Por ANTONIO D. CATTANI*
Prefácio do autor ao livro recém-lançado
A literatura de antecipação que não envolve duendes, fadas ou dragões, nunca traz boas notícias. A obra de ficção O um escrita no início de 2016 e publicada em 2017, já dava conta do surgimento de algo latente no mundo ocidental. O neoliberalismo não se autorregenera, pelo contrário, acentua de forma inexorável as desigualdades e a luta de todos contra todos solapando os princípios básicos da democracia.
Para continuar dominando corações e mentes os poderosos precisam se valer de homens-acontecimento: Donald Trump, multimilionário crapuloso, assumiu a presidência dos Estados Unidos da América em 2017 sendo reeleito em 2024; Jair Bolsonaro, sinistro político ocupando cargos parlamentares durante quase três décadas, foi eleito presidente do Brasil; Javier Milei, alucinado demagogo promovido pela grande mídia, foi empossado presidente da Argentina em dezembro de 2023.
Seus simpatizantes e, sobretudo, seus financiadores, estavam a postos há muito tempo. Os desastres sociais foram anunciados antecipadamente, porém, algumas vítimas ainda não entenderam a consequência das suas escolhas ou da sua passividade. No âmbito das respectivas nações, esses homens-instrumento executam as ordens do capital com força e rapidez: destruição e privatização de largos segmentos do aparelho de Estado, sobretudo dos órgãos de controle, repressão aos vulneráveis potencializando a intolerância e os preconceitos dos ricos brancos, dos ressentidos de todas as classes.
O paralelo com o que aconteceu na Alemanha nos anos 1930 e parte dos anos 1940 é inevitável. Não se trata de algumas poucas personalidades demoníacas, de demagogos ludibriando pessoas ordinárias e idiotas que quando a situação reverter dirão que não sabiam o que estava acontecendo ou que apenas cumpriam ordens. É o oposto. Desde o início eles sabiam o que estavam fazendo. Os perpetradores têm juízo moral e social peculiar.
Não são desinformados nem desprovidos de consciência do resultado dos seus atos. Eles são movidos por entendimentos específicos sobre a natureza humana, sobre o Estado e sobre a História, compondo uma concepção coesa e articulada do mundo. Obviamente, essas concepções não correspondem ao padrão iluminista que constitui a base do mundo civilizado, democrático e solidário.
Milhares de atos concretos de racismo, de desumanidade, de vilania constituem um padrão ideológico, histórico e estrutural, compartilhado de forma consciente por determinados indivíduos. Hannah Arendt muito contribuiu para promover uma conceção totalmente equivocada sobre a natureza do mal e dos crimes. O conceito de “banalidade do mal” destaca de maneira errônea, para não dizer desonesta, a irreflexão ou a incapacidade de pensar como justificativa para as ações de perpetradores e seus cúmplices.
O padrão incivilizado de largos segmentos da população é financiado por indivíduos ricos que buscam garantir seus privilégios contando com a adesão de pessoas providas de consciência. O mal existe e é praticado por indivíduos conscientes de estarem desrespeitando o imperativo categórico de tratar todos os seres humanos como portadores de direitos. A malignidade se manifesta em indivíduos que, de modo deliberado, operam contra o reconhecimento e o respeito pela dignidade dos outros. Fazer a apologia da barbárie, do horror, da desumanidade, agir de maneira anti-igualitária transforma os indivíduos normais em criminosos, em assassinos.
Para que ocorra essa transição mortífera não basta apenas permissividade e discursos. As pessoas têm que estar armadas de instrumentos letais. Redigido sem ter conhecimento do filme de Alex Garland, Guerra Civil (2024), Tenebris Diebus, Dias tenebrosos parece explicar o que aconteceu antes dos eventos mostrados no filme. Num futuro próximo, os Estados Unidos são dilacerados por algo há muito tempo engatilhado (literalmente).
Na primeira parte, Exspectans diebus – “Dias de espera” – é apresentado um dos tantos complôs em preparação. No caso, por cinco norte-americanos arquetípicos das classes abastadas agindo para reverter questões políticas no sentido que lhes interessa: lógica de classe, sentimentos de superioridade racial, ganância desmedida nos negócios, capacidade de mobilização de recursos.
Na segunda, Diebus spectans – “Dias de observação”, uma jovem antropóloga norueguesa pesquisando uma tribo de indígenas (figuras clássicas da população extinguível), faz um relato instigante da situação. Com o olhar atento, convive alguns dias com outros personagens obcecados e aparelhados para o grande evento que está para explodir.
Diebus irae – “Dias de ira”, detalha a tragédia anunciada, a concretização da síndrome do mal permitida pela posse individual de armas, de uma grande quantidade armas. Não são mais os mass shooting, designação equivocada para ações individuais e isoladas, mas os extermínios seletivos, designação igualmente equivocada para classificar as explosões de ressentimento, de ódio e de desejo de morte, morte do outro, do diferente na cor, na origem e no biotipo.
Num estilo jornalístico seco e impessoal, é redigido por familiares e amigos de vítimas do Las Vegas shooting, Paradise, Nevada em 2017 e do Park Land high school shotting, Miami, Flórida 2018. Ativistas como tantas outros que ainda se mobilizam a partir das centenas de tiroteios anuais. Ver https://www.thetrace.org/ e dados atualizados em https://www.gunviolencearchive.org/
Quando a situação parece amainar, fica-se sabendo do Sileo diebus, dos Dias de reinicio, e da conexão fatal entre o macro e o micro.
População dos Estados Unidos em 2024: 335 milhões. Número aproximado de armas de fogo: 450 milhões. Após cada mass shotting importante a procura por armas aumenta. O mesmo aconteceu às vésperas das eleições presidenciais em 2024. Com a eleição de Trump, o pessoal anda mais sossegado. Provisoriamente, diz Cassandra.
Escrito inicialmente para o movimento pacifista norte-americano, Tenebris diebus foi friamente acolhido e em seguida desdenhado com respostas do tipo, “argumentos anti armamentismo têm que ser mais sutis”, “quem é esse cara para escrever sobre a cultura arraigada do povo norte-americano com relação à segunda emenda”? O espírito belicoso do império prevalece.
Então, requiscant in pace.
*Antonio D. Cattani é professor titular de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor, entre outros livros, de O um (Editora Bestiário). [https://amzn.to/41RXCSy]
Referência
A. D. Cattani. Tenebris Diebus. Porto Alegre, Editora Zouk, 2024, 94 págs. [https://amzn.to/3BzTGLF]
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