Saúde mental, neoliberalismo e subjetividade

Imagem: Bilal Mansuri
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Por ELTON CORBANEZI*

O sofrimento psíquico é uma catástrofe global, possivelmente tão importante quanto a ecológica, à qual, contudo, a atenção volta-se especialmente ao indivíduo, desconsiderando o aspecto estrutural da sociedade

Introdução

Tanto no senso comum quanto na opinião pública, é lugar-comum a constatação de que o modo de vida na sociedade contemporânea compromete a saúde mental dos indivíduos. Não obstante essa percepção social, são os mesmos indivíduos que são instados a gerir sua própria saúde mental mediante autocuidados diversos. A essa dupla observação, duas questões se impõem: como compreender sociologicamente a implicação e a reflexividade entre concepção de vida e saúde mental nos dias atuais? E como a sociologia, em sua contribuição clínica, pode pensar as linhas de fuga diante da catástrofe psíquica?

Recentemente, o historiador Jérôme Baschet (2021) afirmou que o século XXI teve seu início com o advento da pandemia de covid-19 em 2020, da mesma forma que, para muitos historiadores, o século XX teria começado em 1914, com o ciclo das guerras mundiais. Como se sabe, a pandemia de covid-19 foi, de fato, um acontecimento global significativo para a humanidade como um todo e, em particular, para as sociedades ditas “civilizadas” ou “avançadas”[i], entre as quais o capitalismo, em sua forma atual neoliberal, figura como organização social hegemônica.

Entendida como fato social total[ii], a pandemia tanto intensificou processos sociais tendenciais – aceleração social, mental e digital, trabalho e educação remotos, precarização do mundo do trabalho, decomposição salarial, individualização, desigualdades e violências socioeconômicas, raciais, étnicas, geográficas e de gênero – quanto foi percebida como antecâmara da catástrofe ecológica (Castro, 2021; Danowski, 2021; Descola, 2021; Latour, 2020), uma vez que tinha em comum com esta a ameaça à experiência humana no planeta.[iii]

Mas uma outra crise também já estava em curso e foi agudizada com a pandemia de covid-19. Trata-se da crise psíquica (Corbanezi, 2023), para a qual o crítico cultural Mark Fisher (2020) chamou a atenção em seu célebre Realismo capitalista [2009], ao relacionar sua experiência depressiva e o sofrimento psíquico generalizado com o modo operatório do capitalismo contemporâneo. Com efeito, assiste-se a uma catástrofe global possivelmente tão importante quanto a ecológica, à qual, contudo, a atenção volta-se especialmente ao indivíduo, desconsiderando o aspecto estrutural da sociedade.

Não obstante a atenção pública (médica, governamental, midiática), para a crise do sofrimento psíquico, ainda não há tratado global com visibilidade semelhante ao Acordo de Paris para mitigar os problemas de uma saúde mental que se esgota à maneira dos recursos naturais, a partir de uma concepção igualmente predatória e extrativista de recursos humanos subjetivos imprescindíveis à fase atual do capitalismo.[iv]

Em A imaginação sociológica, Wright Mills (1969) sublinha o princípio sociológico básico de que, quando uma perturbação pessoal acomete parte significativa dos indivíduos de uma determinada sociedade, não se trata mais de problema individual.[v] Ora, vivemos em um mundo que se baseia globalmente na ordem social capitalista e no qual se estima que 970 milhões de pessoas sofram com transtornos mentais. Destas, 301 milhões vivem com transtornos de ansiedade – o Brasil é considerado “líder” mundial da categoria com cerca de 19 milhões de pessoas com ansiedade patológica, o que equivale a 9% da população nacional – e 280 milhões com transtornos depressivos (WHO, 2022, p. 41). Por que insistir em abordar o sofrimento psíquico como problema individual?

É verdade que, em termos teóricos, o fenômeno da saúde mental é definido por sua complexidade biopsicossocial. No Brasil, por exemplo, dispositivos como a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e seus Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) tentam pôr em prática tal postulado.[vi] No entanto, para a psiquiatria hegemônica, que desempenha ainda um papel central nessas instituições e que procura controlar a epidemia de transtornos mentais por meio da medicalização do sofrimento, os transtornos mentais são compreendidos fundamentalmente como disfunções neuroquímicas, que se reduzem, em última instância, ao funcionamento orgânico individual.

Para o imaginário social neoliberal, por sua vez, o sofrimento psíquico pode ser proveniente de escolhas malsucedidas e da má gestão dos capitais subjetivos – capacidades emocionais, relacionais, cognitivas, intelectuais – do próprio indivíduo, que gozaria de liberdade e autonomia para tanto.[vii]

Embora a saúde mental seja abordada como questão pública, não há a enunciação oficial e global de que o sofrimento psíquico – aí incluídos os diagnósticos paradigmáticos de nossa época, como depressão, ansiedade, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e síndrome de burnout – seja também o efeito da dimensão estrutural da sociedade em que os indivíduos vivem, afinal uma tal declaração poderia implicar a necessidade de uma transformação social radical[viii]. Tudo se passa como se o desvio à norma se limitasse ao indivíduo enquanto homo clausus.[ix]

Em O Anti-Édipo, cujo subtítulo é precisamente Capitalismo e Esquizofrenia, Deleuze e Guattari (2010) se voltavam contra a representação do inconsciente realizada pela psicanálise freudiana, a fim de sustentar que a patologia mental não deriva exclusivamente da relação do indivíduo consigo mesmo e com a família. Para os autores, o inconsciente funciona antes de tudo como uma fábrica, em termos de produção (e não de representação) da realidade. Segundo o raciocínio, o delírio não seria expressão da relação indivíduo-família, mas, antes de tudo, histórico-social: delira-se povos, economia, história, cultura, geografia, política[x]. De forma semelhante, Antonin Artaud (2017) – referência fundamental para os autores de Mil platôs – sustentou que o silenciamento de Van Gogh não se reduzia a um ato individual. Para o artista francês, Van Gogh fora, antes de tudo, o “suicidado pela sociedade”.[xi]

Nosso contemporâneo, Mark Fisher também se suicidou e legou um diagnóstico percuciente a respeito da relação entre sofrimento psíquico e sociedade, evocando a urgência de sociologizar e de politizar a saúde mental atualmente. Sociologizar – termo empreendido aqui por nós – significa compreender inicialmente em que sociedade o sofrimento psíquico aparece de forma epidêmica[xii].

É o que visamos realizar nas duas primeiras seções do artigo, ao abordar a cultura neoliberal e a instituição da precariedade subjetiva, em que esta aparece não unicamente como efeito daquela, mas como norma social. Politizar a saúde mental, por sua vez, implica tanto demonstrar o vínculo indivíduo-sociedade no que diz respeito à produção do sofrimento psíquico quanto indicar estudos, formas terapêuticas e experiência de sociabilidade que podem coletivamente produzir outros modos de subjetivação não baseados nos princípios da cultura neoliberal. É o que procuramos realizar na última seção do artigo, de modo que a sociologia possa contribuir a partir da consideração do aspecto estrutural da dimensão social que envolve a complexidade da saúde mental enquanto fenômeno biopsicossocial.

Cultura neoliberal

O termo “neoliberalismo” é muitas vezes considerado genérico, amplo, impreciso e mesmo controverso. Segundo os críticos da terminologia, trata-se de um conceito excessivamente abrangente para circunscrever empiricamente sociedades capitalistas complexas e singulares. Todavia, o conceito é relativamente estabelecido no campo das ciências humanas e sociais e significativamente mobilizado como categoria de análise por críticos de tal formação e estágio das sociedades capitalistas ocidentais (Andrade, 2019; Corbanezi; Rasia, 2020). Interessa-nos aqui delinear o que entendemos por cultura neoliberal, noção que a literatura sociológica aborda de forma mais ou menos explícita, ainda que a ideia seja inequívoca em uma variedade de autores como Foucault, Bourdieu, Bauman, Sennett, David Harvey, Naomi Klein, Wendy Brown, entre outros.

Para o nosso propósito, o conceito de cultura não está relacionado ao sentido capitalista, da produção cultural enquanto mercadoria, tal como examinado por Adorno e Horkheimer (1985) por meio do conceito de indústria cultural, tampouco à cultura como cultivo de espírito, conforme a análise de Norbert Elias (2011) sobre o papel da intelligentsia ascendente na formação da civilização moderna. O conceito de cultura de que lançamos mão se refere à produção de valores globais que orientam os modos de vida e produzem subjetividades específicas. Félix Guattari (1996) nomeou essa concepção de cultura, proveniente da antropologia, como “cultura-alma coletiva”, na medida em que envolve uma determinada civilização em seu conjunto.

Diferentemente das outras duas acepções, trata-se de uma forma de cultura da qual todos participam e que produz modos de subjetivação comuns. Dessa forma, a cultura capitalística, segundo a terminologia utilizada pelo filósofo e psicanalista francês, produz uma subjetividade capitalística, que, por sua vez, impede o desenvolvimento de outras subjetividades – singulares, menores, não hegemônicas, desviantes da normalidade social –, não obstante a incitação contemporânea à diferença e ao multiculturalismo baseada em princípios neoliberais (Boccara, 2013). É nesse sentido, enquanto conjunto de valores de que todos em alguma medida partilhamos, que nos servimos aqui do conceito de cultura neoliberal.

Não é nosso propósito, portanto, analisar uma singularidade empírica específica do neoliberalismo, mas apresentar os traços gerais da cultura neoliberal que tomou forma nos últimos 50 anos nos países capitalistas ocidentais.[xiii] Como Margaret Thatcher (1981) profetizou em entrevista ao jornal Sunday Times em 1981, “a economia é o método, o objetivo é mudar o coração e a alma”. Qual é, afinal, essa alteração na cultura-alma coletiva que implica efetivamente a concepção atual e dominante de vida?

Um axioma do capitalismo é a necessidade de crescimento ilimitado. Para tanto, o recurso à exploração (da natureza, do trabalho) sempre foi o meio de alcançá-lo[xiv]. Contudo, se no período disciplinar-fordista buscava-se realizar o objetivo mediante a manutenção da ordem e da estabilidade social (na família, na escola, no trabalho), na sociedade pós-disciplinar contemporânea procura-se efetuá-lo por meio da promoção de valores sociais como a liberdade e a autonomia, das quais decorrem sentimentos e experiências de instabilidade, de incerteza, de insegurança, de risco (Bauman, 2001; Castel, 1995; Sennett, 2019).

Com efeito, diagnósticos sociológicos diferentes abordam essa transformação fundamental nas sociedades capitalistas contemporâneas desde os anos 1970 e 1980, quando da ascensão do neoliberalismo como forma de governo. Para Ehrenberg (1998, 2012), por exemplo, tal transformação social, que o autor situa no domínio das representações coletivas que as sociedades contemporâneas fazem delas mesmas, implica a transição do indivíduo obediente e culpado ao indivíduo autônomo e insuficiente: se, antes, a patologia mental estava inscrita no problema da interdição disciplinar (modelo conflitual da neurose freudiana), atualmente, considerando a ascensão da autonomia como norma social, as patologias gravitam em torno da incapacidade da ação individual.[xv]

Como se sabe, a transformação do paradigma produtivo fordista para o modelo flexível atual resulta também da apropriação que o status quo capitalista realizou da crítica ao modelo de trabalho da modernidade disciplinar (Boltanski; Chiapello, 2011). Em outros termos, significa dizer que a desintegração dos padrões estáveis de trabalho se deu por meio do próprio desejo dos trabalhadores, que não queriam passar a vida inteira empregados na mesma fábrica. Dessa apropriação capitalista do desejo (de autonomia, de liberdade, de emancipação), sustenta Fisher (2020), o pensamento crítico não se reestabeleceu.[xvi]

Pode-se dizer que a passagem do indivíduo obediente ao supostamente autônomo significa também a transformação do indivíduo disciplinado em indivíduo endividado (Deleuze, 1992; Fisher, 2020). Neste novo regime, o controle interno sucede a vigilância externa. Teoricamente livres e autônomos, são os próprios indivíduos que devem gerir e otimizar ao máximo suas capacidades, habilidades e potencialidades conforme as exigências das sociedades capitalistas contemporâneas.

Trata-se de uma nova forma de injunção segundo a qual é preciso administrar adequadamente também os capitais humanos subjetivos (López-Ruiz, 2007). Mobilizando os desejos dos indivíduos, a cultura capitalista contemporânea visa fazer convergir interesses pessoais e empresariais, o que a linguagem management opera de forma explícita.[xvii] É evidente que tal transformação não se deu de forma “natural”, mas a partir da incorporação da cultura neoliberal pelos próprios atores sociais para avaliar desempenhos institucionais, empresariais e individuais em regime de competição absoluta.[xviii]

Cumprir e superar metas estabelecidas por uma nova burocracia managerial nos setores privado e público se tornou o objetivo supremo – daí o endividamento contínuo. A avaliação meramente “satisfatória” de um serviço ou de uma “entrega”, segundo a linguagem corporativa disseminada no tecido social, pode ser insuficiente no contexto do imaginário neoliberal da ilimitação (Laval, 2020), no qual impera o culto da performance, da excelência e da excedência.

Portanto, para além de aspectos macroestruturais do neoliberalismo (privatização, desregulamentação, redução de gastos públicos sociais e supostamente da intervenção estatal[xix]), os valores da cultura neoliberal – tais como competição, isolamento, fragmentação, velocidade, mudança e individualização exacerbados – implicam diretamente a concepção e a conduta de vida dos indivíduos.

Trata-se de uma “ontologia empresarial” (Deleuze, 1992; Dardot; Laval, 2016; Fisher, 2020; Foucault, 2008) que envolve desde o Estado e as políticas públicas – formas e métricas de avaliação do desempenho em escolas, universidades, hospitais, tribunais de justiça – até os indivíduos na relação consigo próprios e com os outros[xx]. Entendido desse modo, o neoliberalismo não é realmente apenas uma política econômica, tampouco exclusivamente uma ideologia que mascararia a realidade efetiva conforme os interesses dominantes. Trata-se, antes de tudo, de uma forma de poder que produz realidade social (discursos, saberes, práticas) e sujeitos específicos (vide, por exemplo, a emergência e o lugar do coaching enquanto discurso e prática na sociedade atual).

É dessa maneira que o neoliberalismo constitui uma racionalidade (Dardot; Laval, 2016; Foucault, 2008) e, por extensão, uma cultura cujos valores orientam a conduta de vida (modos de pensar, sentir e agir) e produzem a subjetivação capitalista em sua forma neoliberal. Em outras palavras, a cultura neoliberal transforma o axioma capitalista do crescimento ilimitado via (auto)exploração e competição em “forma de vida”. Esse modo de produção de subjetividade e de sujeição não apenas engendra uma subjetividade instável e fragilizada como a institui como norma social.

Do ponto de vista sociológico, dessa precariedade subjetiva podem decorrer as formas atuais paradigmáticas de sofrimento psíquico: ansiedade (angústia proveniente do risco sempre eminente), depressão (sensação de fracasso em relação aos valores sociais vigentes), burnout (esgotamento laboral), déficit de atenção e hiperatividade (inquietação consequente da superestimulação conjugada com exigência de produtividade).

Precariedade subjetiva

A cultura neoliberal, enquanto conjunto de valores que estabelece a concepção de vida hegemônica e orienta a conduta individual, produz a precariedade em sentido generalizado. Em termos concretos, pode-se dizer que a precariedade é uma instituição moderna que acompanha o desenvolvimento do capitalismo em suas diferentes fases: liberalismo, taylorismo-fordismo, estado de bem-estar social, neoliberalismo.

No neoliberalismo, o processo de precarização é levado ao extremo, não apenas em razão de aspectos político-econômicos, tais como desregulamentações diversas – financeiras, ambientais, do mercado de trabalho –, subcontratação trabalhista, degradação salarial e a desconstrução de serviços públicos essenciais[xxi]. Em adição à precariedade objetiva, a cultura neoliberal estabelece a precariedade subjetiva a partir dos princípios que regem uma determinada concepção e condução de vida.

Para além da autonomia, da liberdade de escolha e da potência de agir que configuram o individualismo contemporâneo, determinadas características como mobilidade, velocidade, adaptação, assunção de risco e mudança instituem a precariedade subjetiva como condição para o sucesso social. Tal afirmação não se restringe, portanto, aos trabalhadores, às classes médias e inferiores: trata-se de um estilo e modo de vida dominante, disseminado no tecido social por discursos e práticas midiáticas, empresariais e de aconselhamento psicológico. O entendimento dessa condição pode contribuir para a compreensão e a problematização sociológicas dos problemas de saúde mental na atualidade.

O conceito de precariedade subjetiva não é totalmente estabelecido no campo das ciências humanas e sociais, ainda que possa ser inferido da literatura sociológica moderna e contemporânea. Ele difere, nesse aspecto, dos estudos sobre a noção de precariedade, examinada amplamente no campo da sociologia do trabalho. Les métamorphoses de la question sociale, de Robert Castel (1995), é um marco importante a respeito do conceito de precariedade e aborda também sua dimensão subjetiva.

Na obra, o sociólogo francês sustenta que a centralidade da categoria “trabalho” na sociedade contemporânea não é apenas econômica, mas também simbólica e psicológica. Desse modo, para além de relação técnica de produção, o trabalho constitui o suporte privilegiado de inscrição na estrutura social e, por meio dele, seria possível analisar o que o autor designa como “zonas de coesão social”, a saber, a integração (trabalho assalariado estável), a vulnerabilidade (faixa intermediária que conjuga precariedade laboral e fragilidade de suportes) e a desfiliação social (ausência de participação em atividade produtiva e isolamento).

Frente a tal classificação, é possível afirmar que o sentimento de incerteza e de vulnerabilidade proveniente da não integração social por meio do trabalho impacta os indivíduos não apenas em termos objetivos (condições materiais), mas também subjetivos (identidade, autoestima, relações sociais, bem-estar, expectativa em relação ao futuro).

Um avanço importante para o estabelecimento do conceito de “precariedade subjetiva” se dá, contudo, com as pesquisas de Danièle Linhart. A socióloga francesa elabora efetivamente o conceito para ampliar a perspectiva da precariedade no campo da própria sociologia do trabalho. Conforme Danièle Linhart (2008, 2009a, 2009b, 2015) argumenta em diversos estudos[xxii], a precariedade subjetiva não concerne apenas aos trabalhadores que se encontram em trabalhos precários, com contratos temporários, baixos salários, horários irregulares, ausência de benefícios sociais e de proteção legal.

Ela é extensiva aos trabalhadores assalariados estáveis, submetidos às estratégias de dominação do management contemporâneo, que atribui centralidade à subjetividade dos indivíduos. Segundo Danièle Linhart (2008, p. 322), a precariedade subjetiva constitui as “novas mazelas no trabalho”. É que a nova gestão empresarial não apenas mobiliza integralmente a subjetividade dos indivíduos (aspectos relacionais, cognitivos, afetivos, emocionais) como requer deles a prova constante – muitas vezes às custas dos colegas de trabalho – de que estão à altura das exigências de excelência e do posto que ocupam[xxiii]. A precariedade subjetiva decorre, portanto, da centralidade e da mobilização da subjetividade dos assalariados.

Alinhada à perspectiva da psicodinâmica do trabalho de Christophe Dejours (1998), Danièle Linhart (2008, p. 322; 2009, p. 212) sustenta que a forma extrema da precariedade subjetiva pode levar até mesmo os “assalariados ‘bem integrados’” ao suicídio, o qual representa o signo cabal da inquietação e do inaceitável no mundo do trabalho contemporâneo.[xxiv] Como se vê, embora explícito em suas investigações, o conceito de “precariedade subjetiva” de Danièle Linhart está circunscrito à categoria trabalho. É verdade que o trabalho é uma categoria central incontestável na sociedade contemporânea, sobretudo se considerada a captura da subjetividade em sua totalidade e o ocaso praticamente completo da divisão entre tempo livre e tempo de trabalho no capitalismo cognitivo, imaterial e informacional. Mas o conceito de precariedade subjetiva pode ser ainda mais difuso na sociedade e mesmo fazer parte do ethos contemporâneo.

Para além do campo da sociologia do trabalho, uma extensão importante da ideia de precariedade em sua dimensão existencial e subjetiva figura em Judith Butler (2011, 2015) e, especialmente, em Isabell Lorey (2015). A partir da discussão ontológica sobre o que é uma vida, Judith Butler (2015) argumenta, em linhas gerais, que a precariedade é uma condição humana comum e, dessa forma, compartilhada por todos. No entanto, quando relacionados a organizações, normatividades e enquadramentos sociais e políticos que se desenvolvem historicamente, os graus de “precariedade existencial” variam conforme a “condição de precariedade”.

O argumento central é que toda vida é precária, no sentido de que é frágil e requer suportes políticos, econômicos e sociais para sua manutenção. No entanto, associada a essa concepção existencial de precariedade, a noção política de “condição precária” evidencia sua distribuição radicalmente desigual entre populações diversas, o que também se dá em torno do luto, do reconhecimento e da violência, maximizados para uns e minimizados para outros.[xxv].

Na esteira de Judith Butler, Isabell Lorey (2015) também argumenta que os processos de neoliberalização das sociedades contemporâneas intensificam ainda mais a distribuição desigual da precariedade. No entanto, a autora dá mais um passo ao argumentar que a precarização não apenas é efeito de estruturas sociais, políticas e econômicas como é ela própria, estruturante nas sociedades capitalistas contemporâneas. Em outras palavras, com base na noção foucaultiana de governamentalidade, a cientista política alemã sustenta que a precariedade é uma estratégia política de governo incorporada pelos próprios governados[xxvi].

No neoliberalismo, argumenta Isabell Lorey (2015), a precarização estaria em processo de normalização, o que significa dizer que ela se democratiza e se torna uma condição comum – o que não implica, em hipótese alguma, nivelamento e homogeneidade das formas de precarização que incidem sobre indivíduos, grupos e classes sociais[xxvii]. Institucionalizada e normalizada, a precariedade não seria episódica, mas uma forma de regulação e de controle social que caracteriza as sociedades capitalistas contemporâneas, em que a insegurança constitui a preocupação central dos sujeitos, como também assinala Butler (Lorey, 2015, p. VIII) no prefácio à obra.[xxviii]

Mobilizando o desejo individual que reivindica a liberdade e recusa a obediência ao paradigma fordista-disciplinar, a tecnologia de governo neoliberal pôde transformar a precariedade em forma de (auto)governo, em que a condição de insegurança se torna generalizada. Daí o significado ambivalente da precariedade no imaginário social: por um lado, exploração irrestrita; por outro, liberação de antigas formas de dominação. A questão governamental seria, então, gerir e balancear o limite aceitável – embora não precisamente calculável – entre o máximo de precariedade e o mínimo de salvaguardas, de modo a evitar insurreições sob a permanente alegação thatcheriana de que “não há alternativa” (Lorey, 2015, p. 65)[xxix]. Para a autora, portanto, o neoliberalismo normaliza e institucionaliza a incerteza e a desestabilização, razão pela qual a precariedade é socialmente difusa, não se restringindo, tal como para Linhart, às margens da sociedade.

Mas podemos dizer ainda que a precariedade, se entendida não exclusivamente como escassez e insegurança, mas também – conforme autorizam a etimologia e as acepções do termo[xxx] – como efemeridade e transitoriedade, constitui uma parte do próprio ethos dominante do capitalismo neoliberal contemporâneo. Trata-se de uma forma de vida (modo de pensar, sentir e agir) e, portanto, de uma constituição subjetiva hegemônica, em torno da qual gravitam noções-chave da sociedade capitalista contemporânea. No breve texto “Precariedade como ‘estilo de vida’ na era neoliberal”, Christian Laval (2017) formula as expressões “cultura da precariedade” e “precariedade de luxo”.

Frutíferas, elas mostram a valorização e a promoção de um modo de vida proveniente do alto da estratificação social. Trata-se do enaltecimento de atributos como assunção de risco, velocidade, mobilidade, flexibilidade, dinamismo, incerteza e mudança. É como se a volatilidade do mercado financeiro de ações da bolsa de valores devesse ser incorporada e gerida pelo humano. Em síntese, trata-se da institucionalização – em termos de prática social – da incerteza em nome da suposta liberdade e autonomia individuais que caracterizam a época neoliberal contemporânea.

Entre outros, os sociólogos Bauman (2001) e Sennett (2019) mostraram, cada um à sua maneira, a alteração do paradigma moderno da estabilidade disciplinar para o paradigma contemporâneo da instabilidade pós-disciplinar. Suas noções amplamente conhecidas de liquidez e de corrosão do caráter expressam essa transformação social. O que essas noções designam fundamentalmente é a ausência de solidez e o desmedido elogio da efemeridade e da mudança.

Semelhantes diagnósticos sociológicos das sociedades capitalistas contemporâneas evidenciam que a fragmentação, o deslocamento, a desordem, o risco, a instabilidade não apenas não constituem problema para a vida individual e social como seriam a regra de ouro para o sucesso. Os “vencedores” as atraem, ao passo que os “perdedores” as repelem[xxxi]. É nesse sentido que queremos dizer que a precariedade subjetiva constitui não apenas o efeito da cultura neoliberal como é ela própria, uma parte do ethos dominante; ela participa do modo e da concepção de vida socialmente hegemônicos; ela é um aspecto que o espírito do capitalismo contemporâneo requer de indivíduos “bem-sucedidos”.

Para apresentar a origem do termo “flexibilidade” na língua inglesa, Sennett (2019, p. 53) informa que seu sentido deriva “da simples observação de que, embora a árvore se dobrasse ao vento, seus galhos sempre voltavam à posição normal”. Flexibilidade significaria, portanto, “essa capacidade de ceder e recuperar da árvore, o teste e [a] restauração da sua forma”. Barbara Stiegler (2019), em seu estudo minucioso sobre a genealogia do neoliberalismo a partir de fontes evolucionistas, sustenta que a questão fundamental do neoliberalismo – e da sociedade industrial, de maneira geral – sempre foi a adaptação (à aceleração, à competição, à produtividade, à otimização e a um ambiente que requer a ilimitação das capacidades humanas).

Sociologicamente, a elevada incidência de transtornos mentais paradigmáticos de nossa época (ansiedade, depressão, burnout, TDAH), os quais estão estritamente relacionados à lógica e à concepção social atual de vida, pode ser índice da transposição do sentido original do termo “flexibilidade” enquanto conceito de primeira ordem na cultura neoliberal, uma vez que a restauração da normalidade (isto é, a adaptação) já não está mais a salvo[xxxii]. Levando adiante a imagem oferecida por Sennett, podemos dizer que o desmatamento – efeito da exploração de recursos naturais – não é, nesse sentido, exclusivamente ambiental. A violência baseada no mesmo princípio incide igualmente sobre a vida psicológica humana. É o que Mark Fisher procurava mostrar ao afirmar a existência da crise psíquica, cujo avanço se intensificava juntamente com a ecológica nas sociedades capitalistas contemporâneas sem, contudo, a mesma atenção política e estrutural.

Politizar a saúde mental

Enfrenta-se atualmente uma contradição notável. Por um lado, o imaginário sociocultural – fundamentado em discursos e práticas oficiais, científicas e midiáticas – busca promover a saúde mental. O que está em jogo não é apenas prevenir e tratar o sofrimento psíquico, mas também tornar o bem-estar tanto quanto melhor (better than well), conforme a conhecida fórmula da psicofarmacologia cosmética de Peter Kramer (1993).

Com efeito, o conceito contemporâneo de saúde mental abrange tanto a saúde como a doença em todas as suas variações e extremidades (Corbanezi, 2021b; Ehrenberg, 2004a; 2004b). Por outro lado, o mesmo imaginário que visa promover a saúde mental baseia-se na autoexploração subjetiva,[xxxiii] da qual decorre também a condição de precariedade subjetiva. Nesse sentido, cultura do mal-estar privado e medicina do bem-estar e do aperfeiçoamento fazem parte de uma mesma dinâmica (Ehrenberg; Lovell, 2001, p. 18).

Ora, como dispor de uma saúde mental efetiva – pela qual o indivíduo seria exclusivamente o responsável – em um contexto em que a injunção social reside na competição, no desempenho, na aceleração, na mudança, na efemeridade e no individualismo ilimitados? Em outros termos, como promover a saúde mental individual incitando socialmente a precariedade subjetiva?[xxxiv]

Ao abordar a saúde mental tanto em seu polo positivo de produção do bem-estar quanto no polo negativo de produção do sofrimento psíquico, a sociologia pode contribuir para a compreensão e a politização do tema. Primeiro porque sociologizar aqui já implica submeter o problema a uma dimensão política, no sentido amplo de produção de subjetividades e de governo de condutas: quais os tipos de sujeitos produzidos em uma sociedade fundamentada na cultura neoliberal e como eles são (auto)governados? Em seguida, pois, ao sociologizar o problema, podemos percebê-lo como experiência social, diferentemente do que propõem as explicações predominantes da psiquiatria e da cultura neoliberal, que tendem a reduzir o sofrimento à dimensão individual.

Como já afirmamos, para a concepção psiquiátrica hegemônica, os transtornos mentais são, em geral, o efeito de disfunções neuroquímicas (Corbanezi, 2021b). Para a cultura neoliberal, trata-se de uma dimensão da vida cuja responsabilidade e cujo gerenciamento competem ao indivíduo. As duas explicações, convém sublinhar, parecem contraditórias entre si, uma vez que o desequilíbrio neuroquímico não poderia reduzir-se à responsabilidade individual.

Acometido pela depressão, Fisher (2020) se empenhou na tarefa de politizar o sofrimento psíquico. É como se a depressão não fosse dele. O autor leva adiante, assim, a tese de Deleuze e Guattari (2010) segundo a qual o delírio é sempre histórico-mundial[xxxv]. Dialogando com a tradição teórica antipsiquiátrica dos anos 1960 e 1970, cujo modelo patológico de análise por excelência era a esquizofrenia, o crítico cultural alerta para a necessidade de politizar os transtornos comuns e cotidianos da nossa atualidade. Em vez de aceitar a “privatização do estresse”, deveríamos nos perguntar: “quando se tornou aceitável que uma quantidade tão grande de pessoas, e uma quantidade especialmente grande de jovens, estejam doentes?”.

A questão remete, vale insistir, ao princípio sociológico básico de Mills (1969) a respeito da relação entre perturbações privadas e questões públicas[xxxvi], a qual constitui, atualmente, a linguagem própria e global da saúde mental (Ehrenberg, 2012, p. 425). Problematizando as formas de “voluntarismo mágico” – essa “religião não oficial do capitalismo contemporâneo” segundo a qual os indivíduos seriam capazes de sair de suas próprias condições, aí compreendidas as patológicas –, Fisher (2020, p. 140, 137) sustenta que diversas formas de depressão seriam mais bem compreendidas e combatidas “por meio de quadros analíticos impessoais e políticos, e não individuais e ‘psicológicos’”[xxxvii]. A biomedicalização do sofrimento e a redução da cultura neoliberal à dimensão individual seriam, dessa forma, proporcionais à despolitização das condições de saúde mental e coerentes com a configuração individualista das sociedades ocidentais contemporâneas.

De fato, em regra, os recursos mobilizados atualmente para combater o sofrimento psíquico ou promover a saúde mental são individuais e/ou corporativos (medicação, terapias, exercícios físicos, discursos motivacionais, práticas de meditação e de coaching); são estratégias para integrar e conformar o indivíduo, já que a saúde mental se define, grosso modo, pelo ajustamento e pela adaptação às normas sociais[xxxviii]. As formas paradigmáticas atuais de sofrimento psíquico não são, porém, transgressões às normas sociais: elas resultam, antes de tudo, da busca individual para realizá-las. No entanto, para além das estratégias individuais e empresariais para enfrentar o sofrimento psíquico, cujas propostas tendem a se basear na manutenção da ordem, quais experiências coletivas e terapêuticas poderiam confrontar a precariedade subjetiva enquanto efeito e norma social?

Um estudo de caso empírico apresenta uma experiência relevante neste sentido. Em pesquisa de mestrado no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), Guilherme Boulos (2016) mostra empiricamente a remissão de sintomas depressivos em indivíduos por meio da participação coletiva e da sociabilidade diversa em ocupações de sem-teto em São Paulo. O grupo pesquisado a partir de métodos qualitativos e quantitativos é relativamente homogêneo: vidas em condições de precariedade absoluta, cuja característica predominante é a situação de privação.

Em perspectiva longitudinal, os dados mostram a remissão dos sintomas depressivos após o ingresso no movimento social. Os depoimentos indicam que vidas despedaçadas se reintegram, ao menos subjetivamente, ao participar de um movimento coletivo popular. Os motivos da remissão dos sintomas são os vínculos de solidariedade, o acolhimento, o reconhecimento, o resgate da autoestima, o sentimento de pertencimento, a superação do sentimento de invisibilidade e de inutilidade, a ampliação qualitativa das relações sociais, e assim por diante. Uma forma de sociabilidade diametralmente oposta aos princípios da cultura neoliberal (competição, desempenho, individualismo, isolamento) pode figurar em tal experiência como alternativa coletiva à precariedade subjetiva e ao sofrimento psíquico que dela decorre.

Não se trata, evidentemente, de um caso isolado. Há outros tantos em curso como historicamente já experimentados. No livro História da psicanálise popular, Gabarron-Garcia (2023) empreende uma politização da psicanálise. Para combater o sentido apolítico e burguês atribuído à disciplina, o autor percorre uma série de experiências históricas para mostrar sua dimensão política e revolucionária.[xxxix] Todas elas procuram, em alguma medida, subverter as relações sociais hierárquicas e baseadas na sociabilidade capitalista individualizante e competitiva[xl]. O autor conclui a obra evocando uma série de experiências em curso mundialmente, destacando, no caso brasileiro, a constituição dos CAPS no sistema público de saúde e coletivos psicanalíticos de acolhimento e de escuta gratuita em espaços públicos.

Deivison Faustino (2022, p. 276-278) também traz à tona uma série de estudos e grupos de pesquisa e de intervenção a partir da influência de Franz Fanon e do aumento exponencial do interesse sobre a obra do psiquiatra martinicano recentemente também no chamado campo psi, com destaque para a psicologia das relações raciais e a relação com a esquizoanálise. Na mesma direção de uma nova politização da psiquiatria e da saúde mental atualmente, vale notar a retomada do interesse pela psicoterapia institucional que visa tratar as instituições e subverter a hierarquia e os papéis estabelecidos das relações sociais mediante processos institucionais de coletivização.[xli]

De maneira mais ampla, sublinhemos ainda o interesse atual pelo tema do “comum”, de que a obra homônima de Dardot e Laval (2015) é exemplar. Para os autores, “comum” designa uma racionalidade política alternativa à racionalidade neoliberal e implica uma transformação radical do sistema de normas que ameaçam a humanidade e a natureza. Enquanto princípio político geral, “comum” resultaria do que os autores chamam de “práxis instituinte”, que são práticas coletivas dispersas, diversas e mesmo marginais, das quais os exemplos de sociabilidade, de práticas terapêuticas, de estudos e de intervenções que mencionamos podem fazer parte.[xlii]

Embora não exaustivos, as experiências e os estudos aqui assinalados podem contribuir para a politização do sofrimento psíquico ao evidenciar o quanto a subjetivação capitalista neoliberal e as relações sociais de dominação e de competição que dela decorrem são parte da explicação da elevada incidência do sofrimento psíquico na atualidade.

Tanto quanto sustenta a política ecológica consequente, a saída para a crise epidêmica do sofrimento psíquico parece residir também em uma transformação coletiva (e não simplesmente individual) dos nossos modos de vida e de sociabilidade[xliii]. Uma realidade que o status quo, representado por órgãos governamentais, agências multilaterais, mídia, empresas e elites, não pode efetivamente enunciar. Entendida aqui como politização, tal perspectiva constitui, a nosso ver, mais uma maneira de levar a sério a partícula “social” (para além de “fatores socioeconômicos”) do fenômeno definido oficialmente como “biopsicossocial”.

Considerações finais

Vimos os valores que fundamentam a cultura neoliberal e que constituem tanto uma concepção de vida quanto o referencial atual a partir do qual os indivíduos a conduzem. Nesse cenário, a precariedade subjetiva figura não apenas como efeito da subjetivação capitalista neoliberal, mas também como norma social, uma vez que os indivíduos são instados a incorporar os valores da cultura neoliberal para alcançar o sucesso social. Consideramos que tais modos de vida e valores sociais devem inevitavelmente participar da explicação da elevada incidência de sofrimento psíquico na atualidade, com destaque para os transtornos paradigmáticos relacionados à subjetivação capitalista neoliberal (ansiedade, depressão, burnout, TDAH).

Procuramos argumentar que o esgotamento psíquico se dá segundo a mesma lógica do esgotamento dos recursos naturais de que a crise ecológica atual é emblemática, razão pela qual apenas uma transformação coletiva da concepção de mundo e de vida podem contribuir para a desaceleração de ambas as formas de crise. Dessa maneira, sem desconsiderar a existência de elementos biológicos e psicológicos, visamos mostrar a relevância de politizar os problemas de saúde mental como experiência social e coletiva em que os valores sociais contemporâneos desempenham um papel fundamental.

*Elton Corbanezi é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Autor de Saúde mental, depressão e capitalismo (Unesp). [https://amzn.to/3EfESTk]

Publicado originalmente no Caderno CRH, dezembro de 2024.

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Notas


[i] Como testemunha A queda do céu, os povos indígenas lidam com epidemias (xawara) mortais desde o contato com o “povo da mercadoria”, como Davi Kopenawa se refere aos brancos da civilização ocidental. “Sempre fico consternado quando olho para o vazio na floresta em que meus parentes eram tão numerosos. A epidemia xawara nunca foi embora de nossa terra e, desde então, os nossos continuam morrendo do mesmo modo” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 245-246). Na pandemia de covid-19, tudo se passava como se todos tivéssemos nos tornados indígenas, conforme a célebre formulação de Lévi-Strauss segundo a qual estaríamos fazendo de nós o que fizemos deles (Albert, 2020; Castro, 2021).

[ii] Para Philippe Descola (2021), a pandemia de covid-19 pode ser compreendida a partir do conceito de “fato social total”, de Marcel Mauss, isto é, como fenômeno revelador da natureza profunda de uma sociedade. É nesse sentido que, segundo o antropólogo, a pandemia de covid-19 tornava possível a exacerbação dos traços do capitalismo pós-industrial que governa o mundo atual.

[iii] Sabe-se que a pandemia de covid-19 ameaçava exclusivamente a experiência humana, diferentemente da crise ecológica – a um só tempo climática e ambiental –, que coloca inteiramente em risco a natureza. Como salientou o sociólogo Anthony Giddens (1991) já nos anos 1990, a crise ecológica figura entre as consequências da modernidade, isto é, um efeito não esperado do desenvolvimento do capitalismo moderno e igualmente não previsto pelos clássicos fundadores da sociologia que o analisavam.

[iv] Em análise de documentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre políticas globais de saúde mental, Sônia Maluf apresenta, neste dossiê, os contornos de planos de ações e metas globais da OMS para a saúde mental. A pesquisadora mostra também como o discurso oficial da OMS sobre a saúde mental é um campo em disputa: de um lado, enfatiza-se o reconhecimento do papel de fatores sociais, culturais e econômicos para a compreensão dos problemas de saúde mental; de outro, as estratégias para a efetivação de planos e metas tendem a se reduzir à configuração individualista, da qual participam tanto a racionalidade neoliberal quanto a explicação psiquiátrica. Em última instância, argumenta a autora, a configuração individualista resta hegemônica no discurso oficial da OMS.

[v] Já nos anos 1950, o sociólogo estadunidense criticava a redução – realizada pela psiquiatria e pela psicanálise – das patologias mentais a problema individual, desferindo, nesse sentido, uma crítica contundente a Ernest Jones (Mills, 1969, p. 19-20). Sobre o papel conservador desempenhado por Jones na promoção de Freud e da psicanálise, ver Gabarron-Garcia (2023).

[vi] Uma amostra das dificuldades da implementação de tais dispositivos pode ser conferida no estudo de caso de Barros (2023).

[vii] Convém notar que a transformação radical do paradigma psiquiátrico com a publicação do DSM-III (APA,1980) em 1980 se dá concomitantemente com os processos de neoliberalização das sociedades capitalistas ocidentais. Esse é um assunto que abordamos em Corbanezi (2018; 2021b).

[viii] Tomemos como base o raciocínio lógico radical de manifestações socioecológicas a respeito da crise climática, o qual se personifica também na figura da jovem ambientalista Greta Thumberg: mudemos o sistema, não o clima (Löwy, 2023). Em crítica à forma socialmente alienada de produção do conhecimento científico, o matemático Alexander Grothendieck (2014) também afirmava que não bastava mudar o modo de produção do conhecimento, mas o modelo industrial de civilização no qual ele está inserido.

[ix] Em discussão teórico-metodológica sobre a relação indivíduo-sociedade, Norbert Elias (2011, p. 230) assim define o homo clausus: “A concepção do indivíduo como homo clausus, um pequeno mundo em si mesmo que, em última análise, existe inteiramente independente do grande mundo externo, determina a imagem do homem em geral”.

[x] Voltado à realidade psíquica, trata-se do mesmo postulado sociológico geral de Mills (1969, p. 10): “A história que atinge todo homem é a história mundial”.

[xi] Boa parte da produção intelectual chama a atenção para a correlação causal entre sofrimento psíquico e sociedade. Contemporaneamente, podemos destacar desde Fanon (2020), que mostrou, nos anos 1950 e 1960, os efeitos do colonialismo sobre o psiquismo, passando por diferentes perspectivas antipsiquiátricas (Basaglia, Laing, Cooper, Szasz), até mais recentemente Han (2017), que sustenta que a produção do sofrimento psíquico decorre da sociedade do desempenho. Segundo Ehrenberg (2012), tal abordagem normativa, da qual o autor se distancia, é predominante nos estudos sociológicos, antropológicos, filosóficos e psicanalíticos sobre o tema e frequentemente demandada também por profissionais da saúde mental.

[xii] Sabemos que a epidemia dos transtornos mentais é também uma construção social, o que significa dizer que ela é produzida enquanto ideia por diferentes discursos, como o médico, o científico, o econômico e o social. A esse respeito, ver Corbanezi (2021b), em que procuramos mostrar a produção da ideia de epidemia depressiva a partir da afinidade entre o desenvolvimento da nosologia psiquiátrica dos transtornos depressivos e os valores sociais do capitalismo contemporâneo.

[xiii] Limitamo-nos aqui a indicar os seguintes estudos sobre as origens e as variações teóricas e históricas do neoliberalismo: Foucault (2008), Dardot e Laval (2016), Harvey (2008) e Stiegler (2019). Analisamos detidamente o assunto em Corbanezi e Rasia (2020).

[xiv] Crescimento ilimitado via exploração: eis a razão lógica segundo a qual o capitalismo moderno e contemporâneo não pode ser sustentável. Necessária, tal crítica de que o capitalismo é ecologicamente insustentável se tornou atualmente banal, como afirmam Dardot e Laval (2015, p. 514). Queremos problematizar aqui a crise psíquica baseada no mesmo princípio.

[xv] É o que o sociólogo francês nomeia como a passagem da autonomia-aspiração (vontade de emancipação no contexto da sociedade disciplinar) para a autonomia-condição (sociedade emancipatória pós-disciplinar, em que a autonomia se torna norma social) (Ehrenberg, 2012).

[xvi] Nos termos de Fisher (2020, p. 63): “[…] a esquerda nunca se recuperou da rasteira que o capital lhe passou ao mobilizar e metabolizar o desejo de emancipação frente à rotina fordista”. Inspirado também em Deleuze e Guattari – os quais, para Fisher (2020, p. 14), apresentam a interpretação do capitalismo “mais impressionante desde Marx” –, a questão fundamental para o autor de Realismo capitalista é como (re)capturar o desejo para a transformação da realidade social.

[xvii] Vide, por exemplo, o eufemismo de termos como “parceiros” e “colaboradores” para substituir termos clássicos como “trabalhador” e “operário”, bem como a supervalorização da felicidade, da descoberta de sentido no trabalho e do espírito sacrifical e de equipe. Sobre a mobilização da subjetividade pelas novas formas de gestão empresarial, ver Linhart (2015).

[xviii] Vale notar, por exemplo, o processo de implementação da cultura neoliberal nas universidades brasileiras, que poderiam ser, em princípio, o lugar de resistência por excelência aos valores neoliberais (Corbanezi, 2021a; Sguissardi; Silva Junior, 2018; Silva, 1999).

[xix] Não obstante a terminologia comum do “Estado mínimo”, sabe-se que, desde sua fundação, o neoliberalismo se baseia na reconstrução de um Estado forte para a defesa de políticas econômicas favoráveis às classes dominantes (Bourdieu, 1998; Dardot; Laval, 2016; Foucault, 2008; Wacquant, 2012). Como Fisher (2020) assevera recorrentemente, por exemplo, foi o Estado que salvou os bancos na crise econômica de 2008.

[xx] Dardot e Laval (2016, p. 356-357) cunharam o termo “ultrassubjetivação” para apreender esse ethos individual que poderia ser sintetizado na fórmula “o além de si em si”.

[xxi] Como mostra Fábio Franco (2021), o neoliberalismo se baseia essencialmente no imperativo “Fazer precarizar”.

[xxii] O conceito aparece explicitamente em Linhart (2009a, 2015). Nos estudos de Linhart (2008, 2015), ele decorre da ideia central de que a exploração e a mobilização absoluta da subjetividade fragilizam subjetivamente o trabalhador contemporâneo, que não possui, como a autora observa, duas subjetividades, uma para o trabalho e outro para a vida fora do trabalho (Linhart, 2008, p. 209).

[xxiii] Eis como Linhart (2009a, p. 2) define o conceito: “É o sentimento de não estar à vontade no trabalho, de não poder confiar nas rotinas profissionais […]; é o sentimento de não dominar seu trabalho e de dever desenvolver, sem interrupção, esforços para se adaptar, para realizar os objetivos estabelecidos, para não se colocar em risco física e moralmente […]. É o sentimento de não ter recursos em casos de problemas graves no trabalho, nem do lado da hierarquia (cada vez mais rara e menos disponível), nem dos coletivos de trabalho que se desgastaram com a individualização sistemática da gestão dos assalariados e a colocação deles em concorrência. É, assim, o sentimento de isolamento e abandono. É a perda da estima de si, relacionada com o sentimento de mal dominar seu trabalho, com o sentimento de não estar à altura dele. É o medo, a ansiedade, o sentimento de insegurança que se nomeia comodamente de estresse”.

[xxiv] O caso emblemático são os suicídios em série na empresa France Telecom. Na mesma direção, Standing (2014, p. 29, 85-89) também sustenta que o precariado, cujas características centrais são a incerteza e a insegurança crônicas, avança no serviço público, apesar da “tão cobiçada segurança de vínculo empregatício”. O autor argumenta que a flexibilidade funcional, os deslocamentos, as avaliações e a cobrança por desempenho ocasionam intenso sofrimento pessoal. Fisher (2020) mostra igualmente como o gerencialismo, baseado na cultura da auditoria, do desempenho e da flexibilidade, tende a suprimir os valores clássicos do que se entende por serviço público.

[xxv] Nos termos de Butler (2015, p. 38): “A precariedade tem de ser compreendida não apenas como um aspecto desta ou daquela vida, mas como uma condição generalizada cuja generalidade só pode ser negada negando-se a precariedade enquanto tal. E a obrigação de pensar a precariedade em termos de igualdade surge precisamente da irrefutável capacidade de generalização dessa condição. Partindo desse pressuposto, contesta-se a alocação diferencial da precariedade e da condição de ser lamentado. Além disso, a própria ideia de precariedade implica uma dependência de redes e condições sociais, o que sugere que aqui não se trata da ‘vida como tal’, mas sempre e apenas das condições de vida, da vida como algo que exige determinadas condições para se tornar uma vida vivível e, sobretudo, para tornar-se uma vida passível de luto”. A autora também realiza a discussão da distribuição desigual da precariedade, do luto e da violência a partir de esquemas normativos que definem o grau de variedade do que é humano em Butler (2019).

[xxvi] Lembremos que Foucault (2008) assegura que a sofisticação da tecnologia de poder neoliberal reside sobretudo na capacidade de governar a partir da racionalidade dos próprios governados. Eis a chave para pensar o neoliberalismo como racionalidade.

[xxvii] A autora é categórica a esse respeito: “O processo de normalização [da precariedade] não implica igualdade na insegurança” (Lorey, 2015, p. 66).

[xxviii] Convém notar que Bourdieu (1998) já afirmava nos anos 1990 que a precariedade não seria apenas um efeito econômico, mas também uma estratégia política de descoletivização, razão pela qual a resistência coletiva se tornava cada vez mais distante no contexto da precarização. Analisando movimentos em torno de subjetividades precárias como o EuroMayDay, Lorey (2015) defende a necessidade de elaboração de novas formas políticas de resistência a partir da própria condição de precariedade. Neste aspecto, a autora critica especialmente Robert Castel, que, diferentemente de Bourdieu, pôde testemunhar o desenvolvimento global do movimento EuroMayDay, mas não teria percebido capacidades políticas em subjetividades precárias. Para Standing (2014, p. 15-19), por sua vez, seria necessário passar do âmbito simbólico e carnavalesco de movimentos que afirmam individualidades e identidades a partir da condição comum da precariedade para o programa político mediante a constituição do precariado como classe-para-si.

[xxix] A ideia de que não há alternativa é, vale dizer, a base do que Fisher (2020) designa por “realismo capitalista”.

[xxx] Proveniente do latim precarius, o termo precário designa, em sua etimologia, o que é “obtido por meio de prece; tomado como empréstimo; alheio; estranho; passageiro” (Houaiss; Villar; Franco, 2009). Com efeito, em língua francesa, além de incerteza e instabilidade, o termo précaire significa também efemeridade, fugacidade, passagem (Le Petit Robert, 2001). A ideia de efemeridade, de passagem e de mudança é igualmente central para a noção clássica de trabalho precário.

[xxxi] Caracterizando a elite global contemporânea formada pelos “senhores ausentes”, Bauman (2001, p. 22) argumenta que “mover-se leve, e não mais aferrar-se a coisas vistas como atraentes por sua confiabilidade e solidez […], é hoje recurso de poder”.

[xxxii] Vide os dados apresentados na introdução deste artigo. No contexto da pandemia de covid-19, em que houve uma aceleração das tendências sociais (Corbanezi, 2023), a OMS informou o aumento de 25% da prevalência de ansiedade e de depressão no mundo (Opas, 2022).

[xxxiii] Da mesma forma que o capitalismo não se realiza sem a precariedade, sabemos desde Marx que o capital não existe sem a exploração. Se o humano devém capital, a exploração se dobra sobre o próprio indivíduo, não obstante o subterfúgio verbal da teoria do capital humano de que se trata sempre de “investimento”.

[xxxiv] Linhart (2015, p. 129) sublinha como o discurso e a prática do management contemporâneo se assentam em uma lógica igualmente paradoxal: de um lado, solicita-se cada vez mais do assalariado a excelência, a tomada de risco, o engajamento total; de outro, ele é impelido a um sentimento de impotência e de medo que podem levá-lo à paralisia. É como requerer do indivíduo a concentração para aumentar a produtividade mergulhando-o, ao mesmo tempo, na superexcitação do mundo virtual. Standing (2014) e Fisher (2020) sustentam que a hiperconectividade contemporânea compromete a formação intelectual e cognitiva do precariado e da juventude, respectivamente.

[xxxv] Carmen Silva (2021, p. 287), liderança do Movimento dos Sem-Teto do Centro, em conversa na Ocupação 9 de Julho, em São Paulo, após afirmar que o delírio de pessoas em situação de rua no contexto da pandemia de covid-19 se baseia em questões concretas, assim expressa tal condição delirante: “Quando eu chego em casa, eu carrego todo o amedrontamento do mundo, todo o delírio de todo mundo, que é a fome, que meu marido está desempregado, que eu vou morrer, que meu filho está com fome”.

[xxxvi] A respeito da relação entre males privados e questões sociais na sociologia pública e política de Mills, ver o erudito ensaio de Gabriel Cohn (2013).

[xxxvii] Em seu estudo sobre o precariado, Standing (2014) sustenta que a ansiedade e o sofrimento pessoal são uma condição normal dessa categoria que vive a insegurança de forma aguda e crônica. O autor então problematiza a individualização do sofrimento a partir da hegemonia da terapia cognitivo-comportamental, recomendada às pessoas após a crise econômica de 2008 pelo governo do Reino Unido, que, dessa forma, não enfrentava questões estruturais produtoras do sofrimento pessoal. Como diz o autor, “não há nada errado com a terapia em si. O que é duvidoso é o seu uso pelo estado como parte integrante da política social” (Standing, 2014, p. 216).

[xxxviii] Observe-se, nesse sentido, a definição de transtorno mental (mental disorder) vigente desde o DSM-III. Em razão da ausência de dados laboratoriais definitivos, o sofrimento e o prejuízo na capacidade de funcionamento do indivíduo em alguma dimensão da vida (pessoal, escolar, familiar, laboral) definem o transtorno mental. O psiquiatra e psicanalista brasileiro Mario Eduardo Costa Pereira (2013) problematiza o conceito de mental disorder a partir da ideia de que, para definir a disorder, seria logicamente necessário definir a order, o que o DSM não realiza. De certa forma, é o que procuramos fazer aqui ao submeter os problemas de saúde mental (mental disorder) a uma perspectiva sociológica que visa compreendê-los em relação aos valores sociais da cultura neoliberal (social order).

[xxxix] Entre as experiências abordadas no livro, figuram a defesa freudiana pela clínica popular antes do seu pessimismo cultural e da apropriação e promoção das ideias de Freud por Ernest Jones, a psicanálise de Vera Schimidt com crianças na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a politização sexual de Wilhelm Reich contra o fascismo, a trajetória e as experiências terapêuticas de Marie Langer na Europa e na América Latina, a psicoterapia institucional de François Tosquelles, a clínica La Borde com Jean Oury e Félix Guattari e a experiência radical do coletivo alemão Coletivo de Pacientes Socialistas (SPK) em Heidelberg.

[xl] A experiência de Maria Langer e seus colegas, por exemplo, visava modificar as relações sociais entre seus pacientes para estabelecer uma outra base subjetiva e coletiva. “Pudemos observar como o processo terapêutico dos grupos evoluía à medida que surgia e consolidava-se a solidariedade entre os integrantes do grupo, não obstante as rivalidades, tensões e ambivalências existentes. Nos grupos contrapusemos a solidariedade à competição doentia do sistema” (Langer apud Gabarron-Garcia, 2023, p. 138).

[xli] Prova da renovação de tal interesse são, entre outros, a publicação (e a tradução) de Gabarron-Garcia (2023), o estudo de Camille Robcis (2024), a publicação recente no Brasil da coletânea de textos de François Tosquelles (2024). Também anotamos a exposição coletiva “Touché l’insensé”, no Palais de Tokyo, em Paris, em 2024, voltada ao histórico da psicoterapia institucional e às experiências coletivas atuais em torno da sua prática terapêutica.

[xlii] As lutas políticas que obedecem à racionalidade política do comum se apresentam, segundo os autores, como “pesquisas coletivas de novas formas democráticas”. O projeto revolucionário do “comum”, afirmam, “só se pode conceber articulado a práticas de natureza muito diversa, econômicas, sociais, políticas, culturais. Na condição de que linhas de força comuns acabem por emergir suficientemente através dos vínculos entre os atores dessas práticas, uma ‘significação imaginária’ pode terminar por cristalizar e dar sentido ao que parecia até então ser apenas ações ou tomadas de posição dispersas, diversas e mesmo marginais” (Dardot; Laval, 2015, p. 19, 582, 578).

[xliii] Quando a pandemia de covid-19 evidenciou de forma aguda os problemas crônicos das sociedades capitalistas neoliberais, Descola (2021) sustentou que a cura só poderia residir em uma reviravolta radical dos nossos modos de vida, uma transformação do pensamento semelhante àquela provocada pelo Iluminismo. Problematizando a questão ecológica e o falso problema da noção de sustentabilidade a partir da perspectiva indígena, segundo a qual a ideia de sustentabilidade é incompatível com o desenvolvimento industrial extrativista e predatório, Krenak (2019, p. 12) pergunta se somos efetivamente uma humanidade. A questão se aplica aqui, para nós, também à ecologia psíquica.


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