâneas sobre os gêneros e a sexualidade, sobre as classes e as lutas sociais e sobre as lógicas da reprodução e da distinção que constituem e regulam nossas vidas em sociedade.
Eis aí um livro que nos ensina que há mais muitas mais relações entre lutas sociais e conflitos em torno da sexualidade do que poderia supor algumas de nossas vãs filosofias. Pela emoção que sentimos ao lê-la, em razão de nossa origem social em comum com a de Eribon e dos tabus em torno da sexualidade que também pesavam sobre nossas famílias, confessamos que se trata de uma obra que gostaríamos de ter traduzido.
*Sírio Possenti é professor da Unicamp e autor, entre outros, de Discurso, estilo e subjetividade (Martins Fontes).
*Luzmara Curcino é professora da UFSCar e organizadora de (In)subordinações contemporâneas:consensos e resistências nos discursos (EdUFSCar).
*Carlos Piovezani é professor da UFSCar e autor de A voz do povo: uma longa história de discriminações (Vozes).
Referência
Didier Eribon. Retorno a Reims. Belo Horizonte, Âyiné, 2020.