Por JOÃO FERES JUNIOR & EDUARDO BARBABELA*
A retórica da equivalência na imprensa brasileira
No jornal da noite do dia 23 de setembro, no Jornal das 10 da GloboNews, a jornalista Eliane Cantanhede, ao comentar as declarações do General Heleno de que as críticas de nações estrangeiras sobre o desmatamento na Amazônia visam prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro, disse que os bolsonaristas são iguais aos petistas, pois não aceitam críticas: atribuem a elas a exclusiva função de desmerecer o seu líder. Não foi a primeira vez que utilizou de tal comparação, no último dia 11 de julho, no mesmo Jornal das 10 da mesma GloboNews, Cantanhede disse que as ameaças de Jair Bolsonaro à imprensa são equivalentes ao tratamento diferenciado que Lula dava aos “blogueiros sujos”. Ou seja, em sua visão, ambos desrespeitariam igualmente a liberdade de expressão (representada pela grande imprensa).
Responsável por popularizar a expressão “gente cheirosa”, criada com o intuito de sugerir que os pobres cheiram mal, essa jornalista está longe de ser uma exceção na imprensa brasileira. A equiparação da agenda do PT com a de Jair Bolsonaro, como se fossem radicalizações equivalentes, uma à esquerda e outra à direita do espectro político-ideológico; a afirmação de que ambas posições estariam fora do âmbito razoável da democracia e, portanto, ameaçariam sua estabilidade em nosso país, apareceu com grande força nos três jornais estudados pelo Manchetômetro já ao longo da campanha à presidência de 2018.
Em nossa base de textos jornalísticos, identificamos 14 editoriais no Estadão estruturadas em torno dessa ideia de equivalência, 6 em O Globo e 6 na Folha de S.Paulo. Nove desses editoriais do Estadão utilizam também a palavra “lulopetismo”, termo inventado pelo jornalista Clovis Rossi, da Folha de S.Paulo, e que se tornou comum nos editoriais e colunas de opinião da grande mídia brasileira (Gagliardi, 2018).
Os editoriais do Estadão trazem trechos como:
Lula da Silva e o PT são gêmeos univitelinos de Jair Bolsonaro.
O PT de Lula da Silva, assim, em nada se diferencia de seu antípoda, o bolsonarismo primitivo: ambos invocam a democracia com o objetivo de destruí-la assim que houver oportunidade.
O tom histriônico da linguagem empregada pelos editorialistas do Estadão não deve turvar a compreensão do posicionamento dos outros dois jornais, que afirmaram em editorial repetidamente, até as vésperas do segundo turno da eleição de 2018, que Bolsonaro e o PT representavam ameaças equivalentes à democracia.
Mas a imprensa não se contentou em utilizar a retórica da equivalência para tentar produzir um efeito eleitoral. Já transcorridos quase dois anos de governo Bolsonaro, a despeito das evidências abundantes de desapreço por valores e instituições democráticas dadas pelo presidente, seus ministros, correligionários e seguidores, o discurso da equivalência ainda permanece nos grandes meios de comunicação. No dia 13 de maio de 2020, a edição do Estadão trouxe editorial comentando possibilidade de acordo entre Bolsonaro e o Centrão, na conclusão do texto lê-se:
A concretização do acordo de Jair Bolsonaro com o Centrão representa o abandono da política prometida na campanha, escanteando a um só tempo o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. Tal como Lula e Dilma fizeram, o tal pacto levaria o País à garra por meio da irresponsabilidade fiscal, tudo em troca de apoio político-eleitoral. De forma trágica e dolorosa, o País vê como bolsonarismo e lulopetismo são semelhantes, se não nos meios empregados, certamente quanto aos fins que almejam.
Em editorial de 24 de maio, a ideia aparece novamente:
A extrema polarização política, não é novidade, só interessa aos irresponsáveis que figuram nos dois polos opostos. Jair Bolsonaro e Lula da Silva – ou quem quer que seja seu preposto – alimentam-se mutuamente da enorme rejeição que parcelas expressivas de cidadãos sentem por um e por outro.
Em editorial de 26 de maio de 2020, intitulado “Nascidos um para o outro”, o jornal comete as seguintes passagens:
Tanto o presidente Jair Bolsonaro como o chefão petista Lula da Silva se associam na mais absoluta falta de escrúpulos, em níveis que fariam até Maquiavel corar.
Jair Bolsonaro e Lula da Silva unem-se como siameses. Enxergam o mundo e seu papel nele da mesmíssima perspectiva. Tudo o que fazem diz respeito exclusivamente a seus projetos de poder, nos quais o Estado e o povo deixam de ser o fim último da atividade política e passam a ser meros veículos de suas aspirações totalitárias.
Ambos, Bolsonaro e Lula, só se importam com o sofrimento e a ansiedade da população na exata medida de seus objetivos eleitorais.
A retórica da equivalência não se restringe ao periódico fundado por Júlio de Mesquita. O Globo traz enquadramento em tudo similar em editoriais recentes. Ao comentar o lançamento do Prêmio Nacional das Artes, produzido pelo secretário Roberto Alvim como homenagem ao ideólogo nazista Joseph Goebbels, o editorial comete a seguinte passagem:
O prêmio demonstra como o projeto bolsonarista de apoio às artes é, ou era, dirigista, intervencionista. Nada diferente do que em qualquer Estado autoritário. Se a sociedade e instituições rejeitaram este mesmo desvio na era lulopetista, inclusive com o apoio de Regina Duarte, faz o mesmo agora (sic).
No editorial do dia 2 de julho de 2020 os editorialistas de O Globo produzem mais uma pérola da retórica da equivalência:
O bombardeio de mensagens em época de campanha é recurso que já foi usado pelo PT e serve de base para processo que a chapa Bolsonaro-Mourão enfrenta no TSE. As armas digitais não discriminam ideologia.
Agora o argumento é de aplicação mais tópica. Há indícios fortes de que Bolsonaro tenha usado de esquemas ilegais de difusão de mensagens pelo WhatsApp na última campanha. O Globo então declara que o PT fez uso da mesma trapaça eleitoral.
Como mostramos no começo do texto ao comentar declarações de Eliane Cantanhede na GloboNews, a retórica da equivalência não está somente no jornalão do Grupo Globo.
Juntando-se a seus pares, Folha de S.Paulo publicou no dia 23 de agosto editorial intitulado “Jair Rousseff”, no qual argumenta que Bolsonaro estaria se igualando a Dilma ao “liberar as chaves dos cofres do governo na esperança de, mais adiante, garantir uma reeleição mais tranquila”.
A análise acima demonstra uma combinação de ativismo político – no primeiro momento com intuito de influenciar o resultado eleitoral e, depois, a formação de opinião pública – e forte rejeição ao pluralismo ideológico. Dizer que o PT significa uma ameaça à democracia comparável ao bolsonarismo, um movimento com claras inclinações fascistas, é compactuar de uma visão muito estreita do que seja o conjunto de ideias dignas de figurar na esfera pública democrática. Em todo o mundo democrático, as posições em torno questão da disciplina fiscal do estado e, consequentemente, de seu papel na economia definem a divisão entre esquerda e direita. Ao tentar excluir o PT do âmbito do debate democrático, a imprensa brasileira pretende instituir uma democracia de direita puro sangue. O fato de tal concepção “autoritária” de democracia se aproximar bastante do projeto bolsonarista é ironia tétrica que não escapa aos olhos mais atentos.
*João Feres Júnior é professor de ciência política do IESP-UERJ. É coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e do Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público (LEMEP).
*Eduardo Barbabela é doutorando em Ciência Política no IESP-UERJ.
Publicado originalmente no site Manchetômetro