Revoltas da Armada (1893-94) e da Chibata (1910)

(Cais Pharoux e praça D. Pedro II, atual praça XV de Novembro, 1890, Fotografia de Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez, Acervo IMS). [i]
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Por PAULO FERNANDES SILVEIRA*

Os massacres que ocorreram nas revoltas da Armada e da Chibata tiraram as vidas de pessoas pobres. São heroínas e heróis todas aquelas e aqueles que lutam contra esse estado de coisas

“Há dezessete anos que não tínhamos semelhante despertar de dia… Era ontem a madrugada igual àquela outra, triste e pavorosa, de 93, aquele 7 de setembro que se comemorava numa festa de sangue, de gritos, de dores, numa tragédia horrível. (…) Há dezessete anos que a ameaça formidável de um bombardeio não caia fascinadora e horrível sobre nós” (Gazeta de Notícias, no. 328, p. 1).

As revoltas da Armada e da Chibata possuem pontos em comum. Além de terem sido protagonizadas por marinheiros, os lugares mais atingidos nas duas revoltas ficavam na região central da cidade do Rio de Janeiro: o cais Pharoux; o Mercado da Praia do Peixe, a praça XV de Novembro; o comércio e as residências próximas à praia de Santa Luzia e o morro do Castelo.

Por outro lado, a revolta da Armada foi conduzida por Custódio de Melo, um almirante e ministro branco, enquanto a revolta da Chibata teve a liderança de João Cândido, um militar negro de baixa patente. O objetivo do almirante era destituir o general Floriano Peixoto da presidência da república. A reivindicação de João Cândido era que a marinha brasileira não usasse mais a chibata em seus praças.

A principal diferença entre as duas revoltas está na quantidade de horrores que cada uma produziu. A revolta da Armada começou em 7 de setembro de 1893, e só terminou em março de 1894. Foram 198 dias de ataques a pontos centrais da cidade. A revolta da Chibata durou, apenas, 5 dias, foi anunciada na madrugada de uma terça-feira, dia 22 de novembro de 1910, e terminou no sábado da mesma semana.

Bombardeios da Revolta da Armada

Apesar de ser próxima do cais Pharoux, do Mercado e da Santa Casa da Misericórdia, essa região do centro da cidade era barata para morar. O morro do Castelo era repleto de moradias populares. O entorno da praia de Santa Luzia tinha o mesmo perfil social. Esses lugares ficaram conhecidos por suas grandes estalagens, uma espécie de cortiço formado por um conjunto de pequenas edificações.

Em cada estalagem moravam diversas famílias, muitas delas, trabalhadoras e trabalhadores imigrantes. O aluguel variava conforme o tamanho e as condições estruturais da unidade. No morro do Castelo ficava a estalagem do Bastos, uma das maiores do Rio de Janeiro: “Somando quartos, cômodos, habitações etc., haveria nessa estalagem 148 unidades de moradia” (BENCHIMOL, 1992, p. 190).

(Construções populares no morro do Castelo, 1917,
Fotografia de Guilherme Santos, Acervo IMS).

A princípio, os bombardeios dos navios em direção à costa não visavam as residências, mas as fortalezas e as barricadas. Ali estavam o Arsenal da Marinha e as fortalezas da ilha das Cobras e da ilha de Villegagnon. A resistência aos revoltosos colocou canhões no cais Pharoux e na praia de Santa Luzia. Os atiradores ficaram em pontos estratégicos do morro do Castelo.

No dia 7 de setembro de 1893, o Jornal do Brasil publicou, na primeira página, a carta do almirante Custódio de Melo anunciando a iminência da revolta: “Oficial da marinha, brasileiro, o cidadão de uma pátria livre, ainda uma vez vou achar-me no campo de ação revolucionária para dar combate aos demolidores da Constituição e restaurar o regime da lei, da ordem e da paz” (Jornal do Brasil, n. 250, p. 1).

Os jornais cobriram os confrontos durante a revolta da Armada. A maior parte desse material está acessível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. O jornal O Paiz publicou informações diárias sobre os bombardeios. Os relatos detalhados indicam que o jornal pretendia assegurar às leitoras e leitores que aquele massacre estava realmente acontecendo. Seguem alguns desses relatos.

14 de setembro de 1893: “Uma bala de grosso calibre, vinda da esquadra revoltosa, caiu na estalagem do Bastos, sita no morro do Castelo. Dela foi vítima Claudina Maria da Conceição, portuguesa, moradora no quarto n. 4. Dava volta na cozinha para o interior de sua casa, quando foi apanhada pela bala que veio atingir a parte posterior do crâneo, resvalando pela direita e prostrando-a irremediavelmente morta” (O Paiz, n. 4147, p. 1).

23 de setembro de 1893: “Uma granada atirada pelo (cruzador) Guanabara, em direção à bateria do Castelo, veio cair no centro da cidade, sobre uma casa da rua Uruguaiana, próximo à rua Sete de Setembro. Um dos estilhaços dessa granada atingiu um bond de Vila Isabel, furou a coberta do carro, quebrou dois de seus bancos e matou instantaneamente o dr. José Lomelino Drummond, outro caiu um pouco mais longe, à rua Sete de Setembro, quase ao chegar à travessa de São Francisco, matando também instantaneamente Maria Cândida Borges, que por ali passava, acompanhada de dois filhos menores, um terceiro estilhaço feriu gravemente numa perna a Miguel Gomes Peres, operário do Arsenal de Guerra” (O Paiz, n. 4156, p. 1).

26 de setembro de 1893: “No largo do Rossio, uma granada explodiu em frente ao Club Naval, matando um pobre velho vendedor de jornais. (…) Na rua Lavradio, n. 43, morava uma italiana, Josefina de tal, bailarina da companhia lírica, ao que nos consta, uma bala penetrando pelos fundos da casa detonou e um dos estilhaços penetrou no seio direito da infeliz, que foi encontrada moribunda. A casa do dr. Correia Dutra, na rua do mesmo nome, no Castelo, foi alcançada por um projétil das torres do (encouraçado) Aquidabã. A bala penetrou pelo prédio contiguo, destruiu quatro paredes, e por felicidade não explodiu; mas ainda assim o desabamento das paredes feriu duas crianças, Jacinto de Moraes, de 10 anos de idade, e Nicanor, de 7, filhos dos criados de Dutra, cuja família se achava ausente. (…) Um shrapnel vindo da esquadra rebentou em uma casa da praça do Castelo, destelhando o prédio e produzindo nele grandes estragos. (…) Os estilhaços do shrapnel foram arremessados à casa fronteira e ai varando as paredes e penetrando pelas janelas puseram em debandada os moradores que estavam a jantar. José Ávila de Azevedo, português, solteiro, moço de 22 anos e que era carpinteiro da alfândega, o qual estava nessa ocasião no quintal da mesma casa, foi atingido por um estilhaço, que lhe produziu um forte ferimento no pescoço, sendo transportado imediatamente pela ladeira do Seminário para a polícia. Quando ia em meio da ladeira, faleceu o desditoso mancebo” (O Paiz, n. 4159, p. 1).

27 de setembro de 1893: “Uma granada explodiu na rua da Candelária, entre o Banco da República do Brasil e a casa comercial dos srs. John Moore & C., indo os estilhaços cravar-se nas paredes dos prédios vizinhos. Um dos estilhaços entrou pela janela do sobrado do prédio contiguo ao dos srs. Moore & C. e matou instantaneamente o sr. Lary I. Watmough, empregado do London & Brasilian Bank, que estava almoçando no hotel Leão de Ouro, ali estabelecido. O estilhaço penetrou em uma têmpora, destruindo grande parte das maxilas. O falecido, de nacionalidade inglesa, parecia ter pouco mais de 20 anos” (O Paiz, n. 4160, p. 1).

28 de setembro de 1893: “Niterói, 27 – O Aquidabã e um (navio) frigorífico, cerca de 3 horas da tarde, sem agressão que justificasse a violência da resposta, lançaram bombas sobre a cidade. Um desses projéteis matou um artista-tipógrafo, rapaz de 18 anos, amparo de sua mãe viúva, e um menino de 13 anos, filho também dessa viúva. Os dois conversavam na sala da frente da casa em que residiam, à rua Marechal Deodoro, no momento do bombardeio” (O Paiz, n. 4161, p. 1).

20 de outubro de 1893: “No bombardeio de ontem morreram: um moço de 19 anos, caixeiro de uma venda, que se achava na rua Aureliana, esquina da rua da praia; uma criança e um aluno da escola politécnica, praça do batalhão acadêmico, chamado Fernandes Pinheiro, sobrinho do tesoureiro do banco do Brasil e filho, creio, do desembargador do mesmo nome. Este pobre moço faleceu de um estilhaço de granada, na rua da Glória, esquina da rua Visconde de Uruguai” (O Paiz, n. 4183, p. 1).

23 de outubro de 1893: “Tivemos notícia, à noite, de mais uma grande desgraça em Niterói, à rua José Bonifácio, n. 10. (…) d. Emília Luiza Garrido Penido, viúva do dr. Jerônimo Máximo Nogueira Penido, teve morte imediata, e d. Mathilde Teixeira de Carvalho, aluna do 2º ano da escola normal do Estado do Rio de Janeiro, contando 24 anos de idade, recebeu uma fratura comitiva da tíbia” (O Paiz, n. 4186, p. 1).

24 de outubro de 1893: “Mais uma criança tingindo com seu sangue de inocente os troféus de glória do sr. Custódio José de Melo. Quando, às 9 horas da noite de anteontem, uma embarcação dos revoltosos contornou a praia de Santa Luzia, fazendo criminosamente, desnecessariamente, fogo por terra, o menor João de Souza, de 12 anos, órfão, carinhosamente criado desde tenra idade por uma senhora moradora na casa n. 4 daquela praia, foi atingido na região epigástrica por uma bala de metralhadora, que o matou quase instantaneamente. Mal teve tempo de ser transportado para a 12º enfermaria do hospital da Santa Casa da Misericórdia” (O Paiz, n. 4187, p. 1).

6 de novembro de 1893: “As violências dos revoltosos contra a população laboriosa da cidade do Rio de Janeiro começaram ontem muito cedo. Eram 5 e ½ da manhã; a rampa da praça do Mercado estava apinhada de gente – homens, mulheres e crianças, naquele movimento diário, agitado, aos encontrões e no meio da pacífica algazarra dos mercadores e pregoeiros da pesca e pequena lavoura. O povo assim distraído não viu a aproximação de uma lancha da esquadra que se denominou libertadora, e continuou nos seus trabalhos de aquisição de alimentos. Era da lancha Glória, cuja guarnição não se conteve ao ver tanta gente junta e fez fogo de fuzilaria para terra. A força estacionada no Largo do Paço não respondeu à provocação, afim de evitar um combate, em que seria sacrificado o povo ali reunido; mas ainda assim um pobre italiano, mercador ambulante de peixe recebeu um projétil nos músculos de um dos braços, ficando com as carnes dilaceradas” (O Paiz, n. 4200, p. 1).

7 de novembro de 1893: “Logo aos primeiros disparos, foi gravemente ferida uma criancinha, que brincava nas escadarias da estalagem n. 8, à ladeira do Castelo. Chama-se Nicolau, tem 6 anos de idade, é filho de Mariana Alves Correia dos Santos, moradora no prédio n. 10. O projétil varou-lhe o pé de encontro às pedras, de modo que ficaram esmagados os ossos, sendo necessária a amputação. (…) No Largo da Carioca, uma aluna da escola normal, filha de José Rego, inspetor seccional da Gávea, estando junto à porta do armazém n. 3, recebeu uma bala que lhe atravessou o ventre; seu estado é grave” (O Paiz, n. 4201, p. 1).

15 de novembro de 1893: “Escondido por trás do chafariz da praça XV de Novembro estava o menor que supomos ser italiano, e que de vez em quando corria para apanhar cápsulas detonadas e balas que caiam próximo; numa destas carreiras, foi imprudentemente atingido por bala de fuzil que, entrando pela bossa frontal direita, saiu pelo occipital. A massa encefálica começou a derramar-se logo, e o infeliz ainda respirou até às 7 horas da noite, no Arsenal de Guerra, onde foi recolhido” (O Paiz, n. 4209, p. 1).

2 de dezembro de 1893: “Faleceu ontem, às 4 horas e 15 minutos da tarde, o menor Antônio Conceição, que ficara na véspera com os intestinos dilacerados pelos estilhaços de granada que explodiu na praça das Marinhas” (O Paiz, n. 4226, p. 1).

12 de dezembro de 1893: “Às 6 e ½ da tarde de ontem, o estilhaço de uma das granadas intermitentemente despedidas da ilha das Cobras alcançou o menor de 13 anos, Heredia de Oliveira Campos, que passava pelo (boulervard) Carceler. Ia o infeliz, que é empregado do armazém n. 8 da rua Dom Manoel, despachar um pequeno baú de folha na estação de cargas da Companhia de São Cristóvão; o estilhaço fraturou-lhe o crâneo, levantando quase completamente a calote. O desgraçadinho não gritou. Com os olhos saltando das órbitas caiu no chão que alagou de sangue inocente. Transportado para a farmácia Silva Araújo, ai expirou instantes depois” (O Paiz, n. 4236, p. 1).

4 de janeiro de 1894: “As hostilidades da esquadra contra a cidade e sua pacífica população não concluíram ontem sem uma nota sanguinolenta. (…) Nesse tiroteio da noite morreu o cidadão brasileiro João Gonçalves da Cruz, de 27 anos de idade, morador à Ladeira do Castelo, n. 8. O desgraçado foi atingido por uma bala de canhão-revólver, que varou-lhe um dos olhos, atravessando o crâneo” (O Paiz, n. 4259, p. 1).

8 de janeiro de 1894: “Às 9 horas da manhã de ontem expirou a infeliz Joanna Serenmeyer, ferida na véspera por uma granada que explodiu à janela de sua residência. Mais um corpo ensanguentado que baixa ao túmulo! Luto para cinco crianças, a quem os revoltosos roubaram para sempre a estimada mãe” (O Paiz, n. 4263, p. 1).

20 de janeiro de 1894: “Por ocasião do tiroteio de anteontem no cais Pharoux, o súdito português Antônio Joaquim Gomes, de 33 anos de idade, que por ali passava, foi atingido por uma bala e imediatamente morto. Era casado e morador da rua Visconde de Sapucaí, n. 194” (O Paiz, n. 4275, p. 1).

Bombardeios da Revolta da Chibata

Um ano antes da revolta da Chibata, a imprensa deu grande repercussão para o crime que ficou conhecido como a Primavera de Sangue. No dia 22 de setembro de 1909, numa manifestação pela chegada da primavera, estudantes tomaram as ruas da cidade. A marcha terminou no Largo São Francisco de Paula, onde os universitários José de Araújo Guimarães, 17 anos, e Francisco Ribeiro Junqueira, 19 anos, foram assassinados por policiais à paisana (Gazeta de Notícias, n. 277, p. 2).

(Dois estudantes mortos, 1909, Careta, n. 69, p. 28).

Os policiais responsabilizados pelo crime eram subordinados do general Souza Aguiar, comandante da Força Policial do Distrito Federal (BORGES, 2011).

Com a galeria pública do congresso repleta de estudantes, o jornalistae senador Antônio Azeredo tomou a palavra: “Ao tempo de Floriano, até deputados foram agredidos por militares. Ao tempo de Prudente de Moraes, soldados disfarçados vaiaram deputados, um dos quais, o sr. Adalberto Ferraz, foi gravemente ferido. Ainda este ano, em janeiro, tivemos o caso dos bonds da Light, em que o mesmo general Aguiar, comandando pessoalmente os seus soldados, mandava espadeirar o povo. Todos esses crimes ficaram impunes” (Gazeta de Notícias, n. 267, p. 2).

Algumas semanas depois, o jurista, jornalista e senador Rui Barbosa aceitou concorrer à eleição presidencial contra o marechal Hermes da Fonseca. Em seu primeiro discurso como candidato, o senador defendeu uma campanha civilista como contraponto à campanha militarista do seu opositor (Gazeta de Notícias, n. 277, p. 2).

Em 2 de março de 1910, dia seguinte ao pleito, já se sabia que o candidato militar havia vencido por ampla maioria. Rui Barbosa questionou a idoneidade do processo eleitoral. Na cidade do Rio de Janeiro, ocorreram conflitos violentos entre hermistas e civilistas (Jornal do Brasil, n. 61, p. 4).

Em 15 de novembro, Hermes da Fonseca assumiu a presidência. Em 22 de novembro, eclodiu a revolta da Chibata. Pelo testemunho de João Cândido, o estopim da revolta foi o castigo de 250 chibatadas no praça Marcelino Rodrigues, por ordem de João Baptista das Neves, comandante do couraçado Minas Geraes (MOREL, 1963).

No primeiro dia da revolta, o capitão de mar e guerra Baptista das Neves foi assassinado pela tripulação amotinada (Correio da Manhã, n. 3416). A marinha e uma grande parte da imprensa passaram a tratá-lo como herói.

Os jornais criticaram veementemente os marinheiros que ameaçavam a população com uma poderosa esquadra. Mais uma vez, a região central era a mais vulnerável da cidade.

Alguns dias depois do início da revolta, o ex-marinheiro Eurico Fogo foi até a redação do jornal O Estado de São Paulo explicar as crueldades de Baptista das Neves:

“O comandante Neves, o ‘Osso Torto’, como lhe chamavam a maruja toda, era um homem temível. O mestre Alípio, executor de suas ordens, é o maior carrasco que a armada possui, por determinação dele ‘embotijava a linha da agulha’, pondo-a de molho durante a noite para na manhã seguinte dar com ela, geralmente, 1000 golpes, no mínimo, nos praças sujeitos a castigo. (…) O mestre apanhava uma corda mediana, de linho, atravessava-a de agulhas de aço, das mais resistentes e, para entumecer a corda, punha-a de molho, com o fim de aparecer apenas as pontas das agulhas. De manhã, a guarnição formava. Vinha o marinheiro faltoso algemado. Tiravam-lhe as algemas das mãos e o suspendiam, completamente despido, no ‘pé de carneiro’ (um ferro que se prende à balaustrada do navio), e, então, o mestre Alípio, o desumano, aplicava 1000 golpes com a corda” (O Estado de São Paulo, n. 11671, p. 4; O Paiz, n. 9549, p. 2).

No segundo dia da revolta, os jornais relataram a história chocante de duas vítimas: “Pela manhã, na estalagem do Bastos, no morro do Castelo, d. Maria Monteiro Leal dava banho a seus dois filhinhos, Ernani e Ricardina, esta de 2 anos de idade, aquele de 4, quando perto do grupo estourou uma granada, vinda de bordo do Minas Geraes. Os estilhaços do projétil atingiram mãe e filhos: aquela ficou levemente ferida num braço; Ernani morreu imediatamente e Ricardina, gravemente ferida, foi transportada para o hospital da Santa Casa da Misericórdia, onde faleceu pouco depois de entrar” (Gazeta de Notícias, n. 328, p. 2).

O Correio da Manhã descreveu o momento do bombardeio que atingiu a comunidade: “Pouco depois de nove horas, o Minas Geraes fez uma manobra inesperada, como que tentando contornar a ilha de Villegagnon. Quando mais próximo estava dessa ilha, o possante couraçado fez três disparos seguidos, sendo dois sobre ela, e um com elevação. A última dessas três granadas galgou-se sobre os bairros da Glória e da Lapa, indo cair no morro do Castelo, numa pequena vila de operários, conhecida ali por estalagem do Bastos. A granada caiu na casinha ocupada pela família do sr. Horácio Baptista Leal, que se compunha de sua senhora e dois filhos menores, de nomes Ernani e Ricardina” (Correio da Manhã, n. 3416, p. 2).

(Duas crianças mortas, 1910. Careta, n. 130, p. 27).

Além de outras pessoas feridas, uma terceira pessoa perdeu a vida: “Um estilhaço de granada matou em sua própria casa Maria Rosa Madureira, portuguesa, viúva, de 52 anos de idade, residente à rua Monte, n. 34, na Saúde” (O Paiz, n. 9546, p. 4).

A imagem das duas crianças mortas no morro do Castelo estampou a capa da maioria dos jornais e revistas da época. Numa nota, O Paiz informa que Horácio Baptista Leal, guarda civil e pai das crianças, foi pedir ao presidente Hermes da Fonseca recursos para o enterro (O Paiz, n. 9547, p, 2).

A morte das crianças também abalou os marinheiros. Nas palavras de João Cândido: “Foi uma desgraça! Do miserável soldo que recebíamos, arranjamos duzentos mil réis e mandamos à família para fazer o enterro dos meninos” (MOREL, 1963, p. 62). No fim da revolta, João Cândido foi procurá-los no morro do Castelo (PAIXÃO, 2008). Certamente, essas mortes horrorosas ajudaram a encurtar a revolta da Chibata.

O congresso aprovou um projeto de anistia aos insurretos. Sancionado pelo presidente, o decreto n. 2280, de 25 de novembro de 1910, não menciona o castigo da chibata (Correio da Manhã, n. 3419). João Candido recebeu com indignação essa notícia, mesmo assim, aceitou por fim à revolta (Jornal do Brasil, n. 331).

Apesar da anistia, o presidente assinou o decreto n. 8400, de 28 de novembro de 1910, que autorizava: “a baixa, por exclusão, das praças do Corpo de Marinheiros Nacionais cuja permanência se tornar inconveniente à disciplina” (Jornal do Brasil, n. 333).

Em 9 de dezembro, ocorre uma revolta na ilha das Cobras (Gazeta de Notícias, n. 344). Os marinheiros insurretos foram impiedosamente massacrados pelas forças do governo (MOREL, 1963). Essa revolta era o que Hermes da Fonseca precisava para aprovar no congresso o estado de sítio (Gazeta de Notícias, n. 346).

Num depoimento feito em 1968, João Cândido afirma que essa segunda revolta foi forjada pelo governo para suspender a anistia (BARBOSA, 1999). Em 10 de dezembro, acusado de também liderar essa revolta, João Cândido foi preso.

Na seção Páginas de Sítio, publicada em janeiro de 1911, a Gazeta de Notícias denunciou as arbitrariedades promovidas pelo governo. No dia 13 de janeiro, o jornal relatou as condições da prisão para onde João Cândido foi levado:

“O calor infernal de um ambiente fechado por todos os lados e a atmosfera pestilenta, respirada de boca a boca pelos infortunados marujos, gerou em breve a sede. Reclamaram água e ninguém os quis ouvir. (…) Caiu, por fim, a primeira vítima. Matara-a a inanição. (…) Houve um momento de alarido na masmorra, os presos forçaram as grades robustas. Despejaram-lhe por cima vários sacos de cal. (…) A morte foi fazendo novas vítimas, e no fim de três dias dezoito enterros saia da ilha das Cobras para o cemitério do Caju” (Gazeta de Notícias, n. 3466).

Em dezembro de 1910, centenas de marinheiros insurretos que já estavam presos foram enviados para a selva amazônica, dividiram o porão do navio Satélite com criminosos (MOREL, 1963). Durante a viagem, muitos foram fuzilados. Em 12 de janeiro de 1911, com a chegada do Satélite a um dos seus destinos, o Correio da Manhã repercutiu uma reportagem da revista Commercio Norte-Brasileiro criticando o governo federal por deportar desordeiros do Rio de Janeiro para o Acre (n. 3484, p. 3).

Na acalorada seção do congresso do dia 26 setembro de 1912, ao defender a liberdade de João Cândido, o deputado Irineu Machado criou uma expressão que ficou célebre: “Acredito mais na lealdade do almirante negro do que na do soldado branco, na do marechal branquíssimo…” (Correio da Manhã, n. 4088, p. 2).

Depois de dois anos presos na ilha das Cobras, João Cândido e os outros marinheiros foram julgados pelo conselho de guerra pela suposta participação na segunda revolta. Em 2 de dezembro de 1912, eles foram absolvidos: “Considerando, finalmente, que não existe nos autos nenhuma prova de que os réus tenham praticado qualquer ato que, autorizando a suspeita de participação na referida revolta, (…) por unanimidade de votos julga não provada a acusação” (Correio da Manhã, n. 5054, p. 2).

Quase um mês depois, no dia 31 de dezembro, João Cândido e os demais marinheiros foram libertados (Correio da Manhã, n. 5083). Nesse mesmo dia, eles foram contar suas histórias no Correio da Manhã e na Gazeta de Notícias. [ii]

Anotações finais

Publicado, originalmente, como folhetim, entre 11 de agosto e 19 de outubro de 1911,[iii] o livro Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, transcorre no período da revolta da Armada. Todavia, como fizeram os poetas da tragédia grega, o escritor parece evocar no romance questões mais atuais do debate político.

Como escritor e jornalista, Lima Barreto acompanhou de perto a revolta da Chibata. Além disso, ele fez parte do conselho de sentença que condenou os policiais envolvidos na Primavera de Sangue (Correio da Manhã, n. 3347).

Segundo as finas análises de Edgar Decca (1998), Triste fim de Policarpo Quaresma pode ser tomado como uma narrativa paradigmática dos massacres perpetrados por uma república militarizada.

Mesmo referindo-se às personagens da revolta da Armada, uma passagem do romance descreve abusos de poder semelhantes aos encarados por João Cândido e seus companheiros na revolta da Chibata:

“Bastava a mínima crítica para se perder o emprego, a liberdade, – quem sabe? – a vida também. O chefe de polícia organizara a lista dos suspeitos. (…) Em nome do marechal Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão, sem função pública alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá ficava esquecido, sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação dominicana” (BARRETO, 2017, p. 125).

O Rio de Janeiro que enfrentou as revoltas da Armada e da Chibata não existe mais. Seguindo as diretrizes hausmmannianas de expulsão das populações pobres dos centros das grandes cidades, em 1922, o prefeito Carlos Sampaio desfez o morro do Castelo. Numa crônica publicada na revista Careta, Lima Barreto argumentou: “Não há casas, entretanto queremos arrasar o morro do Castelo, tirando a habitação de alguns milhares de pessoas” (1920, p. 37).[iv]

Em comum, os massacres que ocorreram nas revoltas da Armada e da Chibata tiraram as vidas de pessoas pobres. São heroínas e heróis todas aquelas e aqueles que lutam contra esse estado de coisas.

Apêndice. O Rio Nú, no. 1291, p. 2.

*Paulo Fernandes Silveira é professor da Faculdade de Educação da USP e pesquisador no Grupo de Direitos Humanos do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Referências – imagens


Cais Pharoux e praça D. Pedro II, atual praça XV de Novembro. (1890). Fotografia de Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez. Acervo Instituto Moreira Salles (IMS). Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/10518

Construções populares no Morro do Castelo. (1917). Fotografia de Guilherme Santos. Acervo Instituto Moreira Salles (IMS). Disponível em: https://ims.com.br/exposicao/o-paco-a-praca-e-o-morro/

Referências – jornais e revistas

Careta, 25 de setembro de 1909, n. 69. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=083712&pasta=ano%20190&pesq=&pagfis=1359

Careta, 26 de novembro de 1910, n. 130. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=083712&pagfis=3585

Correio da Manhã, 16 de dezembro de 1910, n. 3347. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_02&pasta=ano%20191&pesq=&pasta=ano%20191&pesq=&pagfis=2439

Correio da Manhã, 24 de novembro de 1910, n. 3416. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_02&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=3120

Correio da Manhã, 27 de novembro de 1910, n. 3419. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_02&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=3144

Correio da Manhã, 12 de janeiro de 1911, n. 3484. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_02&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=3810

Correio da Manhã, 27 de setembro de 1912, n. 4088. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_02&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=11138

Correio da Manhã, 2 de dezembro de 1912, n. 5054. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_02&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=12061

Correio da Manhã, 31 de dezembro de 1912, n. 5083. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_02&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=12488

Correio da Manhã, 5 de outubro de 1951, n. 17959. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_06&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=12396

Correio da Manhã, 28 de março de 1968, n. 22999. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&hf=memoria.bn.gov.br&pagfis=90768

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O Paiz, 8 de janeiro de 1894, n. 4263. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=178691_02&pagfis=8984

O Paiz, 20 de janeiro de 1894, n. 42753. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=178691_02&pagfis=9056

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Bibliografia


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BARRETO, Lima. (1920). Megalomania, Careta, 28 de agosto de 1920, p. 37. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=083712&pagfis=24094

BARRETO, Lima. (2017). Triste fim de Policarpo Quaresma. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições da Câmara. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/33419

BENCHIMOL, Jaime. (1992). Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes/ Divisão de Editoração.

BORGES, Vera. (2011). A primavera de sangue: a cidade do Rio de Janeiro na batalha eleitoral de 1910. Dimensões, v. 27, p. 115-128. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/lucasbraga,+d27_07_veraluciabogeaborges.pdf

DECCA, Edgar. (1998). Quaresma: um relato de massacre republicano, Anos 90, v. 5, n.8, p. 45-62. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/6194/3686

MOREL, Edmar. (1963). A Revolta da Chibata. Guanabara: Editora Letras e Artes.

PAIXÃO, Cláudia. (2008). O Rio de Janeiro e o morro do Castelo: populares, estratégias de vida e hierarquias sociais (1904-1922). Dissertação (Mestrado em História Social Urbana). Universidade Federal Fluminense, Niterói. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2008_PAIXAO_Claudia_Miriam_Quelhas-S.pdf

Notas


[i] A cópia da foto original de Marc Ferrez foi recortada pelo autor desse ensaio para facilitar a visualização do morro do Castelo. No site do Instituto Moreira Salles é possível acessar a imagem completa. Agradeço à pesquisadora Roberta Mociaro Zanatta pelas informações sobre o acervo do IMS.

[ii] A Hemeroteca Digital não possui a edição da Gazeta de Notícias do dia 31 de dezembro de 1912. Todavia, uma imagem da capa dessa edição do jornal encontra-se disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/c4/Gazeta_de_noticias_31-12-1912_01.jpg/787px-Gazeta_de_noticias_31-12-1912_01.jpg

[iii] O primeiro folhetim do Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado em 11 de agosto de 1911, edição n. 560 do Jornal do Commercio. A Hemeroteca Digital só possui as edições de agosto de 1911.

[iv] O material do morro do Castelo foi aproveitado em diversos aterramentos da região. A praia de Santa Luzia desapareceu, assim como o Calabouço, edifício à beira mar onde ficava uma instituição pública destinada à prisão e castigo de escravos. Inaugurado em 1951, próximo ao local onde ocorriam os açoites, o restaurante universitário administrado pela União Metropolitana de Estudantes (UME) ficou conhecido como Calabouço (Correio da Manhã, n. 17959, p. 5). Em 28 de março de 1968, ao reprimir um protesto estudantil contra as condições de higiene e a qualidade da comida no restaurante, a polícia militar assassinou o secundarista Edson Luís Lima Souto (Correio da Manhã, n. 22999, p. 1).


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