Tapeçaria com generais

Imagem_Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARCIO SALGADO*

Uma figura política egressa das hostes militares deflagra as suas batalhas contra os inimigos reais e imaginários, em busca de um passado que não desejamos retornar

O conto “Tema para uma tapeçaria”, do escritor Júlio Cortázar (1914-1984) é composto de apenas um parágrafo e diz o seguinte:

“O general só tem oitenta homens e o inimigo cinco mil. Em sua tenda, o general blasfema e chora. Então escreve uma ordem do dia inspirada, que pombos-correio espalham sobre o acampamento inimigo. Duzentos infantes passam-se para o general. Segue-se uma escaramuça que o general vence facilmente, e dois regimentos se passam para o seu lado. Três dias depois o inimigo tem somente oitenta homens e o general cinco mil. Então o general escreve outra ordem do dia e setenta e nove homens passam-se para seu lado.  Só resta um inimigo, cercado pelo exército do general que aguarda em silêncio. Transcorre a noite e o inimigo não passou para o seu lado. O general blasfema e chora em sua tenda. Ao amanhecer o inimigo desembainha lentamente a espada e avança em direção à tenda do general. Entra e olha para ele. O exército do general se dispersa. Sai o sol.”

Com sua maestria. Cortázar põe em cena um grande conflito ficcional logo na primeira frase. “O general só tem oitenta homens e o inimigo cinco mil.” O que nos diz tal enunciado? Trata-se de uma batalha, sem dúvida, e se pode ver que, como observam os estrategistas, o poder de fogo das partes é fundamental. Poucas linhas a seguir a situação se inverte, com larga vantagem para o general que granjeia a adesão dos regimentos inimigos. A guerra estava praticamente vencida, não restasse um inimigo.

O texto traduz a cena política atual do nosso país, onde uma figura política egressa das hostes militares deflagra as suas batalhas contra os inimigos reais e imaginários, em busca de um passado que não desejamos retornar. Quais são as batalhas de Jair Bolsonaro? O anticomunismo, tema da Guerra Fria, que teve início após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, e findou com a extinção da União Soviética, em 1991. A proposta do socialismo real fracassou no mundo, venceu o capitalismo que agoniza em suas próprias contradições com o surgimento da pandemia global. Bolsonaro ressuscitou o fantasma do comunismo para declarar-se seu ferrenho inimigo.

O governo Bolsonaro gostaria de ter um controle total sobre o imaginário dos brasileiros, daí o seu desprezo pelo que liberta: a arte, a cultura, o pensamento. Algumas mídias são consideradas inimigas mortais do presidente. Ele tem as redes sociais como o reino da verdade, ali onde as fake news disseminam a intolerância e o ódio aos adversários.

Fala-se com frequência na influência ideológica de Olavo de Carvalho nas políticas do seu governo, inclusive com indicações de seguidores aos cargos da administração púbica. Em livros, cursos online de filosofia e nas redes sociais, ele se notabilizou com ataques virulentos aos intelectuais da esquerda e à liberdade de criação artística. É o autor do abecedário de ideias bolsonaristas que seus seguidores repetem como se fossem máximas.

As suas teorias conspiratórias aparecem como o pano de fundo dessa tapeçaria. Elas dialogam com autores como o alemão Oswald Spengler e o italiano Julius Evola, sendo este último um inspirador do fascismo, e, atualmente, de correntes neofascistas que se reproduzem na Europa e no mundo. Entre os autores brasileiros, Gustavo Corção, expoente do pensamento católico conservador, é uma das suas referências.

Mas o discurso de Bolsonaro não assimila o menor lustre intelectual que possa conter a extrema-direita. Será sempre tosco. Expressa apenas a sua formação na caserna, fiel aos mais obscuros representantes da ditadura.

Em princípio, nada contra os militares no atual governo, a Constituição de 1988 estabelece as atribuições das Forças Armadas. Vale observar que quando ocuparam o poder, durante 21 anos, os militares elaboraram a Carta de 1967 que dava respaldo aos atos arbitrários que já haviam baixado. Contudo, o mais duro deles foi o AI 5, de 1968, que cobriu de sombras a vida política no país, com censura prévia à imprensa e à produção artística, exílios, prisões e torturas dos adversários políticos.

Alguns saudosos da ditadura militar traçam um quadro enganoso da época, com a falácia do milagre econômico, do combate ao terrorismo, da ausência de corrupção, da defesa da moral e dos bons costumes. Agora vão às ruas contra o isolamento social, o STF e o Congresso, e pedem a intervenção militar. Os que viveram aquele período guardam lembranças amargas. Já as gerações mais novas que estudaram a história da ditadura, podem usar o seu discernimento para julgar.

Em outra batalha dessa tapeçaria, Bolsonaro demonstra sua ojeriza à Ciência. Apesar das evidências em contrário, afirmou que a Covid 19 é uma “fantasia” criada pelas mídias, que estimulam a histeria coletiva. Ele contestou, reiteradamente, o isolamento social sugerido pela OMS, posto em prática por governos de todo o mundo. E o que obtivemos como resultado? A situação que estava relativamente sob controle, transformou-se numa tragédia brasileira. Diante das estatísticas alarmantes, o presidente exibe, em cenas e declarações diárias, a sua falta de empatia com milhares de pessoas que perderam os seus entes queridos.

A posição negacionista de Bolsonaro já ficara patente em temas como o meio ambiente, o aquecimento global, entre outros. Enquanto renega o alerta dos pesquisadores contra a pandemia, ele apela ao conservadorismo religioso que respalda os valores retrógrados da sociedade. Sempre que vê uma oportunidade mira sua artilharia contra as conquistas dos negros, das mulheres, das populações indígenas e dos homossexuais. Mas essa é uma batalha inglória – por mais que ele e seus pastores blasfemem –, pois essas conquistas fazem parte da história.

Um governo é feito também de possibilidades. É assim que surge, na distância, o impeachment do presidente. Há consenso de que ele cometeu crimes de responsabilidades ao participar de atos antidemocráticos que ameaçam os poderes Legislativo e Judiciário, além de defender o fim do isolamento social, no auge de uma pandemia que já tirou a vida de milhares de brasileiros. É preciso uma conjunção de fatores políticos para deslanchar o processo de impeachment. Mas, a exemplo do conto citado, o comandante que um dia tem cinco mil soldados ao seu lado, no outro pode estar desguarnecido, e, no seu caso, restará sempre o inimigo.

*Marcio Salgado, jornalista e escritor, é autor de O filósofo do deserto (Multifoco).

 

 

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A Terceira Guerra Mundialmíssel atacms 26/11/2024 Por RUBEN BAUER NAVEIRA: A Rússia irá retaliar o uso de mísseis sofisticados da OTAN contra seu território, e os americanos não têm dúvidas quanto a isso
  • A Europa prepara-se para a guerraguerra trincheira 27/11/2024 Por FLÁVIO AGUIAR: Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos
  • Os caminhos do bolsonarismocéu 28/11/2024 Por RONALDO TAMBERLINI PAGOTTO: O protagonismo do Judiciário esvazia as ruas. A força da extrema direita tem apoio internacional, recursos abundantes e canais de comunicação de grande impacto
  • O acontecimento da literaturacultura equívoco 26/11/2024 Por TERRY EAGLETON: Prefácio do livro recém editado
  • Os espectros da filosofia russaBurlarki cultura 23/11/2024 Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
  • Aziz Ab’SaberOlgaria Matos 2024 29/11/2024 Por OLGÁRIA MATOS: Palestra no seminário em homenagem ao centenário do geocientista
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • O premiado Ainda estou aquicultura ainda estou aqui ii 27/11/2024 Por JULIO CESAR TELES: Não é apenas um filme que soube usar recursos visuais, fontes de época ou retratar um momento traumático da história brasileira; é um filme necessário, que assume a função de memória e resistência
  • Não é a economia, estúpidoPaulo Capel Narvai 30/11/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: Nessa “festa da faca” de cortar e cortar sempre mais, e mais fundo, não bastaria algo como uns R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões. Não bastaria, pois ao mercado nunca basta
  • Guerra na Ucrânia — a escada da escaladaANDREW KORYBKO 26/11/2024 Por ANDREW KORYBKO: Putin viu-se confrontado com a opção de escalar ou de continuar sua política de paciência estratégica, e escolheu a primeira opção

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES