Uma folha antiga – lições de Kafka contra o extremismo

Área da Faixa de Gaza bombardeada / Reprodução Telegram
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Por FLÁVIO VALENTIM DE OLIVEIRA*

A narrativa de Kafka ressoa hoje como uma alegoria invertida: o imperador se transformou em bárbaro açougueiro

1.

Uma folha antiga é um texto de Franz Kafka escrito nos anos de 1916-1917, ou seja, em pleno período da Primeira Guerra Mundial. Ele integra o conjunto das pequenas narrativas da obra Um médico rural. Um traço comum entre essas narrativas é que os personagens são jogados no centro de pesadelos sociais, de comunidades humanas tão incomunicáveis quanto violentas e que nutrem ódio por aquilo que designamos de civilização.

É uma alegoria enigmática e, na realidade, o estilo hermético do escritor provocou muitas vezes críticas advindas de intelectuais marxistas que na época o consideravam um artista alienado e anti-histórico (como, por exemplo, György Lukács e Bertold Brecht) enquanto, por outro lado, os intelectuais judeus vibravam com cada imagem e aporia do narrador como prova textual de suas vinculações com a causa sionista (como, por exemplo, Max Brod e Gershom Scholem).

Não me proponho a realizar aqui um estado de arte da recepção crítica dos textos kafkianos no pensamento de outros pensadores contemporâneos. Mas me parece oportuno retomar as alegorias kafkianas como chave de leitura do nosso mundo, primeiramente, para nos afastar de um insuportável regresso editorial do chamado biografismo kafkiano e o interesse por sua intimidade sexual que só empobrece o conteúdo crítico da obra do artista.

Em segundo lugar, é preciso mencionar que um dos elementos centrais da narrativa kafkiana diz respeito à problemática relação entre mito e violência, como destacou o filósofo Theodor Adorno. Diferente de outros autores (marxistas ou sionistas), Theodor Adorno reconhecia que Kafka era um narrador para espíritos dialéticos: uma lição certamente aprendida com outro filósofo (tão dialético quanto Kafka), a saber: Walter Benjamin.

Contudo, é preciso esclarecer que na época de Kafka o sionismo não era propriamente uma ideologia de extrema direita. Em importantes setores intelectuais se acreditava em um sionismo cultural e literário; falava-se de uma confrontação do judeu consigo mesmo, cujo confronto era simbolizado socialmente no seio da tradicional família judaica com discussões e conflitos dos filhos com os pais.

Em outras palavras, o sionismo cultural não era propriamente uma crença jurídica e política – e muito menos militar – na fundação de um Estado judaico. A radicalização do judaísmo – onde o grande representante era Martin Buber – fazia menção em colocar a literatura em primeiro plano e não a política. Era a literatura que poderia reacender o ideal judaico. É curioso nesse sentido que Martin Buber tenha esboçado uma preocupação com o fato de que o sionismo cultural era uma resistência às tentativas do mito, especificamente do mito do judeu obediente, algo bastante propenso a certas interpretações do messianismo, notadamente do messias grandioso.

Theodor Herzl, por sua vez, falava que o Estado judaico era uma personalidade coletiva que precisava fazer tábula rasa às muitas ideias retrógradas do próprio judaísmo. O judaísmo, segundo Theodor Herzl, atravessava uma crise moral, um obscurecimento dos seus próprios valores libertários, de um judaísmo que não mais se importava com a vida em comunidade e se integrava cada vez mais aos valores burgueses. Esse sionismo refinado e crítico ficou no meio do caminho.

2.

A peça Uma folha antiga parece ser tão arcaica quanto extemporânea. Arcaica porque parece que estamos lendo um texto que faz referência ao mundo chinês (em virtude da presença de uma autoridade imperial) ou de um texto da tradição judaica (em virtude do uso ambíguo do termo “nômade”). Extemporânea porque a dimensão arcaica do texto atravessa uma temporalidade histórica demarcada e assombra a nossa época, fazendo supostas referências ao fracasso civilizador do liberalismo, especialmente quando o narrador diz que os nômades não entendem “nossa maneira de viver ou de que nossas instituições são tão incompreensíveis quanto indiferentes” (Kafka, Uma folha antiga, p. 20).

A peça narrativa faz de início uma referência a um velho problema: o problema do negligenciamento da fronteira, da defesa da pátria; um problema histórico presente nas ideologias nacionalistas, no anseio judaico na época em se proteger contra os seus inimigos antissemitas ou de qualquer Estado xenófobo. De todo modo, o narrador é um sapateiro, um representante da população civil que acorda perplexo diante da ocupação militar da praça central de seu país. Os invasores (os nômades) abominam casas, são obcecados por armamentos e não são higiênicos. A língua não é uma instituição cultural e eles recusam até mesmo a linguagem de sinais. Fazer caretas e babas que escorregam pela boca é algo corriqueiro para eles.

Confesso que uma das cenas mais violentas e perturbadoras da literatura contemporânea parece estar condensada nessa pequena narrativa. O açougueiro cansado das pilhagens dos bárbaros, resolve um dia não abater o boi, como se isso sabotasse ou interrompesse o ritual de violência do invasor. Ocorre que os nômades atacam o boi vivo de todos os lados com mordidas impiedosas, arrancando-lhe pedaços de sua carne quente e com os mugidos do animal se propagando de modo pavoroso na audição do narrador e desaparecendo numa poça de sangue e restos mortais.

Os súditos, por sua vez, esperam um sinal político do imperador. Mas esse personagem aparece na janela de seu castelo de modo recluso e impotente. Seu poder ou pelo menos a crença em seu poder se parece mais com uma fantasmagoria. Kafka foi, sem dúvida, um escritor notadamente provocativo com as nossas crenças de salvação – sejam elas religiosas ou seculares. No final das contas, o narrador desperta para o fato de que uma possível salvação pesa sobre os ombros da própria população. Kafka cita literalmente os trabalhadores desse reino, a saber: artesãos e comerciantes. Serão eles os que conseguirão expulsar os nômades e suas práticas de violência? A narrativa fica em aberto para os espíritos dialéticos, como diria Theodor Adorno. Mas quais seriam as lições de Kafka para esse contexto de extremismo judaico?

3.

Após o chamado massacre da farinha, Benjamin Netanyahu continuou a se vangloriar ao dizer que a autoridade judaica é agora firme, forte e capaz de expulsar qualquer invasor, qualquer nômade, num cenário político e bélico que nos faz lembrar da narrativa kafkiana. O narrador kafkiano diz que os trabalhadores não se vangloriam da tarefa de salvação da pátria. Essa constatação nos faz perguntar: o sionismo político de Benjamin Netanyahu está apto a salvar a memória judaica?

Invertendo a parábola: Benjamin Netanyahu se propõe agora a ser o verdadeiro imperador, mas ao se tornar imperador ele é agora também o próprio açougueiro. Aliás, a alegoria política do boi e do açougueiro é comum tanto nos discursos de Benjamin Netanyahu, que vê os palestinos como animais que devem ser cercados e abatidos, como nos discursos do bolsonarismo que comparava os afrodescendentes à imagem de animais preguiçosos e inúteis para a sua economia ultraliberal.

Aliás, é com razão que Bruno Altman denuncia que a extrema direita do governo de Benjamin Netanyahu tenha incorporado os ideais supremacistas. É um governo que beneficia judeus brancos e europeus com uma educação altamente colonizadora e racista. A extrema direita judaica se apropriou do mito totalitário da segurança burguesa: esse ideal de segurança foi um delírio constante de higienização social e, posteriormente, se transformou sem nenhuma disfarçatez num projeto de genocídio, a tal ponto que o território da infância e o território da morte já não tem nenhuma distinção em Gaza.

Walter Benjamin, importante leitor de Kafka, escreveu na sua obra Passagens que o burguês nunca aboliu totalmente a velha concepção medieval da fortificação. Ele sempre buscou a transformação do mundo para que ele fosse um lugar habitável e, com efeito, não seria estranho, portanto, que a burguesia assimilasse a morte de forma degenerada. Netanyahu pode ser visto como esse personagem degenerado que faz do poder o seu camarote fortificado.

Se a sociedade burguesa do século XIX tinha uma relação totêmica com as mobílias e os interiores para depurar as alegorias da morte – ainda citando Walter Benjamin – a extrema direita, por sua vez, assimilou a relação totêmica com muros, arames farpados e armamentos para expulsar os seus pretensos demônios ou os pretensos nômades. A folha antiga de Kafka ressoa agora como uma alegoria invertida: o imperador se transformou em bárbaro açougueiro.

Foi essa ideologia da violência legítima que fez a embaixada de Israel convidar Lula para conhecer o museu do Holocausto com o propósito de demonstrar a ignorância histórica do líder brasileiro. Não esqueçamos, entretanto, que essa embaixada é a mesma que serve a um líder que não sentia qualquer desconforto em sugerir a exportação do modelo de Gaza (da cidade sitiada) para as periferias brasileiras governada na época por seu aliado de extrema direita no Brasil.

*Flávio Valentim de Oliveira é professor de filosofia. Autor, entre outros livro, de Arte, Teologia e Morte. Filosofia e literatura em Franz Kafka e Walter Benjamin (Appris). [https://amzn.to/3xAH44f]


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