Sionismo e supremacismo racial – sobre a etnia

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Por ALINE MOREIRA MAGALHÃES*

Um projeto de nacionalismo judaico não seria problemático se não fosse supremacista

1.

Há muito vem se argumentando sobre o caráter específico do sionismo, no que tem de supremacista – refiro-me ao genocídio e à violência de Estado cometida há mais de sete décadas por Israel no Oriente Médio e contra os palestinos em particular.

Mesmo os comentadores críticos e rigorosos, no entanto, localizam o sionismo em um tipo particular de fenômeno, sendo supremacista porque sua teoria o é; que nasceu supremacista como projeto. Não fosse assim, o projeto de um nacionalismo judaico não seria de todo um problema – a consequência implícita ou explícita do argumento não haveria de ser outra.

Meu ponto aqui é que não, um livro por si só não explica o verdadeiro horror humano do que está acontecendo, tampouco meramente um projeto societário idealizado o explica. Não vou me atrever a discutir em pormenores o tema do Oriente Médio especificamente, mas uma das dimensões que é pano de fundo do debate: o conceito de etnia.

Estou avisada de que a comunidade judaica, de maneira relativamente distinta de outras etnias ao redor do mundo, entrelaça dimensões étnicas e religiosas (religião como palavra escrita, por oposição a práticas espirituais de cunho mais oral). Enfocarei na primeira. Tentarei ser a mais esquemática e clara possível, para que os leitores possam apropriar-se da teoria, estabelecer paralelos com outros exemplos, e aplicá-los à discussão mais premente.

Etnia não é a mesma coisa que um bairro, uma cidade, uma família, uma categoria profissional. É um grupo social que possui aspectos específicos.

Existem duas abordagens clássicas – das quais descendem muitas outras – que trataram especificamente sobre o conceito de etnia ou comunidades étnicas:

(i) A que enfoca na natureza e na construção da crença coletiva de uma procedência comum, “fundando-se na semelhança de hábitos exteriores e costumes, ou em lembranças da colonização e migração”. A objetificação da procedência comum até a formação da comunidade política, para Weber, pode despertar a crença na origem racial comum (Weber, 1974 [1904/1905).

(ii) A segunda argumenta que as diferenças não existem por si mesmas, portanto procura centrar na construção das diferenças a partir das fronteiras entre etnias; que o que se chama de hábitos, costumes e idiomas seriam construídos nas relações com outros grupos, portanto as fronteiras entre grupos distintos seriam essenciais na própria configuração das etnias e de sinais diacríticos (Barth, 1969)

Uma terceira abordagem não é bem sobre etnia, mas é amplamente aplicada a grupos étnicos, ainda que nem sempre assim denominados, sobretudo ao contexto indígena amazônico. Refiro-me ao espelhamento entre parentesco e sociedade, que descende das formulações de Lewis Morgan – posteriormente apropriado por Marx e Engels.

2.

Em um conjunto considerável de trabalhos sobre populações indígenas, descreve-se em pormenores as diferentes elaborações sociais relativas ao compartilhamento de substâncias físicas e corpóreas entre indivíduos e grupos, manifestadas em rituais, relações clânicas, categorias e relações de gênero, etc. Uma etnia, ou grupos indígenas milenarmente relacionados entre si, refere-se, portanto, a um pertencimento de tipo específico, profundamente relacionado à continuidades morais, simbólicas, espirituais e corpóreas entre indivíduos e grupos.

Contextos multiétnicos na Amazônia envolvem a relação entre esses múltiplos pertencimentos intra e interétnicos, estabelecidos milenarmente em um território comum. E envolve micro-relações de poder também – “poder” não se confunde necessariamente a Estado ou governo. Ainda que obviamente muito distinto, alguma semelhança com o outro lado do mundo?

Praticamente se contrapondo ao conceito de etnia, se falará em “nação”, como agrupamentos sociais constituídos ao redor de conjuntos de leis (aqui entendidas em sentido moral, político, jurídico (Mauss, 1972). Segundo essa abordagem, o que era necessário investigar não eram as “nacionalidades”, então concebidas como o agregamento baseado em costumes, idiomas e hábitos, mas em “nação”.

O debate, ainda inconcluso, se bifurca entre aqueles que apartam pequena e grande política, e aqueles que traçam uma linha de continuidade entre ambas, do qual a pergunta última é “como nasce o Estado”. Se é verdade que Mauss não tenha enfocado no compartilhamento de substâncias corpóreas, tão acentuado em grupos sociais aos quais se dedicou a examinar, também é dele o deslocamento para o problema de como a nação terminava por preponderar e ser uma espécie de objetificação da comunidade política do que antes era examinado como um espírito gregário – a nacionalidade. Por isso propunha deslocar a análise das “nacionalidades” para a “nação”.

Para se ter uma ideia de como essas dimensões encontram-se entrelaçadas e confundidas não apenas na teoria, mas também nos discursos (não apenas de sionistas convictos), aqui no Brasil algumas lideranças indígenas começaram a usar a expressão “nações”, em encontros da década de 1980, esboçando ligeiramente a vontade de autonomia diante do Estado brasileiro.

Mas essa autonomia – todos concluíram – levaria necessariamente à vulnerabilidade extrema diante de grupos econômicos poderosos que atuam nos/próximo aos territórios indígenas. Envolveria uma guerra armada que os povos indígenas das Américas não se habituaram, ao contrário da “civilização”, travar. Portanto não contariam, ao contrário de Israel, com ajuda militar imperial para garantir essa (artificial) autonomia.

Todos conhecem a solução que a Constituição de 1988 brasileira deu à questão das autodeterminações étnicas, com as demarcações etno-territoriais, com previsão jurídica de proteção estatal, ainda que muita água esteja rolando embaixo dessa ponte atualmente. A Bolívia é outro exemplo importante, além das recentes tentativas em se avançar no Chile, sem sucesso. Embora haja divergências, não existe nenhum/a estudioso/a rigoroso/a dessa questão que acredite ser uma boa ideia chamar uma etnia ou grupo indígena de Estado nacional.

Apesar da aparente oposição excludente entre as abordagens sobre a dimensão da experiência étnica – com acusações acirradas e às vezes estéreis no campo teórico antropológico entre “construtivistas” e “essencialistas” – nenhuma delas nega a contiguidade entre a questão étnica e a questão racial. Não à toa, “relações étnico-raciais”, assim denominada, é o rótulo segundo o qual conteúdos e disciplinas encontram-se no currículo nacional de muitos países, inclusive no Brasil.

3.

De maneira correlata à “raça”, a etnia também opera com contiguidade de substâncias (físicas, corpóreas) entre indivíduos e grupos sociais, ou, diria Weber, na “crença” dessa contiguidade. Diferente de laços étnicos, por outro lado, “raça” possui uma etimologia associada ao colonialismo europeu, portanto um estreito vínculo com políticas genocidárias implementadas por Estados imperiais.

Associar vínculos étnicos à construção de um Estado, uma formação social, territorial e histórica específica, porque militarizada, envolve, portanto, necessariamente o perigo intrínseco do aprofundamento da contiguidade entre relações étnicas, objetificação racial, e implementação de relações de poder de natureza militar – um supremacismo armado com tanques e bombas.

Então ainda que não houvesse Theodor Herzl e seu livro, a implementação e existência de uma etnia estatal, isto é, um Estado que se define e é formado por referência a uma etnia, além de contar com apoio irrestrito norte-americano – que cuida para fomentar um contraste cultural no Oriente Médio como forma de dominá-lo –, cujo único possível paralelo no mundo seja a Armênia (uma comparação histórica que pode ser útil), implicaria necessariamente no risco do que estamos vendo agora. Dito de outro modo, livros por si só não geram realidades.

*Aline Moreira Magalhães é doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional-UFRJ.


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