Por RICARDO PAGLIUSO REGATIERI*
Comentário sobre a série produzida pela Netflix
Transatlântico é uma série produzida pela Netflix e pelo Studio Airlift de Berlim que estreiou na plataforma de streaming no início deste mês de abril. Baseada no livro The Flight Portfolio (2019), de Julie Orringer, teve à frente de sua produção a norte-americana de origem judia Anna Winger, que vive em Berlim.
A série acompanha refugiados europeus do nazismo que se encontram na cidade portuária francesa de Marselha buscando tomar um barco que os leve para longe daquele continente – e, sobretudo, para os Estados Unidos. Ou, senão, ao menos cruzar a fronteira espanhola por terra e chegar a Lisboa para fazer o mesmo de lá.
O ano é 1940 e está em vigor o regime colaboracionista de Vichy, ainda que o sul da França, onde se localiza Marselha, não estivesse ainda ocupado pelas tropas alemãs como era o caso do restante do país. É nessa França ocupada e nessa Marselha ainda não totalmente sob controle nazista que Transatlântico coloca em cena personagens como Walter Benjamin, Hannah Arendt, Marc Chagall, Marcel Duchamp, André Breton, Jacqueline Lamba, Max Ernst, Walter Mehring e Albert Hirschman.
Para leitores de Walter Benjamin, custa a acreditar vê-lo na Netflix, ainda que, por outro lado, seja justamente esse tipo de movimento de apropriação que a indústria cultural leva a cabo incessantemente. Leitores de Hannah Arendt já a haviam visto no filme sobre ela lançado em 2012 e que obteve algum sucesso em circuitos semicomerciais de cinema.[i] Walter Benjamin e Hannah Arendt são retratados na série de forma caricata, ele falando sobre progresso e ela sobre apatridia.
Albert Hirschman, na altura um jovem de 25 anos, é um dos três personagens centrais que articulam a trama, juntamente com Mary Jayne Gold e Varian Fry, esses dois últimos norte-americanos representantes do American Emergency Rescue Committee. Personagem com ares de herói pop, o impetuoso Albert Hirschman ainda não é aquele que mais tarde trabalhará na Colômbia, fará carreira acadêmica nos Estados Unidos, discutirá temas de economia do desenvolvimento, será o propositor da abordagem do possibilismo e contribuirá para o debate sobre democracia, ganhando um centro com seu nome em Genebra.[ii]
Diferentemente de Gold e Fry, comprometidos com a causa dos refugiados, o pragmático cônsul norte-americano em Marselha encara a guerra como business as usual e considera que os nazistas, ao contrário dos comunistas, ao menos não são contra o mercado.
A despeito de sua estilização que não foge ao padrão comercial da Netflix, a série, que com apenas sete episódios pode agradar àqueles que não gostam desse formato, tem o mérito de colocar um público mais amplo em contato com figuras como Walter Benjamin e Hannah Arendt e o drama de sua fuga do nacional-socialismo. Transatlântico também joga alguma luz sobre o papel dúbio do governo e de indivíduos norte-americanos no período – ainda que a figura do cônsul na série, Graham Patterson, seja uma personagem fictícia.
Mas talvez a questão menos explorada até agora nas telas tenha sido o papel dos filhos das ex-colônias francesas na organização do que viria a se tornar a Resistência Francesa. Só por retratar tal conexão, já valeria assistir Transatlântico. O que veio depois, com o imperialismo europeu em frangalhos ao final da Segunda Guerra Mundial, foi o fortalecimento da consciência anticolonial e as independências das novas nações em África e na Ásia.
O emblema de tal consciência na série é a personagem ficcional Paul Kandjo, que, segundo o ator que deu vida a ela, Ralph Amoussou, foi composta como um amálgama de figuras históricas. Em certo momento, Kandjo afirma que o nazismo representa a colocação em prática na Europa daquilo que os europeus faziam nas colônias. Tal conclusão aparecerá, no início da década de 1950, em obras como Discurso sobre o colonialismo (1950), de Aimé Césaire, e As origens do totalitarismo (1951), de Hannah Arendt.
Hitler queria construir um império de 1.000 anos, mas, como as pessoas não fazem a história como querem, a guerra que seu regime desencadeou acabou por contribuir decisivamente para a dissolução do imperialismo europeu.
*Ricardo Pagliuso Regatieri é professor de sociologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor, entre outros livros, Capitalismo sem peias: A crítica da dominação nos debates no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 1940 e na elaboração da Dialética do Esclarecimento (Humanitas).
Notas
[i] O filme em questão é Hannah Arendt, dirigido por Margarethe von Trotta.
[ii] Trata-se do Albert Hirschman Centre on Democracy, vinculado ao Graduate Institute of International and Development Studies, e atualmente codirigido pela socióloga brasileira Graziella Moraes Dias da Silva e pelo historiador indiano Gopalan Balachandran.
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