Uma greve legítima

Imagem: Jan van der Wolf
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Por BRUNO RESCK*

A greve de um grande segmento da base de apoio do PT, serve como um sinal de alerta e uma oportunidade para mudar de rumo e salvar seu governo

1.

Existe uma disputa permanente pela apropriação da riqueza socialmente produzida. Há também uma feroz disputa pela apropriação do orçamento público que todos nós financiamos por meio do pagamento de impostos. Vários segmentos se apresentam para conquistar seu quinhão nesta disputa. Portanto, o papel do Estado deveria ser o de arbitrar essa disputa e definir a melhor alocação dos recursos para promover o desenvolvimento das forças produtivas e o bem-estar da população.

A elite do funcionalismo público (judiciário, legislativo e militares) e o grande capital (agrário, financeiro e comercial) usam sua influência para manter e ampliar seus privilégios. Quem pode mais, chora menos. Por que algumas reivindicações são mais legítimas que outras?

Vejamos. O orçamento Federal executado em 2023 foi de R$ 4,36 trilhões. Deste montante, 43,23% (R$ 1,89 trilhões!) foi pago na manutenção da dívida pública. Para ser mais didático, para cada R$ 100 que pagamos de impostos, R$ 43 vai para a dívida pública. Quem são os detentores da dívida pública do Brasil? Instituições financeiras, fundos de investimento e investidores externos ficam com aproximadamente 58% desse bolo. Para ficar ainda mais didático, o mercado financeiro abocanhou aproximadamente R$ 900 bilhões de nossos impostos em 2023. A saúde ficou com 3,69% e a educação 2,97% dos gastos do governo em 2023.

Além da drenagem dos impostos para o topo da pirâmide, essa classe de rentistas exerce pressão junto ao Banco Central (independente?) para manutenção de juros estratosféricos retroalimentando um ciclo que gera uma abundante riqueza sem passar pela produção e geração empregos, o que o economista Ladislau Dowbor chama de “A Era do Capital Improdutivo”. O Estado brasileiro é uma máquina de transferência de renda da base para o topo da pirâmide, para o 0,1% do topo.

Pois bem, esse mesmo mercado financeiro é quem coloca a faca no pescoço do governo para cortarem gastos através de políticas de austeridade fiscal. Todo o esforço do atual Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é para produzir déficit zero (ou superávit) e garantir o pagamento da dívida, além de ampliar as frentes de acumulação através de concessões e privatizações. É importante destacar que a base de cálculo para os cortes de gastos é a “Receita Primária” que leva em consideração todos os gastos do governo, exceto, o pagamento de juros. Portanto, não há limites para gastos com as despesas financeiras.

Recentemente, o governo divulgou uma pequena revisão nos valores de superávit fiscal para o ano de 2025. Desde então, a imprensa corporativa que representa o mercado financeiro tem batido diuturnamente no governo. Na prática, o grande capital financeiro usa seu poder e influência através dos meios de comunicação para garantir suas demandas. O que os rentistas estão fazendo? Defendendo seus interesses, não? Por que os servidores não podem? Qual instrumento de pressão os servidores possuem que não seja a paralisação das atividades?

2.

Desde o início do mês de abril, ao menos 52 Universidades e 79 Institutos Federais deflagram greve. A pauta busca recompor o orçamento das instituições, recomposição salarial dos servidores, reestruturação das carreiras e revogação de medidas aprovadas desde o governo Temer. Os orçamentos dos Institutos Federais de Educação sofreram profundos cortes desde 2016. É preciso um grande esforço alocativo para recompor o orçamento dos Institutos Federais de Educação que, mesmo com um aporte de R$ 5,96 bilhões em 2023, ainda estamos num patamar próximo ao de 2016. Os vencimentos dos técnicos administrativos em educação (TAEs) e dos docentes estão congelados há seis anos, além de profundas distorções no plano de carreira. O governo concedeu 9% de reajuste linear em 2023 num importante gesto, porém, insuficiente para recompor as perdas salariais estimadas em 47% desde o governo Michel Temer.

 A proposta de reajuste para os servidores da educação para o ano de 2024 é de 0%, 9,0% para 2025 e 3,5% para 2026. Um reajuste muito aquém dos 24,2% concedidos à Política Federal e à Polícia Rodoviária Federal. Governar é fazer escolhas, e o atual governo escolheu “cozinhar” a sua base de apoio oferecendo zero de reajuste em 2024. O atual governo escolheu uma política draconiana de ajuste fiscal.

A eleição de Lula representou a esperança na reconstrução do país diante da tragédia dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Por outro lado, Lula 3 assumiu para si o compromisso de uma política neoliberal de arrocho fiscal materializado pelo Arcabouço Fiscal. Existem duras críticas (inclusive de parte da esquerda) ao movimento paredista, pois, supostamente, a greve contribuirá para enfraquecer o governo diante do avanço e da coesão da extrema direita.

Não obstante, a greve de um grande segmento da base de apoio do Partido dos Trabalhadores, serve como um sinal de alerta e uma oportunidade para mudar de rumo e salvar seu governo. Não é possível servir dois senhores ao mesmo tempo. Não será possível reconstruir o país, ao mesmo tempo, conduzir políticas de austeridade fiscal que interessa apenas ao setor financeiro. Como adequar as 100 novas unidades dos Institutos Federais com suas demandas por investimento, custeio e pessoal dentro do Arcabouço Fiscal? Como manter os pisos constitucionais de educação e saúde dentro do Arcabouço Fiscal?

Não há alternativa. Ou o governo acaba com os pisos constitucionais, ou acaba com o Arcabouço Fiscal. Uma das bases do discurso neoliberal é a precarização dos serviços públicos e a eleição dos servidores como vilões. Não há possibilidade de construção de um Estado de bem-estar sem servidores com estabilidade e bem remunerados.

Os representantes do governo que dialogam com os sindicatos dizem que o orçamento de 2024 está fechado. Não para o saco sem fundos do pagamento de juros! O orçamento está fechado para sua base de apoio. A arte de governar é mediar os conflitos e estabelecer as prioridades alocativas. Ao que parece, a educação federal, a ciência e tecnologia não estão no rol de prioridades neste momento.

*Bruno Resck, geógrafo, é professor no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) – Campus avançado Ponte Nova.


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