Por SANDRA BITENCOURT*
A supremacia branca reage, em escala global, na busca de manutenção de privilégios
Os últimos dias têm sido pródigos em manifestações racistas que aparecem em forma de notícias, notas e opiniões em diferentes espaços de mídia, mostrando que a supremacia branca reage, em escala global, na busca de manutenção de privilégios a partir da odiosa ideia de que determinadas pessoas possam ser inferiores em direitos e reconhecimento.
O fato mais recente é a movimentação da extrema direita no parlamento gaúcho para impedir o debate e evitar que um trecho do hino riograndense seja revisto na medida em que sua conotação é ofensiva à parcela significativa da nossa população.
Qual o papel e a posição do jornalismo frente à existência de categorias raciais e da desigualdade racial? Escondido numa suposta neutralidade, mantém sua contribuição a um sistema que reproduz a exclusão de vozes e as ações afirmativas de igualdade. É longa, pelo menos no Brasil, essa trajetória do jornalismo profissional e da mídia corporativa. Vamos aos conceitos e aos fatos.
O que parece uma discussão trivial no caso do hino riograndense que se atreve a dizer que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” na verdade revela uma complexa construção que ao longo dos anos protege elites e massacra pessoas. O que é que entendemos como raça? Segundo conceito de Bashir Treiler (2016) raça é um sistema de classificação humana que objetiva classificar humanos em categorias distintas de acordo com uma constelação de traços físicos, cognitivos e culturais, cuja existência se acredita ser hereditária, distintiva e largamente inescapável. Cientificamente não tem qualquer amparo.
Trata-se de uma construção social em que um grupo dominante cria hierarquias de seres humanos e sistemas de lógica racial que garantem sua própria dominação racial. É algo tão sofisticado, um construto que envolve várias instâncias e expressões das sociedades, que logra persistir por séculos. Quando pensamos em avanço, em mecanismos para que as categorias raciais incorporem não brancos, especialmente quando novas pessoas surgem através de processos de conquista e emancipação, o recuo se manifesta.
Apesar da retórica contrária, e da linguagem de liberdade e igualdade em seus documentos fundacionais, os Estados Unidos da América adotaram o racismo desde sua fundação. Ao longo dos quase 250 anos de existência da nação, as elites brancas, nos Estados Unidos, deliberadamente construíram e sustentaram uma sociedade baseada na supremacia branca. Essa sociedade escravocrata serve de inspiração a muitos.
A Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu na semana passada, que as universidades do país não podem mais levar em consideração a raça como um dos fatores determinantes no ingresso de estudantes. A resolução termina com uma “ação afirmativa” ou discriminação positiva que há décadas vinha mitigando as desigualdades raciais nas instituições acadêmicas. Embora a sentença anule especificamente os programas de admissão por raça instituídos nas universidades de Harvard e da Carolina do Norte, seus efeitos se estendem a todo o sistema de ensino superior do país.
No Brasil, a adoção das cotas raciais foi um processo de extrema disputa, com papel vergonhoso de boa parte da imprensa. Em 2004, o então Ministro da Educação Tarso Genro participou de uma série de audiências pública. Em audiência no Senado, defendeu: “o governo tem um projeto de reforma profunda da educação brasileira. Queremos chegar a uma educação republicana, democrática, qualificada, moderna, de amplo acesso. As políticas de cotas para negros e indígenas e pessoas oriundas do acesso público ao nível superior são impulsos através dos quais se pode chegar ao nosso objetivo maior”.
A imprensa corporativa brasileira não comungava desse pensamento. Na tese de doutorado “Debate público e opinião da imprensa sobre a política de cotas raciais na Universidade Pública Brasileira”, disponível no site Observatório da Comunicação Pública [https://lume.ufrgs.br/handle/10183/49272?locale=pt_BR], o autor Ilídio Medina Pereira mostra que além do papel ativo do Estado brasileiro, das universidades e dos movimentos sociais, a imprensa foi um ator muito relevante e atuante.
Em 2010, revela Ilídio Medina Pereira em seu estudo, o jornal O Globo se negou a publicar um anúncio da campanha Afirme-se, em defesa das ações afirmativas, justificando que o anúncio tinha um conteúdo opinativo. O mesmo jornal trouxe como argumento o princípio do mérito, classificou as ações afirmativas de injustiças e decretou que o ingresso desses alunos representaria uma queda na qualidade das universidades, o que depois se comprovou ser o contrário. O discurso do jornal em seus editoriais sustenta que as cotas promoveriam o racismo e que os problemas brasileiros eram de ordem social e não racial. Essa posição é sintetizada no livro Não somos racistas, do diretor de jornalismo da Rede Globo Ali Kamel.
O quadro tradicional de debates sobre a questão racial no Brasil estava mudando a partir da discussão das cotas e a maior parte da imprensa fez seu papel elitista e conservador de tentar bloquear a mudança, usando seu papel privilegiado de fixação de sentidos, para intervir e construir uma ideia de que não há problema de relações raciais no Brasil. São muitas as tensões e controvérsias para tentar obter uma resposta geral que explique a desigualdade por classes, raça e gênero.
Houve avanços, claro, até porque os resultados das políticas de cotas que coloriram as universidades são extraordinários e repercutiram inclusive na representação nos nossos parlamentos de jovens negros e negras politizados, preparados e representantes legítimos de contingentes populacionais e periféricos tradicionalmente excluídos de tudo.
Após a votação por 38 votos favoráveis e 13 contrários dois projetos que dificultam alterações do hino gaúcho foram aprovados na Assembleia Legislativa. A escolha da manchete para isso pelo jornal Zero Hora foi: “Aprovados textos que protegem hino do RS”. Como insisto sempre, a escolha das palavras para um título nunca é aleatória. Ele condensa o sentido principal, o enquadramento dado a determinado fato. Consigo imaginar outras dezenas de chamadas para essa notícia, inclusive pensar em quem ou o que precisa de proteção frente ao racismo, à desigualdade e à exclusão. Certamente não é o hino.
Na parte de opinião, colunistas de jornal mostraram distintas posições. Há inclusive uma definição de escravidão bastante peculiar: “condições de trabalho que causam cansaço só de pensar”, mas o fato é que houve distintas opiniões. Isso produz, no entanto, uma falsa ideia de simetria. Colocamos os dois lados, mantivemos neutralidade e cumprimos nosso papel. Talvez essa missão devesse ser a de discutir em profundidade tema que hoje é fundamental para a vitalidade da democracia e, portanto, para o interesse público que deve guiar o jornalismo.
Isso porque manifestações racistas são recorrentes no nosso torrão gaúcho. Há poucos dias, o Sindicato Médico do RS (Simers) lançou nota criticando a possibilidade de a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) criar vagas para assentados do MST no curso de medicina, como já ocorre no curso de medicina veterinária que conquistou a nota máxima em seu desempenho. O diretor de interior do Simers, Luiz Alberto Grossi chegou ao cúmulo de dizer o seguinte: “essas pessoas que vêm do campo, vêm não muito qualificadas para fazer medicina”. “Então, certamente nós vamos desqualificar a profissão concordando com isso. Isso vai gerar precedentes. Não demora, os índios vão querer também fazer”.
A fala pública de entidades médicas é um caso que merece estudo mais aprofundado sobre o imaginário e o papel social dessa categoria. Também deveria receber holofotes críticos da imprensa. Afinal, jornalismo que não tem virtude…
*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).
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