Por ÉRICO ANDRADE*
Um transe numa triste Bahia
Entro no carro de aplicativo de transporte em direção ao aeroporto. Saindo de Santo Antônio Além do Carmo meus olhos percorrem a cidade histórica para abraçarem o louvor a Deus, que tocava no carro na altura necessária daquilo que precisa gritar, com a imagem de mais uma igreja evangélica. Elas igual ao meu olhar, percorrem Salvador. Algumas são maiores do que tudo que as cerca. Afinal, o Deus dos evangélicos é maior do que qualquer outra coisa. Para voltar a imergir na Salvador que se apagava coloquei a barreira protetora dos fones de ouvido para em transe escutar Transa. Eu sempre preferi a triste Bahia da música.
No meu transe mastigava vagarosamente a experiência de viver Caetano e o seu gesto tanto delicado quanto generoso de chamar ao palco a composição original de sua banda, responsável por dar ao transe o formato musical mais intenso. Ouvia Transa como se fosse a minha casa em Salvador, mas me assaltava naquela minha imersão a imagem dos corpos negros vendendo cerveja, água, pipoca no festival de verão. Alguns corpos que davam a rasteira, tão propalada por Lélia Gonzalez, e se divertiam ao som de outros pretos que ocupavam os palcos. Por outro lado, corpos negros que também cansavam e me faziam lembrar que para eles o ano não começa depois do carnaval, mas bem antes, em todas as festas precarnavalescas lá estão aqueles corpos trabalhando à sua exaustão.
Claro que tantas pessoas negras circulavam pelos espaços se servindo de uma festa bonita, mas quando penso que Salvador é uma das cidades mais negras do Brasil, dou-me conta do que Patricia Hill Collins chamava atenção com o seu conceito de proporcionalidade. A quantidade de pessoas negras servindo era inversamente proporcional àquelas que estavam apenas e unicamente se divertindo. Essa dessemelhança me abatia como um torpedo. Não seria Salvador o meu refúgio, o meu quilombo?
Várias imagens de orixás tentavam me convencer de que sim. Da entrada da lagoa do Abaeté à roda que se formava em outra lagoa, passando por algumas imagens de outdoors tudo era um convite para a ancestralidade. Até mesmo a propaganda da prefeitura. Percebi, ainda sob o efeito do som de Caetano, que tudo isso é comércio, “tanto negócio quanto negociante” onde quem menos lucra sãos a pessoas negras que nas festas quanto não estão servindo, estão recolhendo os excessos, próprios do carnaval ou do verão, para se manterem na resiliência daquilo que é reciclo. E tudo parece que é um mesmo ciclo na Bahia. Tudo volta para onde começamos: a exploração. Não, não quero essa Bahia. Voltava a escutar Transa, mas algo em mim fenecia. Seria a imagem de Salvador desaparecendo “nas casas que me viam passar nos dois lados da janela”?
A resposta poderia e deveria ser sim, mas eu lembrava da imagem daquele senhor, de cabelos maduros e pele não tão clara, que se dirigia a mim para pedir o cardápio, anunciando, com o seu pedido, a minha cor que é a cor de Salvador. A Salvador, porém, mais que serve do que é servida. Somos tão fortes lá, pensava eu que queria me agarrar à esperança de estar num lugar mais acolhedor do que Recife. Lembrava que Salvador é o Brasil que raramente elege pessoas negras para o cargo majoritário e principal da cidade. Foi na hora que tocou o refrão “It’s a long way”.
Não obstante, eu não deveria rimar amor e dor. Logo eu que moro na filosofia. Deveria me resignar a minha Salvador idílica e para não cair naquela fossa deveria ouvir “Celly Campelo”. Pensava. Afinal, o que deveria me acompanhar era a cor, o sol e o mar da Bahia. Tanta coisa linda por lá! É, mas como diria outra música: “a vida é real e de viés”. E a cilada que meu amor por Salvador me armou respondia pelo nome contradição.
*Érico Andrade é psicanalista e professor de filosofia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Autor do livro Negritude sem identidade (n-1 edições) [https://amzn.to/3SZWiYS].
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