Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ*
Encontramo-nos no momento em que a soberania é ameaçada, tanto quanto se apresenta a tese urgente de uma soberania digital
Se olharmos do presente ao passado relativamente próximo veremos que a morte decretada do Estado, da soberania, das instituições e processos de institucionalização pública – declamada nos anos 1990, com a globalização – não se deu como prevista. Essa decretação não ocorreu ou não teve o alcance projetado – mesmo que se interponha a atual existência de um verdadeiro Estado-plataforma, privatizado, albergado, convertido à monetização e ao capital financeiro.
Temos um exemplo claro e instigador na disputa entre o Supremo Tribunal Federal e Elon Musk, e toda a cadeia de queda de braços entre o magnata do mundo digital e as instituições brasileiras. Na nossa avaliação, dentro do escopo deste trabalho, as instituições de legitimidade se provaram mais uma vez – assim como ocorrera no famoso dia 8 de janeiro de 2023, e nos dias que se seguiram até o presente do processo judicial que investiga os principais crimes contra o Estado democrático de direito no Brasil.
O que nos inclina a retomar um pouco da história em torno da soberania (como conceito clássico) e a formação das instituições subsequentes, notoriamente, as fundações do Estado de direito. Então, retrocederemos brevemente para, por fim, retornar ao presente, que denominamos de Estado de direito de terceira geração.
Jean Bodin descreveu a necessidade da soberania, seguido de Thomas Hobbes – passando, é óbvio, pelo esforço de Nicolau Maquiavel –, diante da necessidade de organização e centralização do poder político (Estado). Jean Bodin (1530-1596), refere-se a um domínio forte e de proteção (Bodin, 2011, p. 196), (a última razão dos reis como prima ratio) agindo sobre seu povo.[i]
Para Thomas Hobbes, o poder é consistente aos meios para alcançar vantagens: (i) Como domínio sobre o outro ou sobre a natureza; (ii) Como posse sobre os meios para se obter vantagens; (iii) Para estabelecer relação entre súditos e Estado: comando e obediência. Para Thomas Hobbes (1588-1679), é preciso ter regras claras que operacionalizem ou condicionem a soberania. Desse modo, em Thomas Hobbes, o Estado é o Leviatã, um monstro bíblico, uma fortaleza sobre-humana capaz de subjugar a todos os indivíduos, graças a sua força descomunal.
Essa fase histórica poderia ser denominada como a grande era das tecnologias do poder, uma vez que o aparato estatal acompanha o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. É o Renascimento, um marco histórico europeu que compreende os séculos XIV até meados do século XVI, com destaque para: Acumulação Primitiva (Marx, 1991): Rota da Seda – expropriação dos camponeses: O mito do Fausto (Solar, 2003) – Capitalismo; Expansão ultramarina; Unificação do poder, Centralização do poder, Organização do poder (Maquiavel, 1979); a Ciência moderna: empirismo (Bacon, 2005); Tecnologias e desenvolvimentos: aprimoramento da bússola; Heliocentrismo (Galileu, ); Invenções: a prensa de Gutemberg: da prensa à imprensa.[ii] De certo modo, esta seria a base de confluência com o Estado Moderno clássico.
Soberania e Estado de direito
Bem-feitas as contas, há um sentido em afinar a insurgência do Parlamentarismo a par da soberania, com os editos do Rei João Sem Terra, em 1215 – impondo-se as primeiras limitações do manejo do poder. Fenômeno que, futuramente, seria denominado de Liberdade Negativa[iii] – menos espaço de ação ao poder soberano, maiores garantias à cidadania. O pacto constitucional, em si, viria a partir da unificação territorial alemã – conhecido também pelo Mito de Armínio – e ao seguinte Tratado de Vestfália (século XVII).
Com o Estado de direito iria se assegurar a divisão ou separação (tripartite) das funções e dos poderes institucionais, os direitos individuais e a soberania. Desse complexo ainda iriam emergir temáticas tão atuais quanto no passado: Monopólio do uso legítimo da força física, violência institucional (Weber, 1985); o Estado como “a instituição pública” (por excelência, superveniente às demais; a trindade entre povo, território, soberania; o Estado como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território) (Dallari, 2012, p. 122).[iv]
Seria uma primeira fase também do Estado Constitucional e da necessidade de se afirmar as garantias jurídicas na Constituição: “O Estado Constitucional implica um comprometimento do Estado administrador pelos órgãos legisladores, um “auto-comprometimento do Estado”, e, como sua consequência, direito dos súditos contra o Estado como tal, “direitos subjetivos, públicos” (Radbruch, 1999, p. 167-168).[v]
Na segunda fase do Estado de direito (Estado de direito de 2ª geração), já no século XX, além do nazismo e do fascismo, o final da Segunda Grande Guerra trará os marcos jurídicos também de outra forma de se tratar a soberania – mormente a fim de que os desvarios do poder soberano não mais alçassem as dimensões genocidas: a determinação do direito internacional, no mesmo contexto do Tribunal de Nuremberg, foi decisiva.
Ali se firmou o Estado Democrático, com fundação da ONU (1946), a Proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Constituição de Bonn (Alemanha de 1949), o surgimento da TV – a insurgência do chamado Estado Sedutor (Debray, 193) – a retomada da Máquina de Turing e a viagem à lua (com um 386). Dessa fase para cá, podemos dizer o Estado de direito democrático (2ª geração do Estado de direito) tem aproximadamente quatro décadas. Trata-se do Estado de justiça, como definido por Elías Díaz[vi]. Trata-se, ainda, da racionalidade aplicada ou construída em torno do fenômeno político é essencial para entendermos o Estado Moderno. Esta perspectiva costuma ser demarcada a partir do pensamento de Max Weber (1979), mas pode/deve ser visto em autores como Maquiavel (com seu peculiar realismo), Hobbes, Vico.
Juridicamente, num outro salto do conceito, temos as bases da Constituição Espanhola (1972), mais formalista, afastar-se do franquismo e traçar outro limite ao poder soberano, ou seja, ampliar a liberdade negativa. Do mesmo modo, guiados pela Revolução dos Cravos (1974), destituindo-se o salazarismo, os patrícios edificaram a Constituição Portuguesa (1976): mais socialista[vii]. Temos assim outras construções institucionais, como a unificação conceitual entre democracia, Estado de direito e divisão dos poderes: República e Federação, e vedação do direito de secção.
Se estendermos o pensamento jurídico para o lastro do Estado democrático de direito, então, deveremos salientar alguns elementos complementares: predomínio dos direitos público-subjetivos; publicidade; responsabilidade; legitimidade; salus publica – saneamento da estrutura do Estado (contas públicas) implica em melhoria da saúde pública do Estado e do povo. Sob os auspícios do Estado de direito se entenda que a autonomia e a soberania serão condicionadas por autolimitação e heterolimitação.
Esta capacidade jurídica que assegura ao Estado agir conforme claros preceitos jurídicos indica a necessidade de retomarmos as principais teorias da personalidade jurídica: (a) teoria que somente reconhece como pessoa o homem e nega ao Estado a personalidade jurídica; (b) teoria que só admite para o Estado a personalidade jurídica, mas lhe nega a essência de pessoa moral; (c) teoria que reconhece o Estado como pessoa moral e jurídica; (d) teoria que personifica também a nação (variante francesa) e define o Estado como a nação juridicamente organizada (Azevedo, 2009, p. 102).
O poder regulado, sem dúvida, significa que se reconhecem, mutuamente e concomitantemente, o poder político (Estado) e o poder jurídico (Estado-Juiz). Nesta junção que seria, também, a congratulação entre legitimidade e legalidade[viii]. Pela capacidade jurídica, lê-se que todo homem é capaz de suportar direitos e obrigações. Por competência, entende-se o poder jurídico atribuído pela pessoa jurídica a seus órgãos; é uma delimitação do raio de ação. Ou seja, ambas referem-se à limitação da soberania política (restritiva ao Estado) e extensão da soberania jurídica (expansiva dos direitos, garantias, liberdades e também das responsabilidades).
Também é uma forma de se entender a comunicação necessária entre poder legal e poder legítimo. Não é que advenha daí, mas, certamente, após essa construção institucional o princípio democrático[ix] ganhou uma relevância inusitada. O Estado democrático retorna como tema a partir da Revolução Mexicana (década de 1910) e com a democracia popular soviética (Revolução Russa): “socialização do direito: direitos sociais e trabalhistas”. Contudo, na democracia não há poder, nem direito ilimitado. A soberania popular é regrada, baseada em leis e melhorias das “relações e representações sociais”.
A soberania popular: (i) Refere-se ao exercício máximo do poder, como soberania política; (ii) agrega-se aos direitos sociais de todos os tipos (os que já existem e os que poderão vir a ser criados – Welfare State); (iii) acrescente-se a liberdade negativa (mais próxima do liberalismo clássico); (iv) entenda-se como garantia contra o abuso do Estado ou do poder de outros.
Liberdade positiva é ver-se livre para fazer algo. É a liberdade positiva que se associa à ideia de direito que deve ser formalmente estabelecido. Precisa ser garantida concretamente para o exercício ou fruição desse direito. (Na França, por exemplo, a greve é uma liberdade: não está nos códigos. Mas, paga-se pelos abusos como cidadão).
Por fim, de volta ao século XXI, nos encontramos no momento em que a soberania é ameaçada, tanto quanto se apresenta a tese urgente de uma soberania digital. E isto se dará num encontro com o Estado de direito democrático de terceira geração ou Estado democrático de direito internacional, com seus atributos preditivos mais ou menos visíveis.
Neste momento do século XXI estamos refletindo não apenas sobre a possibilidade de a soberania já ser algo bem remoto – dado o fluxo de poderes autocráticos, hegemônicos em voga. Para além disso ou em concomitância ao desmoronamento das certezas contidas na Razão dos Reis, a emancipação, como integridade humana, está em curso com algum inesperado retrocesso – nossa práxis precisa ser calibrada, revista diuturnamente, enquanto capacidade individual e social de aproximar e transformar a própria reflexão em ação.
Tendo-se em mente que a práxis é a transformação da pratica (hábitos, ações involuntárias ou repetitivas) em ações decisivas. Uma prática consciente, essa ultrapassagem da “atitude habitual”, dos hábitos, é um dos desafios para lidarmos com o avanço digital ou abuso tecnológico. Portanto, não basta denunciar, é preciso pronunciar, no sentido de que a reflexão se converta em ação.
*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo. Alguns aspectos político-jurídico e psicossociais (APGIQ). [https://amzn.to/4aBmwH6]
Referências
AZEVEDO, Caio Nelson Vono de. Teoria do Estado: parte geral do Direito Constitucional. Leme: Habermann, 2009.
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.
BODIN, Jean. Os seis livros da República: livro primeiro. 1ª Ed. São Paulo: Ícone, 2011.
CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Lisboa: Almedina, 1990.
CANOTILHO, J. J. G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2000.
DEL VECCHIO, Giorgio. O Estado e suas fontes do Direito. Belo Horizonte: Líder, 2005.
MALBERG, Raymond Carré de. Teoría general del Estado. Ciudad de México: Facultad de Derecho/UNAM; Fondo de Cultura Económica, 2001.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Brasília: Universidade de Brasília, 1979.
MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Coimbra: Coimbra, 2000.
MIRANDA, Jorge. Textos Históricos do Direito Constitucional. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2000.
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril, 1983.
SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. São Paulo: Atual, 1994.
SOLAR, Juan José del (editor). Historia del Doctor Johann Fausto – anónimo del siglo XVI. Siruela : Madri, 2003.
VICO, Giambattista. A Ciência Nova. Rio de Janeiro: Record, 1999.
RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
WEBER, Max. O Estado Racional. In: Textos selecionados (Os Pensadores). São Paulo: Abril, 1985, p. 157-176.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Notas
[i] Bobbio (1985, p. 95) ainda deixa claro que Bodin, embasou-se em outros juristas medievais, que também haviam se debruçado sobre este tema: “Já os juristas medievais, comentaristas do Corpus Júris, tinham traçado uma distinção entre as ‘civitates superiorem recognoscentes’ e as ‘civitates superiorem non recognoscentes’ – só estas últimas possuíam o requisito da soberania, podendo ser consideradas Estados, no sentido moderno do termo”.
[ii] Enquanto Vico (1999) será um dos primeiros a tratar, nomear a luta de classes, Dante (1998) construirá um farol e um alerta seguro aos senhorios do poder soberano: O marco mais significativo da literatura moderna é [a] Divina comédia de Dante Alighieri (1265-1321) […]A obra é provavelmente a síntese mais bem-acabada de todos os valores que nortearam o mundo medieval […] os guias de Dante nessa travessia sacra e simbólica são um poeta pagão da Antiguidade latina e uma senhorita reles, burguesa e caseira […] Em sua passagem pelo inferno e pelo purgatório, Dante reconhece e conversa com inúmeras personagens dele conhecidas, pessoas notáveis na história recente da Toscana e que aparecem no espaço do sagrado com todas as características de sua vida terrena. Ou seja, assim como as figuras de Giotto […] Ele assim é um homem de dois mundos, pois, ao mesmo tempo em que resume a civilização medieval, sintetiza todas as perplexidades que assinalarão e dignificarão o homem moderno (Sevcenko, 1994, p. 39-41).
[iii] “A lei, por si, pode apenas, e sempre sob a condição de se apoiar na vontade social preponderante, estabelecer essa limitação, por assim dizer, negativa: que se não façam vigorar normas incompatíveis com as suas, derivadas de outras fontes, de tal maneira que fiquem sempre salvas a coerência e a unidade orgânica do sistema” (Del Vecchio, 2005, p.56-57).
[iv] “Por Estado de Direito se deve entender um Estado que, em suas relações com seus súditos e para a garantia do estatuto individual, submete-se ele mesmo a um regime de direito, porquanto encadeia sua ação em respeito a eles, por um conjunto de regras, das quais umas determinam os direitos outorgados aos cidadãos e outras estabelecem previamente as vias e os meios que poderão se empregar com o objetivo de realizar os fins estatais: duas classes de regras que têm por efeito comum limitar o poder do Estado subordinando-o à ordem jurídica que consagram” (Malberg, 2001, p. 449-461).
[v] “Estado Constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder” (Miranda, 2000, p. 86 – grifo nosso).
[vi] “Socialismo e democracia coincidem em nosso tempo e institucionalizam-se conjuntamente com a proposta do chamado Estado democrático de Direito: o socialismo como resultado da superação do neocapitalismo próprio do Estado social de Direito […] Isto significa que o velho Estado de Direito, sem deixar de seguir sendo-o, terá que se constituir em Estado de justiça […] Estado de Justiça tem, sem dúvida, um sentido muito mais abstrato. Ambos os termos só podem considerar-se intercambiáveis se os entendemos no sentido de que o Estado democrático de Direito é hoje o Estado de Justiça, quer dizer, o Estado que aparece atualmente como legítimo, como justo, em função precisamente de alguns determinados valores históricos que são a democracia, o socialismo, a liberdade e a paz” (Díaz, 1998, p. 133-134).
[vii] “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno” (Preâmbulo).
[viii] “Poder legal é aquele apenas instituído por lei; poder legítimo é aquele que, instituído por lei, é jurídica e moralmente correto. Cumpre lembrar que legitimidade é a coincidência entre os anseios do povo com os objetivos do poder […] O poder do Estado é, portanto, poder jurídico, sem perder seu caráter político […] O Estado, entidade abstrata, ficção jurídica, faz sentir sua presença por meio dos agentes públicos (pessoas físicas) e por meio de pessoas jurídicas” (Azevedo, 2009, p. 102-103 – grifo nosso).
[ix] No Princípio Democrático (Canotilho, 1990) só existe um direito se houver a garantia de que ele possa ser usufruído: “A livre-associação, organização e expressão dependem de caracteres objetivos: i) ser inteiramente livre; ii) haver grande publicidade; iii) estar presente o tema do Bem Público; iv) aproximar Governo e Nação” (Menezes, 1998 – grifo nosso).
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