Uma guerra imprevisível

Imagem:Emir Bozkurt
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Por VALERIO ARCARY*

A guerra contra o Irã revela a ilusão da invencibilidade: mesmo nações poderosas aprendem, tarde demais, que a soberania não se destrói com bombas, mas se fortalece na resistência de um povo. A história julgará não apenas os vencedores, mas os que calaram quando era preciso falar

“Duas coisas indicam fraqueza. Calar-se quando é preciso falar, e falar quando é preciso calar-se (Provérbio persa).

“Meia verdade é sempre uma mentira inteira” (Provérbio chinês).

1.

A história ensina que nenhum Estado é invencível. Nunca se sabe como vai terminar uma guerra quando ela começa. Ninguém pode antecipar o desenlace da guerra iniciada por Israel contra Irã, apesar do ataque dos EUA, que abriu o caminho para um comprometimento norte-americano irreversível.

Imprevisível, porque o projeto do nacional-imperialismo de Tel Aviv nunca foi somente impedir o Irã de ter uma bomba nuclear. Essa narrativa é meia verdade. Trata-se de derrubar a República islâmica, um raro Estado independente na periferia do mercado mundial, uma estratégia muito mais perigosa. Benjamin Netanyahu arrastou Donald Trump, que improvisou um giro político provocando dissidências até na extrema-direita que o apoia, para exame, avaliação, ou teste da reação de Moscou e Beijing, ao exibir sua superioridade militar.

Evidentemente, parece mais provável uma derrota militar iraniana, em função da enorme disparidade de forças. A máquina militar sionista associada ao poderio dos EUA é, esmagadoramente, maior. Não é possível para o Irã resistir sem apoios da Rússia e da China, que parecem ser improváveis. Mas Benjamin Netanyahu e Donald Trump podem estar subestimando o regime de Teerã, que parece ter ainda coesão social interna, e bombardeou uma base norte-americana no Qatar.

 Anunciou, também, por enquanto, como ameaça o fechamento do estreito de Hormuz, o que produziria uma onda de choque inflacionário sobre a economia mundial com a redução vertiginosa da oferta de 20% do petróleo e gás.

Não podemos, também, desconsiderar que há variados tipos de derrotas. Destruir a infraestrutura militar do Irã em uma guerra aérea não é o mesmo que conquistar o país, uma estratégia impossível sem uma invasão. A maior vitória de Benjamin Netanyahu, até agora, foi política: a decisão de Donald Trump de iniciar bombardeios “por prestações”, ainda que camuflando a decisão de declaração de guerra.

A destruição das centrífugas com o pretexto de que o Irã não pode ter armas nucleares, tentando legitimar como defensiva uma brutal agressão, serve para mascarar um plano imperialista. O desafio é a disputa contra a China pela supremacia de poder no sistema mundial. O regime islâmico é o principal obstáculo para um pleno domínio do Oriente Médio pela Tríade.

2.

Desde os anos cinquenta, quando o Reino Unido e os EUA apoiaram um golpe militar que derrubou o governo eleito de Mosaddegh, e sustentaram a ditadura fantasiada de monarquia do Xá Reza Pahlevi, foi assim. A vitória da revolução popular liderada pelo clero xiita em 1979 foi um duro revés. Israel e EUA estão aproveitando a oportunidade pela ofensiva contra os palestinos, a neutralização do Hezbollah e a queda Assad na Síria para impor uma derrota histórica ao Irã.

Mas as guerras não se lutam somente com armas. Toda guerra é uma luta político-social em forma extrema, e a disputa pelas consciências é tão importante como as bombas. Quase dois bilhões de pessoas no mundo são muçulmanas, se calcula que algo em torno de 10% são xiitas, pelo menos duas centenas de milhões. O regime de Teerã é uma teocracia ditatorial, ainda que haja eleições e pluralidade de candidaturas, desde que aprovadas pelo conselho supremo dos aiatolás, e não merece nenhuma confiança da esquerda mundial.

Ao contrário, a violenta repressão ao movimento de mulheres é um ataque às liberdades democráticas mais elementares. Mas ninguém na esquerda mundial pode ficar indiferente diante de uma guerra imperialista contra uma nação periférica que defende seu inalienável direito à soberania nacional.  A defesa do imediato cessar fogo e de uma solução pacífica deve ser o eixo da solidariedade com o Irã.

Donald Trump garantiu que o bombardeio foi um sucesso total. O regime de Teerã afirma que seus estoques de urânio enriquecido permanecem intactos, assim como a capacidade técnica nuclear. O mais provável é que ambos estejam mentindo. As informações militares incontroversas disponíveis são poucas. É impossível ter uma avaliação realista do contexto militar.

Mas é evidente que o cenário político-militar da guerra mudou com o engajamento dos EUA, ainda que tenha sido um improviso precipitado pela iniciativa nacional-imperialista de Israel. O mínimo que se pode dizer é que a situação militar é muito desfavorável para o Irã. A superioridade militar de Israel parece ter se confirmado, deixando o espaço aéreo iraniano, nestes primeiros dez dias muito mais vulnerável.

Mas as defesas aéreas de Israel não são invioláveis, e não se sabe por quanto tempo o volume de mísseis de Tel Aviv é suficiente diante do armazém de mísseis e lançadores de Teerã, ainda que fragilizado. Benjamin Netanyahu tem apoio da esmagadora maioria da população judia na agressão ao Irã, mas, por quanto tempo, se a rotina de refúgio nos bunkers se prolongar?

A dimensão da rede de alianças e a força das armas pode parecer o fator decisivo em uma guerra, mas não são o bastante. Os EUA deveriam ter aprendido essa lição no Vietnam, no Iraque e no Afeganistão. E o Irã é, comparativamente, uma sociedade mais complexa. Um governo pode ser derrotado, mas a subjugação de uma nação é algo muito mais complexo.

3.

Israel derrotou, militarmente, o Hamas, ao custo de um genocídio sem precedentes neste século, mas o enfraquecimento da milícia não foi aniquilação da resistência palestina. Israel liquidou a primeira linha do núcleo dirigente do Hezbollah, mas a neutralização da milícia libanesa foi relativa. Os houthis no Yemen têm sido bombardeados, mas mantém posições.

Apesar destas indiscutíveis vitórias militares, o governo de Benjamin Netanyahu vivenciou um isolamento internacional que Israel nunca conheceu. Não basta para Tel Aviv destruir a infraestrutura militar e as instalações de enriquecimento de urânio do Irã. Israel quer derrubar o regime de Teerã e consolidar o domínio dobre o Oriente Médio. Mas o primeiro objetivo não parece possível somente com uma guerra aérea.

Não é possível por três razões: (a) primeiro porque os mísseis de Israel não são eficazes diante de instalações subterrâneas; (b) segundo porque, mesmo com o engajamento dos EUA e seus super-bombardeiros e suas superbombas, nunca se poderá saber em que medida o Irã poderá preservar reservas de urânio enriquecido; (c) terceiro, por que, por mais que sejam eficientes as fontes de informação de Israel, parece impossível evitar o perigo de um vazamento radioativo, ou seja, um desastre ambiental apocalíptico indefensável.

Mas, sem tropas no chão e uma invasão militar em toda a linha, como fazê-lo? Israel tem condições de vencer o Irã sem a presença das Forças Armadas norte-americanas? Até onde Donald Trump está disposto a ir? A hegemonia conquistada pelo abuso de força militar é tirânico e insustentável.

Estamos no alvorecer de uma Terceira Guerra Mundial? Não, ainda não. A perspectiva de um confronto direto entre os EUA e China não está colocado. Mas nunca existiu uma transição pacífica de supremacia no sistema internacional nos últimos quatrocentos anos.

Londres foi à guerra quatro vezes contra Amsterdam no século XVII, até derrotar a Holanda. Inglaterra foi à guerra contra a França quatro vezes no século XVIII, até a derrota de Napoleão em 1815. A Alemanha, com o apoio do Japão, empurrou o mundo para duas guerras mundiais no século XX.

Não podemos saber se diante da ascensão da China será possível uma passagem concertada de incorporação pacífica aos centros de poder. Não parece, no entanto, a hipótese mais provável. Nos países da Tríade, a começar pelos EUA, a força política mais poderosa é a extrema direita neofascista. Na Europa, o cerco à Rússia através da expansão da OTAN ofereceu a Putin a oportunidade de legitimar, internamente, a invasão da Ucrânia. A China aposta em ganhar tempo.

Mas Israel não hesitou no projeto de uma guerra de “recolonização” do Irã. Estamos na iminência do uso de armas nucleares em guerras regionais? Não, só poderia acontecer, se houvesse um total descontrole, uma situação caótica. Mas se enganam aqueles que calculam que uma derrota do Irã iria diminuir o impulso nacional-imperialista dos EUA. Se o regime de Teerã viesse a cair o mundo ficará muito mais perigoso, não menos.

O Irã não queria agora uma guerra com Israel, muito menos com os EUA. O regime da igreja/partido/ exército persegue o cessar fogo, o que sinaliza a admissão de uma condição de inferioridade. Não admitiu, entretanto, rendição. Israel violou todas regras do direito internacional. Mas ninguém pode dizer que foi uma surpresa. O genocídio em Gaza é um crime contra a humanidade, uma aberração histórica.

*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo). [https://amzn.to/3OWSRAc].


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