Por JOSUÉ PEREIRA DA SILVA*
Comentário sobre o livro de Axel Honneth.
O livro, cuja edição original alemã é de 2001, consiste, conforme indica o subtítulo do mesmo, em “uma reatualização da Filosofia do direito de Hegel”. Apesar deste subtítulo, no entanto, o objetivo do livro é mais ambicioso que uma simples reatualização do mencionado livro de Hegel.
Na verdade, além do propósito de recuperar e apontar para a atualidade da teoria desenvolvida por Hegel naquele livro, Honneth procura mostrar como a teoria construída pelo Hegel maduro pode ajudar a construir uma teoria crítica capaz de superar as aporias do debate entre universalismo abstrato e contextualismo relativista; ou, em outras palavras, entre liberalismo e comunitarismo.
A intenção de Honneth, pelo menos desde seu livro Luta por reconhecimento, tem sido construir uma teoria social crítica que seja universalista sem ser abstrata, prestando-se, pois, à apropriação pelos movimentos sociais em suas lutas contra a opressão; mas que, ao mesmo tempo, não seja também apenas um reflexo das demandas historicamente situadas de tais movimentos. E, neste sentido, o presente livro é mais um passo nessa trajetória, já que adiciona ao jovem Hegel do período de Jena, central para o livro Luta por reconhecimento, o Hegel maduro da Filosofia do direito.
Em sua edição original, o livro é formado por três partes, cada uma delas com dois capítulos; a edição brasileira, que é objeto desta resenha, contém além dos seis capítulos da edição original uma longa introdução, assinada por Denílson Luis Werle e Rúrion Soares Melo. Esta última ajuda a situar o livro em relação às obras de Hegel e do próprio Honneth, assim como em relação ao debate contemporâneo sobre teorias da justiça e teoria crítica; por isto, é muito útil principalmente para leitores não iniciados.
Da mesma forma que o livro de Hegel, o de Honneth é também formado por três partes. Não dá, no entanto, para estabelecer um paralelo simples entre as partes dos dois livros. Assim, o livro de Hegel se dedica em sequência, nas três partes, respectivamente à discussão de “direito abstrato”, “moralidade” e “vida ética”. O de Honneth, por outro lado, não lida com os mesmos temas da sequência hegeliana.
Em vez disso, as três partes do livro de Honneth são dedicadas, respectivamente, à “Filosofia do Direito de Hegel como teoria da justiça”; ao “vínculo entre teoria da justiça e diagnóstico de época”; e à “doutrina da eticidade como teoria normativa da modernidade”. Nos dois capítulos da primeira parte, onde a filosofia do direito é analisada como teoria da justiça, Honneth discute os temas do direito abstrato e da moralidade; aqui, seu objetivo é mostrar como em Hegel os dois temas são complementares, mas ainda assim insuficientes, pois são unilaterais e incompletos, levando, por isso, ao que ele denomina “sofrimento de indeterminação”. Este último, por sua vez, é o tema do terceiro capítulo que abre a segunda parte do livro, na qual o autor analisa o vínculo entre teoria da justiça e diagnóstico de época.
O conceito de sofrimento é o sintetizador das patologias da liberdade individual. E o sofrimento de indeterminação, que decorre dos limites do direito abstrato e da moralidade, só pode ser remediado na esfera da eticidade, terceira e última esfera do modelo hegeliano; esta esfera é a única que oferece as condições intersubjetivas da autonomia e da autorrealização individual capazes de superar o sofrimento de indeterminação.
Daí o quarto capítulo tratar justamente da libertação desse sofrimento através da discussão do “significado terapêutico de ‘eticidade’”. A libertação do sofrimento de indeterminação é, pois, o objeto do quarto capítulo, que abre a porta para a problemática da terceira parte do livro, na qual encontramos uma discussão mais completa da doutrina da eticidade. A esfera da eticidade seria o ponto de chegada da teoria de Hegel, que Honneth define como uma “teoria normativa da modernidade”; nos dois capítulos desta última parte do livro, o autor discute, respectivamente, a relação entre autorrealização e reconhecimento (capítulo 5) e o que denomina superinstitucionalização da eticidade (capítulo 6).
Como se sabe, a esfera da “vida ética”, encontrada na terceira parte do livro de Hegel, é formada por três instituições, a saber, família, sociedade civil e Estado. Para lidar com a relação entre auto-realização e reconhecimento, Honneth concentra a análise nessas três instituições. A família é considerada a base elementar de toda sociedade e a instituição responsável pela socialização dos indivíduos; tendo o amor como fundamento, a família cuida das carências e necessidades dos indivíduos e lhes fornece a autoconfiança necessária para a participação em interações mais ampliadas nas outras duas instituições.
A sociedade civil é o espaço social onde indivíduos adultos entram em interação perseguindo seus interesses individuais, enquanto o Estado é o lugar do universal; e diferentemente da sociedade civil, onde predominaria a ideia de interesse, o Estado é baseado em valor, de forma que em vez de interesse o que predomina aqui é a noção de honra. Portanto, carência, interesse e honra são, respectivamente, as categorias-chave das três citadas instituições da esfera da eticidade; a elas Honneth vincula formas de reconhecimento necessárias para a autorrealização que são baseadas, respectivamente, no amor, na solidariedade e no direito.
Pode-se ver que há neste livro de Honneth a intenção de vincular o modelo desenvolvido por Hegel em Filosofia do Direito com aquele encontrado nos escritos do período de Jena; dessa forma, fica a impressão de que a teoria esboçada por Hegel naqueles escritos não foi abandonada e sim desenvolvida na obra madura. Isto fica claro na tentativa de Honneth de relacionar as três formas de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) com as três instituições da esfera da vida ética (família, Estado e sociedade civil).
No último capítulo de seu livro, Honneth realça também o entrelaçamento entre as três instituições da esfera hegeliana da eticidade. Assim, a família, que tem o amor como fundamento, é a instituição responsável por cuidar das carências dos indivíduos e de sua primeira socialização; mas na família há também elementos que indicam seu vínculo com as outras duas instituições (sociedade civil e Estado), como é o caso do contrato de matrimônio. Este último contém tanto a dimensão do contrato entre indivíduos que o vincula à sociedade civil quanto a dimensão da legalidade que o vincula ao Estado.
Na sociedade civil, por outro lado, há as corporações, cuja lógica de funcionamento sugere mais a ideia de solidariedade de grupo do que a de interesses em conflito; já o Estado, lugar do universal, aparece também representado como se fosse uma extensão da amizade, ou seja, como expressão de uma ampla comunidade baseada na amizade entre seus membros. Evidentemente, todos os casos supõem relações intersubjetivas e não excluem a possibilidade de conflito, como bem traduz a fórmula “luta por reconhecimento”.
Para concluir, chamo a atenção aqui para uma mudança, aparentemente sutil, na teoria do reconhecimento de Honneth, mas que tem importantes consequências para ela, principalmente por seu autor apresentá-la como uma teoria social crítica. Refiro-me à mudança num dos elementos da tipologia do reconhecimento entre o livro Luta por reconhecimento e os escritos mais recentes, incluindo o livro ora analisado. Ou seja, em Luta por reconhecimento as três categorias correspondentes às três esferas de reconhecimento eram: amor, direito e solidariedade; nos escritos mais recentes, a palavra mérito ou merecimento tem aparecido com frequência no lugar de solidariedade.
Ora qualquer que seja a definição que se dê à solidariedade, não dá simplesmente para substituí-la pela noção de interesses dos indivíduos, sem que isto tenha consequências para a teoria, tanto em sua dimensão propriamente de crítica social quanto no plano normativo. Considero que uma teoria social que se pretende crítica deve ser capaz não só de explicar as iniquidades da sociedade contemporânea, revelando suas assimetrias; ela precisa também ser capaz de apontar caminhos para a superação de tais iniquidades. E, a meu ver, grande parte dessas iniquidades vivenciadas pela sociedade contemporânea decorre da tendência do capitalismo, sobretudo na época atual, a invadir a totalidade das esferas do social, tentando submetê-las à lógica da mercadoria.
Ao substituir a noção de solidariedade pela de mérito nos escritos mais recentes, a promissora teoria de Honneth parece preferir recuperar noções que contribuem para fortalecer ainda mais a lógica dos interesses individuais, em vez de favorecer um aprofundamento da crítica às formas contemporâneas de “fetichismo da mercadoria”.
*Josué Pereira da Silva é professor de sociologia na Unicamp e autor de Trabalho, cidadania e reconhecimento (Annablume).
Publicado originalmente em Intersecções: Revista de Estudos Interdisciplinares, ano 11, no. 1, junho de 2009.
Referência
Axel Honneth. Sofrimento de Indeterminação: uma reatualização da Filosofia do direito de Hegel. Tradução: Rúrion Soares Melo. São Paulo, Editora Singular / Esfera Pública, 2007, 145 págs.