Por ELTON CORBANEZI*
Saúde mental, pandemia, precariedades: subjetivações neoliberais
A relação entre saúde mental, pandemia de Covid-19 e precariedades parece explícita. Não há dúvida de que a saúde mental dos indivíduos tenha sido prejudicada no contexto da pandemia de Covid-19, que assolou o mundo a partir 2020; tampouco que os processos de precarização da vida tenham sido intensificados no curso de tal acontecimento, sobretudo nos países em que o neoliberalismo figura como política econômica e forma de organização social.
A aparente evidência na relação entre os termos dissimula questões sociológicas e históricas mais complexas. O propósito deste artigo consiste precisamente em submeter tais termos à análise sociológica crítica, a fim de relacioná-los e problematizá-los a partir de suas construções e implicações históricas e sociais e, em especial, a partir dos processos contemporâneos de subjetivação neoliberal que os atravessam.
Quanto à saúde mental, trata-se de mostrar como tal terminologia se tornou usual e cotidiana a partir da apropriação neoliberal da crítica à psiquiatria, percebida politicamente até então como conservadora da ordem social.[i]Em geral, na vida cotidiana, o emprego do termo saúde mental ocorre, paradoxalmente, para referir-se à ausência dela. A pandemia de Covid-19, por sua vez, intensificou significativamente não apenas a produção do sofrimento psíquico e dos transtornos mentais, como também atributos próprios da subjetivação neoliberal, tais como a disponibilidade integral para o trabalho (para quem dele dispõe), a hiperprodutividade, a comunicação instantânea, a competição e a aceleração social, digital e mental.
Se a precariedade material e objetiva não é novidade desde a instauração do capitalismo moderno, intensificando-se cada vez mais, a precariedade subjetiva tem se tornado uma característica dominante do modo de vida hegemônico nas sociedades fundamentadas pela racionalidade neoliberal.[ii] Mais uma vez, não estamos diante “apenas” do sofrimento psíquico decorrente dessa forma de organização da vida social, mas também da instauração normativa de um modo de vida que vem de cima.
Flexibilidade, instabilidade, assunção de risco: uma forma de precariedade – entendida não exclusivamente como insuficiência e incerteza, mas como transitoriedade e provisoriedade – permeia o ethos dominante, para não dizer o modo de vida de “vencedores”. Karl Marx e Friedrich Engels (2007, p. 47) afirmavam que “[as] ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante”. A consideração vale igualmente para o estilo de vida. A precariedade subjetiva constitui uma norma da racionalidade neoliberal, que, como todo o resto, incide de maneira desigual sobre as diferentes classes sociais.
Saúde mental
Em 2021 o mundo assistiu a ginasta Simone Biles desistir de prosseguir na competição olímpica realizada em Tóquio. O motivo alegado pela atleta residia em sua saúde mental. Dois aspectos do fato merecem nosso destaque. O primeiro deles é o lugar-comum conferido à expressão saúde mental, seja para referir-se à sua ausência, seja para expressar a necessidade de autocuidado em relação a ela. “Saúde mental” (ou “mental health”, na língua mundialmente dominante) realiza a comunicação do problema em escala global.
Derivado do primeiro, o segundo aspecto faz entrecruzar o significado atual do conceito de saúde mental com o imaginário social e cultural das sociedades neoliberais. A desistência da atleta é tanto a recusa de prosseguir na competição como a necessidade de gerenciar a própria saúde mental. Se, por um lado, a recusa poderia emergir como resistência a tal imaginário – o sociólogo francês Alain Ehrenberg (2010) evidenciou como o atletismo de alta performance funciona como paradigma da sociabilidade contemporânea, baseada em desempenho, metas, realizações, superações[iii] –, por outro, o autocuidado com a própria saúde mental é mais uma incitação do próprio imaginário.
No limite, como reza a doutrina neoliberal, somos todos responsáveis pelas nossas condições – aí incluídas a saúde, de maneira geral, e a saúde mental, em particular. Nikolas Rose (2013) já chamou atenção para a tendência contemporânea segundo a qual nos tornamos economistas de nossa própria saúde (não a salvaguardar, consequentemente, tende a intensificar o sofrimento pela condição patológica). Mas como, afinal, o conceito de saúde mental estabeleceu-se em nosso imaginário social?
Para compreender a emergência do conceito de saúde mental, é preciso referir-se à história da outra extremidade, a loucura.[iv] Em História da loucura, Michel Foucault (2003) apresenta uma perspectiva histórica e empiricamente documentada sobre o tema. Não é o caso de abordar aqui a complexidade dos conceitos relativos à loucura nos períodos medieval, renascentista e clássico, conforme a periodização explorada na obra. Convém destacar que a doença mental – símbolo do nascimento da psiquiatria como ciência na modernidade – provém da transformação da experiência clássica da internação em objeto médico.
Dessa forma, o autor assinala que o significado médico conferido ao hospital é uma invenção moderna. No período medieval, o hospital cumpria função caritativa, de abrigo – “casa para hóspedes”, conforme a etimologia do termo. Na época clássica (séculos XVII e XVIII), torna-se estabelecimento de controle e de ordem social e política. A apropriação da experiência clássica da internação introduz o sentido médico consagrado pelo termo “doença mental”. Ao proceder genealogicamente, Foucault (2003) sustenta em sua tese que não se trata de “descoberta” do fato científico, tal como assinala a hagiografia médica da psiquiatria ao relatar sua própria história, mas de atribuição de sentido.[v]
A chamada “libertação dos acorrentados” – realizada por Philippe Pinel – atribui sentido médico à experiência clássica da desrazão ao reintegrar a loucura à razão, como um estado desta. Conceber a alienação mental como parte negativa da razão é percebê-la como um estado da própria razão, que pode ser, a partir de então, curada, reintegrada. De Pinel a Hegel é o que se passa na modernidade médica e filosófica: enquanto negação da razão, sem deixar de fazer-lhe parte, a loucura pode ser dialeticamente superada. Em termos médicos, a doença mental pode ser curada.
É o momento em que o hospital psiquiátrico emerge como dispositivo de cura nas mãos do médico alienista. É conhecido o axioma de Jean-Étienne Dominique Esquirol, o primeiro alienista de fato, se considerado o papel de médico-enciclopédico desempenhado por Pinel (Castel, 1978, p. 98): “Uma casa de alienados é um instrumento de cura; nas mãos de um médico hábil é o agente terapêutico mais potente contra as doenças mentais” (Esquirol, 1838, p. 398).
Poder médico, hospital psiquiátrico e doença mental formam, portanto, o esquema moderno da loucura que perdurou nos séculos XIX e XX. Mais do que conhecimento, trata-se de exercício de poder. “Se a personagem do médico pode delimitar a loucura, não é porque a conhece, é porque a domina” – eis a tese de Michel Foucault (2003, p. 498). A vontade reta do médico deve impor-se sobre a vontade perturbada do doente, assim como o hospital opera como pedagogia da ordem sobre o ser da desordem (Birman, 1978). Não obstante o propósito da cura médica, todos conhecemos hoje a dimensão catastrófica do modelo manicomial,[vi] que ainda não desapareceu por completo de nossa paisagem social.[vii]
É o projeto de desconstrução do modelo hospitalocêntrico que tornará possível o surgimento do conceito contemporâneo de saúde mental. Mas o conceito comportará também uma ambivalência. Por um lado, avanço social (é seu lado progressista, crítico ao modelo manicomial e em defesa dos direitos humanos); um movimento contrarrevolucionário, por assim dizer, tratará de capturar o conceito fazendo-o convergir com o imaginário social e cultural do capitalismo contemporâneo (é seu lado conservador, um efeito não intencional da crítica, o qual acaba por promover ideias como otimização, performance, produção de bem-estar).
Quanto ao primeiro sentido, o conceito de saúde mental toma forma a partir das reações descentralizadas de diferentes movimentos de reforma e de ruptura psiquiátricas. São as chamadas “psiquiatrias alternativas”, ou, mais genericamente, as “antipsiquiatrias”. Grosso modo, são movimentos que surgem nos anos 1960, na Europa e nos Estados Unidos. Entre as experiências mais reformistas, destacam-se a comunidade terapêutica inglesa, a psiquiatria comunitária ou preventiva norte-americana, a psicoterapia institucional e a psiquiatria de setor francesas.
Dispostas a romper radicalmente com o paradigma psiquiátrico hospitalocêntrico, notabilizam-se a antipsiquiatria inglesa e a psiquiatria democrática italiana. Não é o caso de examinar aqui as contribuições, as particularidades e as lideranças de cada uma dessas experiências alternativas. Para o nosso propósito, convém destacar que, enquanto contestação ao dispositivo psiquiátrico tradicional, tais movimentos contribuíram para a desospitalização e, ainda que de forma menos efetiva, para a desinstitucionalização da doença mental.[viii]
Diversos estudos publicados nos anos 1960 – tais como os de Thomas Szasz (1979), Ronald Laing (1978), Michel Foucault (2003), Erving Goffman (2007), David Cooper (1973), Franco Basaglia (1985) – também formaram uma “comunidade de ação” (Foucault, 1999b), embora não planejada enquanto tal, contra o dispositivo psiquiátrico hegemônico. Não obstante as sutilezas e complexidades que tais generalizações comportam, provém desse contexto o avanço social proporcionado pela crítica ao modelo manicomial, baseado no hospital psiquiátrico.[ix]
Quase meio século depois, mais precisamente em 2001, o Relatório mundial da saúde, da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi dedicado à saúde mental, com o título – bastante expressivo – Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Com efeito, o documento começa por reconhecer que o propósito fundamental da saúde mental, a saber, a desinstitucionalização da doença mental (a substituição do modelo hospitalocêntrico), não se concretizou globalmente.
Conforme o documento, trata-se de buscar consolidar a mudança de paradigma desencadeada, na segunda metade do século XX, por três fatores: o desenvolvimento da psicofarmacologia, a institucionalização dos direitos humanos e a incorporação do elemento mental no conceito de saúde da OMS (2001, p. 20 e 79). Substituir o modelo hospitalocêntrico por atendimentos e políticas de saúde mental na comunidade, humanizar e priorizar o tratamento na atenção primária, desestigmatizar e prevenir os transtornos mentais, equiparar a saúde mental à saúde física e promovê-la: tais são os objetivos fundamentais e indispensáveis propagados pelo relatório.
De fato, sua influência será decisiva, como se depreende da aprovação, no Brasil, da Lei 10.2016 no mesmo ano de publicação do relatório (Delgado, 2011). A chamada Lei da Reforma Psiquiátrica, vale notar, já tramitava havia 12 anos no Congresso Nacional. Não é nosso propósito examinar aqui os avanços e os obstáculos em torno da efetivação de tal política, mas evidenciar que o conceito de saúde mental emerge associado ao processo de humanização, desestigmatização e desinstitucionalização da doença mental. No limite, trata-se de superar a nomenclatura que coroou o nascimento da psiquiatria, substituindo-a pelo seu oposto: a saúde mental. O transtorno mental ou o sofrimento psíquico, expressões subsumidas ao guarda-chuva “saúde mental”, serão referidas cada vez mais como “problema de saúde mental”.[x]
Com efeito, o conceito de saúde mental torna-se cada vez mais abrangente. Ele envolve tanto o sofrimento psíquico, que, por sua vez, vai desde a psicose até a ansiedade, quanto o bem-estar. Vale notar que neste outro extremo do espectro (o bem-estar) reside a incorporação do elemento mental no conceito de saúde. Lembremo-nos da célebre e polêmica definição de saúde, que consta desde a constituição da OMS: “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (OMS, 1946, p. 1).
A controvérsia em torno da definição deve-se sobretudo à identificação da saúde com o bem-estar (em sua plenitude), equiparando-a e reduzindo-a, assim, à felicidade. Semelhante abrangência e indeterminação pode constituir, a nosso ver, um dos flancos fundamentais para a captura neoliberal do termo, transmutando sua significação social primeira. Não mais restrita ao espaço hospitalar, a psiquiatria – ciência régia do campo interdisciplinar, multiprofissional e paramédico da saúde mental[xi] – torna-se autorizada a intervir no espaço aberto da sociedade.
Mais do que isso, toda medicina do bem-estar e mecanismos suplementares (tais como nutrição, meditação e técnicas psicoterapêuticas) atuarão diretamente na produção do bem-estar, modulando e conformando os indivíduos. É o que chamamos de “biopolítica da saúde mental”: a apropriação do termo proveniente da crítica ao modelo psiquiátrico tradicional e a atribuição de um novo sentido. É verdade que tal sentido não é absolutamente novo.
Já nos anos 1980, Robert Castel (1987; 2011) chamava atenção para a “nova cultura psicológica” emergente, cuja “terapia para os normais” suplantava a distinção entre o normal e o patológico, autorizando a intervenção médica e técnica sobre a normalidade dos indivíduos para potencializá-los em sua dimensão relacional e profissional. A consolidação da saúde mental e sua transmutação semântica serão fundamentais para tal tecnologia de poder própria da governamentalidade neoliberal.[xii]
O uso ordinário da expressão, como aludimos anteriormente, explicita a preocupação biopolítica latente. O autocuidado com a saúde mental, que, muitas vezes, nada mais é do que a produção de um a mais de saúde, é uma política de gestão de conduta que prescinde de qualquer coerção externa para a maximização da força, dos potenciais e das qualidades.
Um aspecto fundamental analisado por Michel Foucault (2008b) em seu curso sobre o neoliberalismo alemão e norte-americano é justamente que tal tecnologia de poder opera a partir da racionalidade dos governados. Em um modelo social cindido entre “vencedores” e “perdedores”, é dos próprios indivíduos a responsabilidade pelo sucesso ou pela derrota. Em tal responsabilidade reside também a gestão da própria saúde mental, que opera, assim, como forma de controle social. É preciso manter-se em condições de produtividade, otimizando-as tanto quanto possível.
A saúde mental é também uma questão de ajustamento social. Com efeito, um dos critérios fundamentais para diagnosticar um transtorno mental reside no prejuízo da capacidade funcional. De uma saúde mental específica depende a “saúde” de um determinado modelo de sociedade. Pouco a pouco, como se vê, o conceito de saúde mental não apenas ganhou evidência na vida social cotidiana, como também seu significado crítico inicial foi em parte capturado e subvertido pelo imaginário social e culturalmente dominante do neoliberalismo.
Pandemia de Covid-19
Em março de 2020, a OMS decretou oficialmente a pandemia de Covid-19. Diante da súbita suspensão das atividades econômicas, que perdurou durante meses, diversas análises indagavam se estaríamos diante de uma crise do capitalismo e da sociabilidade vigentes. A crise sanitária global, associada às crises econômica e social decorrentes, bem como às crises climática e ambiental já instaladas, tornou a sociedade um verdadeiro laboratório a céu aberto para sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, filósofos, entre outros especialistas das ciências humanas e sociais.
A produção e a circulação de dados científicos entre pesquisadores de diferentes áreas envolvidas no combate à doença (infectologia, virologia, epidemiologia, biologia, física, matemática, entre outras) tanto quanto as análises sociais, políticas, econômicas, culturais, filosóficas, geográficas e históricas aconteceram em velocidade semelhante à disseminação do vírus em um mundo altamente globalizado.[xiii] Como a ruptura e o novo tendem a instalar-se a partir da crise, o primeiro momento foi de esperança social em muitas das análises realizadas no calor dos acontecimentos, não obstante o ceticismo de outra boa parte delas.
Com efeito, meses depois, mesmo sem o retorno presencial às atividades, já era possível constatar que tudo não apenas voltava ao “normal”, como o fazia em velocidade acelerada. A própria expressão “novo normal”, que inicialmente poderia ter uma conotação transformadora, passou a significar nada mais do que uma mudança cosmética e higiênica na sociabilidade vigente, acelerando o curso do “processo civilizador”, no sentido analisado pelo sociólogo Norbert Elias (2001; 2011).[xiv]
Um relativo consenso emergiu a partir da experiência. Por um lado, a pandemia operava como um “revelador fotográfico”, conforme a analogia usada por Peter Pál Pelbart (2021b, p. 14): “o que estava debaixo de nosso nariz, mas não enxergávamos, apareceu à luz do dia – uma catástrofe não só sanitária, social, política e ambiental, mas civilizacional”. Com efeito, a pandemia deixou a sociedade em carne viva. De certa maneira, mostrava a complexidade, a inter-relação e a inter-dependência absolutas que constituem a vida humana nas sociedades modernas, evidenciando a tese de Émile Durkheim (2010, p. 36) segundo a qual os indivíduos são “funcionários da sociedade”.[xv]
De nenhum trabalho essencial podia-se prescindir. Daí, provavelmente, a esperança social em torno de uma sociedade baseada efetivamente na solidariedade, que, no próprio sentido durkheimiano, não consiste em generosidade, mas em cooperação e responsabilidades coletivas. O oposto, portanto, do individualismo e das responsabilidades exclusivamente individuais intrínsecas ao imaginário neoliberal. Mas a pandemia mostrava também, de forma sensível, as feridas sociais. A crença inicial de que o vírus seria “democrático”, à maneira do mito da democracia racial, logo caiu por terra.
Eram os mais vulneráveis que estavam mais suscetíveis à catástrofe, como a primeira morte causada pelo vírus no Brasil – de uma empregada doméstica – já sinalizava desde o início, evidenciando, uma vez mais, como todo desastre “natural” devasta e avilta ainda mais as classes populares[xvi]. Dados foram comprovando como as populações pobres, negras, indígenas, quilombolas eram mais vulneráveis ao contágio e à letalidade do vírus. Também em escala global a desigualdade estava exposta.[xvii] A apropriação selvagem de máscaras, testes, respiradores e vacinas pelos países ricos comprometia a retórica humanitária de mandatários que exaltavam a guerra contra o vírus, ao mesmo tempo em que contrariava a premissa básica de que uma pandemia é, por definição, global.[xviii]
Por outro lado, também relativamente consensual tornou-se a constatação de que a pandemia de Covid-19 funcionava como acelerador de tendências. Ensino a distância, trabalho remoto, superaceleração digital, comunicativa e mental, disponibilidade para o trabalho sem direito de desconexão, precarização, plataformização, violências estruturais (de raça, de gênero, assédios no ambiente de trabalho). Se, de um lado, a pandemia constituía a condição de possibilidade histórica para o que se encontrava em estado de latência (o trabalho, o ensino e o atendimento médico à distância, por exemplo), de outro, acelerava o que já estava em curso.
Não foi diferente com a “saúde mental”, levando ao extremo o paradoxo da expressão quando se refere à ausência do que enuncia.[xix] Os problemas de saúde mental, conforme a terminologia corrente, entraram ainda mais na ordem do dia. Com efeito, assistimos ao aumento exponencial da incidência de depressão, de ansiedade, de estresse pós-traumático, tanto daqueles contaminados pelo vírus[xx] como ainda em função do isolamento social, do desemprego, das perdas privadas de luto, da insegurança generalizada, do aumento do alcoolismo, do excesso de trabalho dos que estavam na chamada “linha de frente” de combate à doença, mas também dos “uberizados” e do “cognitariado” ou “trabalhadores cognitivos” submetidos ao regime de trabalho total do capitalismo cognitivo e imaterial (Lazzarato & Negri 2001).[xxi]
Em uma palavra, a pandemia levou ao extremo a metáfora do “carro de Jagrená”, utilizada por Anthony Giddens (1991) para evidenciar a ausência de controle e de previsibilidade no mundo moderno, não obstante o projeto de racionalização que o fundamenta. Psicologicamente, o efeito da evidenciação do descontrole foi o aumento expressivo do sofrimento psíquico (ou dos “problemas de saúde mental”).
Vejamos os dados. Conforme o Scientific Brief publicado pela OMS em março de 2022, a pandemia de Covid-19 desencadeou o aumento de 25% da prevalência de ansiedade e de depressão no mundo (Opas, 2022a). Os mais atingidos são jovens e mulheres. No caso dos jovens, provavelmente em razão do fechamento de escolas, da restrição do convívio social, do medo do desemprego e das inseguranças que já caracterizam e assolam essa fase da vida. No das mulheres, devido à intensificação da violência doméstica e da sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidado, bem como às desigualdades estruturais de gênero, somadas, ainda, às preocupações comuns da humanidade em relação ao vírus, não obstante as diferentes condições de vida para proteger-se dos riscos.[xxii]
Estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de Queensland, na Austrália, também mostrou aumento de 28% de depressão (53,2 milhões de novos casos) e de 26% de ansiedade (76,2 milhões de novos casos) em decorrência da pandemia (Santomauro et al., 2021). Com base em relatórios de 204 países e considerando o período de janeiro de 2020 a janeiro de 2021, o estudo evidencia, da mesma forma, a maior incidência dos transtornos em jovens e mulheres.
No Brasil, especificamente, levantamento em conjunto realizado pela organização global de saúde pública Vital Strategies e pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no primeiro trimestre de 2022, mostrou que houve o aumento de 41% nos casos de depressão no país (Vital Strategies & UFPel, 2022). Entre as mulheres, a elevação foi de 39,3%. Também a depressão pós-parto cresceu em 20% durante a pandemia, conforme estudo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Galetta et al., 2022).
Em março de 2020 – portanto, no início da pandemia –, o pneumologista Victor Tseng, do Hospital Universitário Emory, em Atlanta, Estados Unidos, divulgou um gráfico mostrando os impactos da Covid-19 nos sistemas de saúde. A quarta onda, marcada por uma ascensão contínua no decurso da pandemia, seria constituída, segundo a previsão, de trauma psicológico, doenças mentais, síndrome de burnout e prejuízos econômicos.[xxiii] Tais dados e informações revelam a intensificação do que já estava em curso. Em 2017 – portanto, antes da pandemia –, a OMS havia divulgado o aumento, entre 2005 e 2015, de 18,4% de casos de depressão e de 14,9% de transtornos de ansiedade no mundo.
No entanto, a pandemia não teve por consequência apenas o aumento da incidência dos transtornos mentais. Ao evidenciar ainda mais a importância do problema, a pandemia expôs o subinvestimento histórico, em escala global, nos serviços de saúde mental conforme Dévora Kestel (Opas, 2022a), diretora do Departamento de Saúde Mental e Uso de Substâncias da OMS.[xxiv]
É verdade que parte significativa dos problemas de saúde mental recai sobre as populações mais vulneráveis e desassistidas.[xxv] Porém, os problemas de saúde mental são também o revés da subjetivação neoliberal, isto é, do modo de produção de existência, de subjetividade e de estilo de vida na cultura capitalista contemporânea, predominantemente neoliberal. Pierre Dardot e Christian Laval (2016, p. 357) conceituaram tal modo de conduzir e governar a vida como “ultrassubjetivação”. Se o princípio vital do neoliberalismo é a competição ilimitada, em última instância a competição não é apenas com os outros, mas consigo próprio.[xxvi]
Trata-se de uma ética – no sentido weberiano de conduta de vida (Weber, 2004) – do desempenho produzida pela cultura neoliberal e incorporada pelos indivíduos como se fosse natural. O ethos do atleta de alta performance tornou-se a norma: realizar-se, cumprir e superar metas. Mas o princípio da autossuperação ilimitada implica, paradoxalmente, a autossupressão. Com efeito, Alain Ehrenberg (1996) já mostrou como o sucesso e o fracasso constituem duas faces do mesmo governo de si próprio do imaginário neoliberal, caracterizado pelo autor a partir da suposta autonomia como norma social.
A explosão dos casos de depressão, conforme o estudo do sociólogo francês sobre o tema, provém do esgotamento individual e da forma de nomear o sofrimento psíquico nessa nova forma organização social segundo a qual os indivíduos devem realizar, sob sua exclusiva responsabilidade, as melhores escolhas (Ehrenberg, 1998). Com efeito, de acordo com a lógica do capital humano, em cada escolha individual reside um investimento com diferentes potenciais de rendimentos e retornos futuros, tal qual uma “carteira” ou “portfólio” de investimentos financeiros. O fracasso é também individual, conforme o raciocínio amplamente difundido e incorporado na cultura capitalista contemporânea.
A “ultrassubjetivação” neoliberal que governa os indivíduos sem uma coerção externa evidente (portanto, a partir de uma suposta liberdade) produz o “neossujeito” com seus diagnósticos clínicos (Dardot & Laval, 2016, p. 361-372). Isso significa que não estamos mais no campo da neurose freudiana, possível a partir do paradigma disciplinar da interdição. No modelo social pós-disciplinar em que impera a competição ilimitada e no qual os indivíduos concebem a si próprios como empresa, os tipos de sofrimento psíquico são principalmente a depressão (expressão do fracasso), a ansiedade (manifestação da angústia proveniente do risco sempre iminente) e a síndrome de burnout (efetuação do esgotamento laboral).[xxvii]
Não à toa, uma palavra nova surgiu quando do retorno às atividades “normais” após o avanço da vacinação e a contenção da letalidade do vírus SARS-CoV-2. “Re-entry anxiety” passou a designar não apenas a ansiedade em função do retorno que requer protocolos de biossegurança no contexto pandêmico, mas também a angústia de se defrontar novamente com as atividades consideradas normais (Reynolds, 2021). Em sua genealogia do neoliberalismo a partir do embate entre Walter Lippmann e John Dewey – considerando a maneira como estes recorrem ao evolucionismo darwinista –, Barbara Stiegler (2019; Corbanezi, 2021b) explicitam como a questão fundamental para o neoliberalismo, desde sua elaboração, consiste em fazer o indivíduo adaptar-se às exigências cada vez mais elásticas desse modelo societário.
O mantra da flexibilidade emerge, nesse sentido, como estratégia para fazer adaptar. Porém, o número cada vez maior de sofrimento psíquico – intensificado no contexto pandêmico – pode mostrar a resistência humana natural a semelhante processo de adaptação, não obstante a produção psicofarmacológica à disposição para normalizar e otimizar condutas e capacidades individuais.
Precariedades
Sabe-se que a pandemia intensificou também os processos de precarização da vida. Pode-se dizer que a precariedade é praticamente uma instituição moderna,[xxviii] razão pela qual não houve novidade no contexto pandêmico, senão a aceleração do curso “normal” das sociedades capitalistas. A precariedade está presente desde a instauração do industrialismo moderno, com a exploração da mão de obra também infantil e feminina em longas jornadas de trabalho alienado e desprovido de direitos nas fábricas. A sociedade e a exploração capitalistas não se realizam sem a precariedade. É o que se sucedeu nas diversas etapas históricas do capitalismo moderno (liberalismo, taylorismo-fordismo, welfare state, neoliberalismo), não obstante suas diferenças de grau.
Nas sociedades neoliberais, o processo de precarização é levado ao extremo com a retirada sistemática das redes de proteção social e a desregulamentação em favor do mercado e do capital, desfavorecendo – tanto objetiva quanto subjetivamente – ainda mais as classes populares e trabalhadoras. Não se trata propriamente de uma “redução” do Estado, como a expressão “Estado mínimo” pode dar a entender. Um Estado forte está na doutrina neoliberal desde a formulação do ordoliberalismo alemão até o legado de Walter Lippmann, Friedrich Hayek e Milton Friedman no neoliberalismo norte-americano (Foucault, 2008b; Dardot & Laval, 2016).
A questão fundamental é de que lado o Estado está: se atua – conforme expressão de Pierre Bourdieu (1998, 2008a) – com a “mão direita”, isto é, a favor de políticas econômicas que favorecem as classes dominantes, ou com a “mão esquerda”, em termos de desenvolvimento de políticas sociais. No neoliberalismo, em suas variadas formas empíricas existentes, predomina o que Loïc Wacquant (2012, p. 512) designou como um “Estado-Centauro”, com faces distintas representando a dualidade em relação aos extremos da estratificação social: edificante e libertador no topo e penalizador e restritivo na base.
Segundo essa lógica, na forma neoliberal predominante nas sociedades capitalistas ocidentais há uma “precariedade de base” institucionalizada. Retirada de direitos sociais, plataformização, uberização, desregulamentação do trabalho, informalidade, subcontratação, degradação salarial, desmantelamento de serviços públicos essenciais como saúde e educação. Todos esses procedimentos, que prejudicam sobretudo as classes populares e desfavorecidas, constituem a precariedade da base da pirâmide social. Sua dimensão é objetiva e socialmente estruturada.
Pierre Bourdieu (1998) sublinhava, nos anos 1990, que a precariedade nas sociedades neoliberais não é fatalidade econômica, mas estratégia política: enquanto tal, ao mesmo tempo em que instaura uma guerra generalizada mediante a competição de todos contra todos, desmobiliza coletividades como associações, sindicatos e a própria solidariedade entre os indivíduos.[xxix]
Entretanto, a precariedade não se localiza estritamente na base da pirâmide social. Para efetivar-se, ela precisa também circular como valor desde as classes dominantes, constituindo-se como norma social. Convém assinalar que a teoria econômica do capital humano também teve a necessidade de se converter em valor social para poder orientar a conduta dos indivíduos, como se nota, por exemplo, na transformação radical da concepção de consumo como forma de investimento na atualidade (López-Ruiz, 2007).
Não obstante as diferenças, pode-se dizer que a precariedade é, de certa forma, o modus operandi (ao menos ideologicamente) do modo de vida de indivíduos que integram as classes dominantes. Em termos de institucionalização e norma social e cultural, o processo pode assemelhar-se tanto à constituição da autoimagem de superioridade da civilização ocidental, tal como analisada por Norbert Elias (2011), quanto à instauração da cultura “legítima”, conforme a sociologia da cultura de Pierre Bourdieu (2007).
Em ambos os casos, o que se converte em valor social considerado legítimo e superior, com implicações em termos de relações e exercício de poder, provém das nações, dos povos e das classes dominantes. No limite, poderíamos dizer, não sem controvérsias, que tais demonstrações sociológicas são variações do raciocínio segundo o qual as ideias dominantes de uma época são as ideias das classes (e dos povos) dominantes (Marx & Engels, 2007).[xxx]
Nesse sentido, conforme a formulação de Laval (2017, p. 101), é possível afirmar que há uma “cultura da precariedade” e até mesmo uma “precariedade de luxo”. É evidente que a dimensão e os efeitos da precariedade são absolutamente diversos entre as classes sociais, variando desde a distinção até a violência social, econômica e cultural. Mas é importante notar que ela também provém do modo de vida predominante, difuso entre empresários e executivos de alta performance que promovem a incerteza, o risco, a mobilidade, a velocidade, a flexibilidade e a desterritorialidade, tais quais os atributos do capital financeiro.
A famosa metáfora da “liquidez” elaborada por Zygmunt Bauman (2001) expressa de maneira precisa a transformação da estabilidade moderna (em nome da ordem social) em institucionalização da instabilidade contemporânea (em nome da suposta liberdade individual). Nesses termos, a produção da instabilidade – característica intrínseca à precariedade – não se restringe a dominados, não obstante a precarização cres cente da classe trabalhadora promovida pelas classes dominantes. Na sociedade dividida entre “vencedores” e “perdedores”, à maneira de competições esportivas, são os que assumem riscos e incertezas os que podem alcançar o pódio social, reza a literatura management.
Em outros termos, são os “riscófilos” (“dominantes corajosos”) os vitoriosos em potencial, por oposição aos “riscófobos” (“dominados temerosos”), aos quais só resta a responsabilidade por sua condição de fracassados, segundo os preceitos neoliberais (Laval, 2017, p. 104). O “capitalismo flexível” analisado por Richard Sennett (2019) não reside apenas na flexibilização produtiva e trabalhista própria do paradigma produtivo vigente. Ser flexível – consequentemente, mais adaptável – é a norma de uma conduta de vida cujo exemplo vem de cima. A “força de caráter” do capitalista hoje – diz Sennett – é a de “alguém que tem a confiança de permanecer na desordem, alguém que prospera em meio ao deslocamento. […] Os verdadeiros vencedores não sofrem com a fragmentação” (Sennett, 2019, p. 72).
Em sentido lato, precariedade significa não apenas insuficiência e escassez, mas ainda incerteza, provisoriedade, instabilidade, transitoriedade. Se as últimas acepções intensificam as primeiras quando experimentadas pelas classes populares, são os mesmos últimos significados que atestam o verdadeiro pedigree dos “riscófilos”. Velocidade para múltiplos deslocamentos (geográficos, digitais, interorganizacionais, profissionais), polivalência, resiliência, flexibilidade, autonomia e otimismo. Segundo os preceitos gerencialistas socialmente difusos, todas essas características constituem os verdadeiros diferenciais que tornam possível o sucesso na atual fase do capitalismo, quando conjugadas com inteligência, criatividade, capacidade comunicativa, capital social.
Pouco a pouco, a precariedade, nesse sentido ampliado, pode então constituir-se como cultura, norma e até mesmo distinção social. Para o ethos empresarial e executivo dominante, a estabilidade tornou-se sinônimo de acomodação, preguiça, fracasso. Não à toa a estabilidade no serviço público constitui um dos alvos privilegiados do discurso neoliberal desde os anos 1990. Na “modernidade líquida” analisada por Bauman (2001) – em que os próprios laços sociais são provisórios e descartáveis, ao sabor da conveniência –, a transitoriedade entre diferentes trabalhos e a flexibilidade neles constituem uma disposição fundamental para o sucesso.
Um exemplo da promoção de tal ideia reside no conceito de “carreiras sem fronteiras”, segundo o qual os investimentos permanentes na empregabilidade e na mobilidade entre carreiras são vitais para uma minoria de trabalhadores altamente qualificados que ocupam o topo da hierarquia social (Souza, Lemos & Silva, 2020). Percebe-se como a precariedade concerne o ethos dominante, embora sua extensão social e sua forma concreta implique desigualmente classes e grupos sociais. Tanto quanto as ideias, o estilo de vida dominante tende a ser o estilo de vida dos dominantes, que são indivíduos desterritorializados, velozes, promotores do risco e da incerteza – nos termos de Bauman (2001, p. 22), os “senhores ausentes”, cujo protótipo é Bill Gates.[xxxi]
Ao diagnosticar a passagem da formação histórico-social disciplinar para o regime de controle pós-disciplinar, em que o imperativo empresarial da mobilidade, da velocidade e da formação permanente operam a céu aberto, Gilles Deleuze (1992, p. 226) sentenciava: “os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira”. Não obstante a consideração do autor de que cada regime tem suas sujeições e liberações próprias, eis uma forma de dizer que a modulação (adaptação, flexibilidade, instabilidade) se revela mais perniciosa do que a moldagem institucional disciplinar.
Mas a racionalidade neoliberal – baseada nos princípios da ilimitação, da competitividade, da transitoriedade, da mobilidade, da velocidade e da desterritorialidade – intensifica não “apenas” a precariedade objetiva como provoca também precariedade subjetiva como padrão. De acordo com a socióloga Danièle Linhart (2009), mesmo entre assalariados estáveis a lógica gerencial das sociedades capitalistas contemporâneas suscita a precariedade subjetiva generalizada a partir da exigência de produtividade excessiva, da competição entre pares e instituições e da consequente individualização e isolamento social.[xxxii]
O efeito desse modo de vida dominante, baseado na autoexploração subjetiva, no risco e no excesso próprios da chamada “sociedade do desempenho” (Han, 2017), é a produção do desgaste, do sofrimento psíquico e dos transtornos mentais (síndrome de burnout, depressão, ansiedade, insônia), ainda que – convém sempre insistir – a incidência, a forma e os graus de precariedade sejam profundamente diversos entre as classes sociais e suas diferentes ocupações.[xxxiii]
A pandemia de Covid-19 intensificou também a precariedade subjetiva. Após uma breve suspensão das atividades, tudo retornou de forma ainda mais acelerada, ainda que no modo “a distância”. Contudo, não é impróprio notar que, durante a crise pandêmica, as elites econômicas que apregoam a flexibilidade e o nomadismo ultraveloz tenham se acomodado no conforto de suas casas à maneira atracada do sedentarismo da modernidade sólida, diferentemente dos trabalhadores das diversas “linhas de frente”, cuja precarização objetiva e subjetiva avilta uma vez mais suas condições estruturais e estruturantes, nos termos do estruturalismo genético de Pierre Bourdieu (1983).
Nesse sentido, conforme certifica o antropólogo João Biehl (2021, p. 243), a pandemia deve ser considerada um evento “crônico agudizado”, na medida em que expôs vulnerabilidades estruturais e modos de funcionamento do modelo societário hegemônico. A pandemia constitui, assim, um acontecimento sociológico de suma importância.
Conclusão
Ao examinar os processos contemporâneos de subjetivação neoliberal, analisamos tanto isoladamente como em relação os conceitos-acontecimentos “saúde mental”, “pandemia de Covid-19” e “precariedades”. Enquanto sujeição e modo de produção de existência, os processos de subjetivação em curso tendem a produzir uma forma de subjetividade dominante e comum, a despeito da incitação à diferença individual própria do imaginário neoliberal. Não obstante o princípio da otimização da saúde mental, conforme a transmutação semântica deste conceito a partir da sua apropriação neoliberal, as sociedades ocidentais capitalistas contemporâneas não apenas reforçam a precariedade objetiva – em particular em sociedades periféricas, como a brasileira – como provocam ainda a precariedade subjetiva.
Tais processos foram significativamente intensificados no período da pandemia, acentuando a contradição segundo a qual uma sociedade que incita constantemente o desempenho e a promoção da saúde mental produz, paradoxalmente, o cansaço e o sofrimento psíquico (Han, 2017), tal qual a infelicidade crônica enquanto efeito de uma sociedade que concebe a vida exclusivamente como busca de felicidade (Sahlins, 2004, p. 23).
Conjugados, os termos “saúde mental”, “pandemia” e “precariedades” apontam para uma subjetivação caracterizada pelo esgotamento, uma relação com a subjetividade semelhante ao modo como o capitalismo extrativista e predatório se relaciona com a natureza e o meio ambiente. Em outros termos, no contexto da racionalidade neoliberal pós-pandêmica, testemunha-se também o esgotamento da ecologia psíquica, o que pode configurar nossa contemporaneidade como época de esgotamento total, quando considerada conjuntamente a relação industrial do ser humano com a natureza e consigo próprio.
Por um lado, semelhante afirmação pode incitar a necessidade de inventar e promover novas formas de subjetividade, recusando (e resistindo a) esta que nos foi silenciosamente imposta (Foucault, 1994, p. 239). Por outro, uma vez que não somos uma sociedade contra o Estado – como os povos indígenas estudados por Pierre Clastres (2013) –, é necessária uma organização estatal que esteja a favor da sociedade, ao contrário do famoso lema neoliberal thatcheriano segundo o qual “there is no society, only individuals”.
A saída da crise do esgotamento total proveniente da racionalidade neoliberal e intensificada no contexto pandêmico requer a invenção de outras formas de sociabilidade não destrutivas, como a baseada nos princípios do individualismo, da precariedade e da competição ilimitados.
*Elton Corbanezi é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Autor de Saúde mental, depressão e capitalismo (Unesp).
Publicado originalmente na Revista Sociedade e Estado (UnB), v. 38, n. 2, 2023.
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Notas
[i] Trata-se de lógica semelhante à apropriação pelo capitalismo contemporâneo pós-disciplinar dos elementos que embasavam tanto a crítica ao trabalho taylorista como a produção artística (a saber: criatividade, invenção, afetos, mobilidade, flexibilidade), como mostram Luc Boltanski e Ève Chiapello (2011). Vigentes no paradigma produtivo atual, que valoriza a subjetividade, tais características se opunham à repetição maquinal presente no trabalho em sua forma disciplinar (Lazzarato & Negri, 2001).
[ii]A respeito da expressão conceitual “racionalidade neoliberal”, ver, especialmente, Pierre Dardot e Christian Laval (2016), cujo trabalho segue o caminho inaugurado por Michel Foucault (2008b) em sua análise sobre a racionalidade política do neoliberalismo. Ver também Elton Corbanezi e José Miguel Rasia (2020).
[iii] Christian Laval (2020, p. 280-281) sublinha igualmente como o esporte de competição é “a metáfora da ilimitação humana no coração do imaginário neoliberal”.
[iv] A exposição que se segue, nesta seção do artigo, baseia-se especialmente em Corbanezi (2021a).
[v] Com efeito, o procedimento genealógico de Friedrich Nietzsche (1998) consiste em evidenciar apropriação e atribuição de sentido ao conhecimento, aos valores, à linguagem e às finalidades institucionais. Questionado, o próprio Foucault (1994, v. 4, p. 731) reconhece que sua História da loucura poderia ser compreendida como uma “‘nova genealogia da moral’ […] sem a solenidade do título e a grandeza que Nietzsche lhe impôs”..
[vi] A esse respeito, ver, por exemplo, o livro-reportagem de Daniela Arbex (2013).
[vii] Sobre o tema, ver o relatório do Conselho Federal de Psicologia (2020). Realizada em dezembro de 2018, a inspeção nacional examinou 40 hospitais psiquiátricos no Brasil, localizados em 17 estados das cinco regionais nacionais. Conforme o relatório, (CFP, 2020, p. 17), a amostra corresponde a cerca de um terço do total de hospitais psiquiátricos com leitos públicos em funcionamento no país. O relatório termina com recomendações para uma efetiva desinstitucionali-zação, conforme estabelece a Lei 10.2016/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica), uma vez que “os estabelecimentos inspecionados cumprem diversos requisitos que os caracterizam como asilares, violadores de direitos humanos e, em muitos dos casos relatados, perpetradores de práticas de tratamento desumano, degradante e de maus tratos” (CFP, 2020, p. 506).
[viii] A desinstituciona-lização é um processo mais radical de ruptura, que não significa apenas a desospitalização, mas a desmontagem do dispositivo psiquiátrico que institucionalizou a doença mental e a implementação de uma rede sólida de alternativas comunitárias. Nesse sentido, destaca-se a experiência da psiquiatria democrática italiana, com o estabelecimento da Lei 180, também conhecida como “Lei Basaglia”, em 1978 (OMS, 2001, p. 80-81 e 122). Sobre o conceito de desinstitucio-nalização, ver Denise Dias Barros (1990).
[ix] Etimologicamente, o vocábulo “manicômio” consiste na conjunção do termo grego manía (loucura, demência) e do verbo grego koméó (tomar cuidado, cuidar) (Houaiss & Villar, 2009).
[x] No Relatório (OMS, 2001), o termo “doença mental” aparece de forma diminuta, ao passo que as expressões “problema de saúde mental” e “transtorno mental” são abundantes. Do mesmo modo, a apresentação da publicação da 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), da OMS, emprega a expressão “condições de saúde mental” para referir-se aos transtornos mentais (Opas, 2022). É importante registrar que o termo “transtorno mental” (mental disorder) foi utilizado desde a primeira edição do DSM (American Psychiatric Association, 1952) em virtude da ausência de conhecimento fisiopatológico a respeito das doenças mentais (mental illness). Sua definição aparece com variações sutis desde o DSM III (American Psychiatric Association, 1980). Em conformidade com o DSM, a Classificação Internacional de Doenças (CID), da OMS (1993) e da Opas (2022a), também emprega o termo “transtorno” (disorder) para as patologias mentais, ao passo que, para outras espécies patológicas, utiliza, efetivamente, os conceitos de “doença” ou “enfermidade”.
[xi] Para além de psiquiatras, o campo da saúde mental é constituído por enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, educadores e terapeutas ocupacionais, entre outros.
[xii] A propósito da governamentalidade neoliberal em relação à “nova cultura psicológica” pós-psicanálise, que circunscreve a chamada “terapia para os normais”, ver o “Prefácio” de Castel (2011) à reedição de seu livro, 30 anos após o lançamento.
[xiii] A esse respeito, ver, por exemplo, a iniciativa Pandemia crítica, da Editora N-1, que, durante aproximadamente cinco meses, publicou em seu site um texto por dia de intelectuais, artistas, lideranças indígenas, entre outros analistas e ativistas de todo o mundo (Pelbart & Fernandes, 2021; 2021a). Os textos estão disponíveis também em: <https://www.n-1edicoes.org/textos>. Acesso em: 21 ago. 2022.
[xiv] Conforme Elias (2011), o nojo, a vergonha e a culpa constituem três importantes vetores na psicogênese do longo processo civilizador ocidental. Tudo indica que o chamado “novo normal” tenha se tornado uma aceleração no curso higiênico do processo civilizador tal como analisado pelo sociólogo alemão, considerando a relativa manutenção dos protocolos de biossegurança (máscaras, álcool em gel, evitação do contato humano) após a contenção da pandemia. Segundo a perspectiva de Elias (2001), poderíamos dizer ainda que a pandemia levou ao extremo a solidão a que estão condenados os moribundos, considerando os necessários isolamentos no interior da própria casa, no hospital e no ritual funerário, cingido de uma brutal assepsia no contexto da crise sanitária. A respeito de nossa problematização sobre “o novo normal”, ver Corbanezi (2022).
[xv] Ao lançar mão da terminologia kantiana, Durkheim assim apresenta o “imperativo categórico da consciência moral”, que estaria tomando forma nas sociedades modernas: “Coloca-te em condições de cumprir proveitosamente uma função determinada” (Durkheim, 2010, p. 6, grifos no original).
[xvi] Sobre a primeira morte causada pela Covid-19 no país, ver Cláudia Collucci (2022). Grafamos “natural” entre aspas considerando que catástrofes classificadas como “naturais” são, em larga medida, consequências não intencionais (e, portanto, não previstas) do desenvolvimento científico e tecnológico das sociedades industriais (Beck, 2011).
[xvii] Conforme análise de Mike Davis (2020) em plena crise, a pandemia do novo coronavírus – agudizada pela austeridade fiscal – acirrou a desigualdade entre os países e no interior deles, impondo o aumento da miséria à classe trabalhadora e a grupos mais vulneráveis e repetindo, assim, a história de outras crises globais no/do capitalismo, tais como a pandemia da gripe espanhola em 1918 e as crises econômicas de 1929 e 2008.
[xviii] Para uma compreensão alternativa ao paradigma bélico da concepção do vírus, ver Ferreira (2020).
[xix] A expressão “sintomas de saúde mental” (Barbosa et al, 2021) para referir-se a sintomas de ansiedade, depressão e estresse, por exemplo, explicita o paradoxo em questão.
[xx] Referimo-nos à condição pós-Covid-19, também chamada de Covid longa e neurocovid (sintomas neurológicos e psiquiátricos decorrentes da Covid-19). A condição pós-Covid-19 recebeu definição clínica oficial pela OMS em outubro de 2021 (UN, 2021). Sobre a condição pós-Covid, ver <https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/coronavirus-disease-(covid-19)-post-covid-19-condition>. Acesso em: 24 ago. 2022.
[xxi] A categoria dos “trabalhadores cognitivos” envolve diferentes segmentos, como trabalhadores de escritórios de grandes empresas, professores, pesquisadores, entre outros profissionais que engajam em suas atividades capacidades cognitivas como inteligência e criatividade. Por essa razão, conforme Franco “Bifo” Berardi, a categoria não é redutível a uma classe social. Segundo o pensador e ativista político italiano, o que poderia uni-los em um “processo de autorreflexão, de rebelião e de união da subjetividade cognitária é o sofrimento psíquico, o mal-estar ético e existencial” (Berardi, 2019, sp).
[xxii] Conforme advertência do líder indígena Ailton Krenak (2020, p. 6) logo no início da pandemia, o vírus não consistia em uma ameaça ao planeta Terra, mas tão somente à humanidade, razão pela qual o vírus colocava em questão a perspectiva antropocêntrica própria da civilização ocidental.
[xxiii] O gráfico original pode ser conferido no link a seguir: <https://twitter.com/VectorSting/ status/1244671755 781898241>. Acesso em: 25 ago. 2022. A partir do conceito de sindemia (interação sinérgica entre duas ou mais doenças, em que os efeitos se potencializam reciprocamente), projeção global semelhante pode ser conferida em José Patrício Bispo Júnior e Djanilson Barbosa dos Santos (2021, p. 8). Convém observar, contudo, que estudo da UFG em parceria com Unifesp, Ufes e Universidade de Zurique (Suíça), publicado em junho de 2022, mostrou que, no Brasil, os níveis de ansiedade e de depressão foram menores na quarta onda de Covid-19 (janeiro de 2022) do que na primeira (junho de 2020). O motivo principal é que, na quarta onda, os participantes da pesquisa estavam menos isolados e fisicamente mais ativos do que na primeira. Entretanto, apesar da redução, os níveis de depressão e ansiedade permanecem elevados, sublinham os autores.
[xxiv] A propósito da carência nos serviços de saúde mental no Brasil, ver a série de reportagens da Folha de S. Paulo intitulada “Brasil no Divã”, em especial a matéria de Júlia Barbon e Adrian Vizoni (2022).
[xxv] A esse respeito, ver, por exemplo, o estudo sobre os graves impactos da violência na saúde mental dos moradores da Maré, complexo de favelas no Rio de Janeiro (Redes da Maré & Peoples Palace Projects, 2021). A pesquisa foi realizada em parceria com a Escola de Serviço Social e o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bem como o Núcleo de Estudos em Economia da Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
[xxvi] Eis a maneira como os autores caracterizam a “ultrassubjetivação”: “Em última análise, subjetivação ‘contábil’ e subjetivação ‘financeira’ definem uma subjetivação pelo excesso de si em si, ou, ainda, pela superação indefinida de si. […] De certa forma, trata-se de uma ‘ultrassubjetivação’, cujo objetivo não é um estado último e estável da ‘posse de si’, mas um além de si sempre repelido […].” (Dardot & Laval, 2016, p. 356-357, grifos no original).
[xxvii] A respeito do cansaço como efeito da sociedade do desempenho, ver Byung-Chul Han (2017) e Corbanezi (2018).
[xxviii] Pensamos, aqui, na forma como Giddens entende o conceito de “instituição” em sua teoria da estruturação, a saber: como práticas sociais rotinizadas reconhecidas pelos membros de uma coletividade (Giddens, 2009, p. 20; Cohen, 1999, p. 426-427).
[xxix] Não é nosso propósito aqui aprofundar o estudo sobre o tema da precariedade no mundo do trabalho contemporâneo, tal como abordado de forma ampla e notável pela sociologia do trabalho. Por isso, limitamo-nos a indicar algumas referências relevantes sobre a questão. Internacionalmente, podem-se destacar Robert Castel (2010) e de Guy Standing (2014); nacionalmente, notabilizam-se os estudos de Ricardo Antunes, Ruy Braga, Tânia Franco, Graça Druck, Cinara Rosenfield, entre outros.
[xxx] Sabe-se que tanto Elias (2000) como Bourdieu (1989) criticam o suposto reducionismo econômico a partir do qual o materialismo histórico de Marx e Engels conceberia a desigualdade e o conflito social. As ideias, no entanto, estão no campo simbólico, por meio do qual, segundo os próprios sociólogos contemporâneos, se dão também as relações de poder.
[xxxi] Richard Sennett (2019, p. 71-72) exemplificara o embate dos paradigmas fordista versus flexível-cognitivo mediante igualmente as figuras de Rockfeller e Bill Gates, respectivamente, os quais constituem os modelos da modernidade sólida e da modernidade líquida, nos termos de Bauman (2001).
[xxxii] A respeito dessa realidade na política e na vida acadêmica, ver nosso breve ensaio sobre produtivismo acadêmico e saúde mental (Corbanezi, 2021c).
[xxxiii] A respeito do desgaste mental proveniente das novas relações de trabalho e da precarização, ver Tânia Franco, Graça Druck & Edith Seligmann-Silva (2010).
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