Van Gogh – pintura e trabalho

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 Por LUIZ RENATO MARTINS*

A empatia inicial de Van Gogh com a vida proletária e a sua valorização ética do trabalho produziram uma nova economia significante

Mudanças

No começo, ao esboçar as suas primeiras tentativas artísticas, que datam do início dos anos 1880, Van Gogh (1853-1890) denotou (tal como Cézanne [1839-1906]) provir do fecundo tronco comum do romantismo e do realismo; tronco que tinha em Daumier (1808-1879) um ramo crucial e paradigmático, e um marco moral.

Van Gogh, no início de sua trajetória, acrescentou a luminosidade dramática de Rembrandt (1606-69) aos aspectos extraídos do realismo, de Daumier e Courbet (1819-1877), e da rusticidade campestre da pintura, de Millet (1814-75) e do grupo de Barbizon. Adotou ainda pontos de vista explicitamente anticapitalistas e atribuiu ao trabalhador em geral traços heroicos.[i]

Sabe-se, a propósito, que Van Gogh tentou a investidura religiosa antes de se definir por uma formação artística a partir de 1880. Assim dedicou-se, por cerca de dois anos, entre 1878 e 1880, à evangelização de mineiros de carvão em Borinage, no sul da Bélgica.

Poucos anos depois, ao se referir ao hoje célebre Os Comedores de Batata (The Potato Eaters, abril de 1885, óleo sobre tela, 82 x 114 cm, Amsterdã, Van Gogh Museum), obra de sua produção inicial realizada ainda na Holanda, o pintor destacou (em carta ao irmão Theo, em 30.4.1885) a ênfase conferida no quadro às mãos das figuras – de fato, fatores cruciais do dinamismo centrípeto do quadro.[ii] Assim, o pintor enalteceu o trabalho braçal dos camponeses e o fato de, por isso, ganharem a vida de modo honesto, como disse.

Enquanto habitava a Holanda, o compromisso de Van Gogh com os trabalhadores compreendia um estilo pictórico de orientação realista, mas com fortes acentos românticos e influências literárias, de Hugo e outros autores do período.[iii] Tal perspectiva, com aspectos idealísticos, foi transformada e ganhou rapidamente novas feições, a partir da mudança de Van Gogh para a França, em 1886.

Nesse país, mais industrializado, cosmopolita e dinâmico do que a Holanda àquela altura, Van Gogh tomou contato direto com as obras de Manet (1832-1883), bem como do impressionismo e do simbolismo.

A mudança trouxe fortes consequências para o seu trabalho, que se atualizou à luz dessas experiências francesas recentes, e se reelaborou em termos muito distintos do período anterior, na Holanda. Porém, ao mesmo tempo, consoante orientação não tão diversa da precedente quanto muitos autores quiseram fazer crer, especialmente aqueles de orientação simbolista e formalista.

Esses últimos, em geral, propuseram um corte absoluto entre o primeiro período de sua obra e a celebrada e prolífica produção de Van Gogh nos quatro anos seguintes (1886-90), até a sua morte precoce.

Ora, pretendo mostrar justamente o contrário: que a obra madura de Van Gogh correspondeu a uma síntese de cunho realista entre aspectos da obra anterior, realizada na Holanda, e elementos da nova situação. E que tal processo desenvolveu-se precisamente em torno de uma análise radical da pintura, indissociável de uma compreensão crítica e efetiva aprofundada da questão social e do conceito de trabalho.

 

Páthos e redenção

O caráter da produção inicial de Van Gogh foi sentimental e marcado pela compaixão. Unia assim uma luminosidade dramática ao páthos identificador que comandava a escolha dos temas.

As cenas retratadas, já em si eloquentes dos sacrifícios diários dos trabalhadores, convertiam-se nos trabalhos de Van Gogh em imagens de severa dignidade que conferiam ao sofrimento humano uma redenção austera em termos pictóricos; essa, muito mais auto-organizada e elaborada esteticamente do que a pieguice resignada e piedosa de Millet, um dos padrões iniciais de Van Gogh.

As suas cores densas evocavam o esforço excessivo, o peso da matéria e a possibilidade de redenção – ainda longínqua –, refratada pela adversidade dura e espessa. Tal visão era organicamente romântica. A linguagem demonstrava unidade e perseguia a veemência. Seu andamento era regido pela dor e pelo espírito de compaixão que guiavam os movimentos do pincel, e entremeavam tons sombrios às cores escuras, em alusão à escassez.

 

Da periferia ao centro

Por sua vez, o impacto do contato de Van Gogh na França com a pintura impressionista-simbolista tornou-se desde logo evidente na mudança dos motivos, bem como na paleta – radicalmente renovada nas cores –, bem visível em várias telas elaboradas no correr de 1887.[iv]

A espacialidade e os volumes, que já se apresentavam desde a Holanda segundo a tradição realista, em moldes compactos e dispostos numa profundidade curta – mas que eram então construídos mediante o uso do claro-escuro –, cederam à representação de uma espacialidade ordenada em termos cromáticos e praticamente em close-up. Quase rasas ou despojadas de profundidade, tais pinturas se apresentavam segmentadas em faixas horizontalizadas que ressaltavam, nos contrastes de cores, a descontinuidade pictórica.[v]

Se as pinturas de Van Gogh, no início do seu período francês, já se distinguiam daquelas do impressionismo – mesmo que sob o seu impacto –, deveu-se tal às suas pinceladas algo veementes. Veemência, não obstante, filtrada pela contenção das maneiras, que constituía “a regra da casa” (francesa).

Entretanto, fazendo diferença ante a influência do programa impressionista, podia-se notar o impacto sobre Van Gogh do exemplo de Manet (este, muito mais próximo, em sua linguagem, de Daumier do que dos impressionistas) – como também, noutro polo, a repercussão do contato do recém-chegado com Seurat (1859-1891). Esse foi marcante, talvez até pelo contraste quase antitético “no espírito e na letra” com a pintura anterior de Van Gogh, praticada na Holanda. Além disso, o desejo dos contrastes cromáticos exacerbados também afastou Van Gogh do núcleo original do impressionismo, lançando-o na direção da dissidência do movimento: Seurat, Signac (1863-1935), Gauguin (1848-1903).

Desde então Van Gogh viria a ser definido pela maioria dos seus intérpretes como um membro a mais do grupo simbolista, cancelando-se como questão superada, para muitos, a sua identificação anterior com os trabalhadores.

Assim, num artigo de 1890, talvez o primeiro a distinguir, com ousadia, o valor da obra de Van Gogh, o jovem crítico simbolista Albert Aurier (1865-1892), que também viria a escrever sobre Gauguin[vi] no ano seguinte, distinguiu Van Gogh como “um homem isolado”. Aurier apresentou Van Gogh, segundo resumiu Shiff, como “um artista que, em desesperada necessidade de rejuvenescimento espiritual, havia se liberado das preocupações materiais da civilização ocidental. A arte de Van Gogh teria (assim) atingido a pureza emocional e intelectual do símbolo”.[vii]

Aurier observou que Van Gogh, ao conceber linha e cor não como elementos “imitativos”, mas “expressivos”, e como “procedimentos de simbolização”, elaborara “um tipo de linguagem maravilhosa, destinada a traduzir a Ideia”.[viii]

A linha de interpretação que dissociou Van Gogh da questão do trabalho e enfatizou sua vinculação com o simbolismo teve continuidade com Roger Fry (1866-1934) e Desmond MacCarthy (1877-1952), no texto “The Post-Impressionists”, para o catálogo da mostra de 1910, na Grafton Galleries, em Londres.

A mesma posição se apresentou ainda em análises mais recentes, como as de John Rewald (1912-94), Post-Impressionism from Van Gogh to Gauguin (1962), e de Sven Loevgren (1921-80), The Genesis of Modernism (1971), que procurou apontar “o alcance da identificação de Van Gogh, Gauguin e Seurat com as ideias das figuras literárias simbolistas”.[ix]

 

Pintura-potência

Porém, tal como vimos (antes neste capítulo) em relação ao trabalho de Cézanne, pode-se considerar a obra madura de Van Gogh mediante uma perspectiva distinta daquela do simbolismo; e nela, então, encontrar uma outra linguagem, que não aquela da matéria convertida em Ideia, como queria Aurier.

Assim, de acordo com o impacto decorrente da derrota militar e do extermínio do trabalho qualificado em maio-junho de 1871, que permitiu a disjunção radical entre o trabalho intelectual e aquele corporal e exerceu uma função crucial no processo de reestruturação capitalista das relações de trabalho na França, veremos que a obra de Van Gogh, paralela e complementarmente àquela de Cézanne, desenvolveu proposições estéticas associadas ao objetivo de resgatar e redimir o trabalho braçal. Ademais, esta era uma questão presente para o autor, como vimos, desde sua juventude.

Dentre os aspectos novos que despontaram na pintura de Van Gogh ao chegar à França, a intensificação do diálogo cor-sensação atingiu, a partir de 1887, um grau inédito entre seus pares.

As relações cromáticas agudas, sem transição e fundadas em oposições, intensificaram-se, passaram a interferir no trabalho ocular e se estabeleceram em termos tão contrastados que se podia encontrar aqui um segundo caso ao qual parecia convir a aplicação do “princípio de oposição violenta”, concebido por Francastel quanto a Manet. [x]

Mas não só isso se evidenciou. A exacerbação dos efeitos cromáticos não veio isoladamente. De fato, ela se somou ao robustecer do empaste e à utilização da pincelada como elemento estrutural de composição – o que desdobrava e intensificava a estratégia, iniciada por Manet, de legitimar a espontaneidade corporal como princípio produtivo.

As pinceladas de Van Gogh, de 1887-88 em diante, comportando, ao modo de uma metáfora material, doses muito carregadas de tinta pouco dissolvida, indicavam-no às voltas não com ideias e significações ou com a maleabilidade de materiais hiperflexíveis usados habitualmente como veículos do pensamento – , pincel, tinta, tela etc. –, mas sim enfrentando a opacidade da massa sólida, tal um trabalhador bracejando com a matéria bruta.

 

Pincel-machado, pincel-enxada, pincel de arrasto, pincel de lenha, pincel-foice

Em The Flowering Orchard (primavera de 1888, óleo sobre tela, 72,4 x 53,3 cm, Nova York, The Metropolitan Museum of Art) de Van Gogh dois instrumentos aparecem: uma foice e um gadanho, ambos apoiados ao pé de uma árvore. Os dentes do gadanho, designados cada um por uma só pincelada, suscitam paralelos entre trações e efeitos do gadanho e do pincel.

De modo análogo, numa pintura de Van Gogh de dois anos depois, Landscape at Twilight (junho de 1890, óleo sobre tela, 50,2 x 101 cm, Amsterdã, Van Gogh Museum), que mostra uma paisagem rural na qual uma estrada atalha por entre campos cultivados, cada pincelada sugere lidar com alguma matéria pesada, tal implicasse ato físico equivalente ao de labutar a terra ou manejar a pá. De modo correlato, espessas quantidades de tinta, opaca e sólida, aparecem depositadas sobre a tela. Amontoadas e com a aspereza de uma pilha de lenha, desafiando o observador a decifrar o porquê do excesso, assemelham-se a curvas de nível, de uma encosta abrupta e acidentada… A que viria tal empilhar de matérias sobre a tela?

Quantidades de pigmento e tinta, de cores contrastantes e brilhos pulsantes – em porções quase sopesáveis –, refratam a luz recebida (agora, não subsumida ou velada, mas transformada em força), logo, convertida em efeito material da pintura, tal como se a tela operasse feito uma máquina-protótipo dos trabalhos contemporâneos do argentino Julio Le Parc (1928).

Deu-se nestes termos, para quem tivesse olhos para tanto, uma rearticulação materialista da pintura, ou seja, uma mudança radical na noção de espaço pictórico, agora transformado em suporte. Isso, decerto, não decorreu da ação isolada de um homem só e isolado. Como um eco, no coração dessa transformação, a potência do trabalho vivo afronta a tragédia, evocando no seu ardor e na sua mímica gestual, poder-se-ia dizer, as jornadas titânicas da Comuna. Com efeito, o elã ímpar das pinceladas de Van Gogh, de um modo ou de outro, repercute um novo “assalto ao céu”, segundo a expressão de Marx a respeito do heroísmo das ações dos communards, que lhe recordaram o mito grego.

 

Pintura-trabalho

De objeto de interesse ou motivo preferencial, herdado e reelaborado a partir da tradição realista holandesa, a potência corporal de trabalho converteu-se, pois, para Van Gogh, em princípio estético fundamental. Apesar de instalado em plena belle époque (um fruto macabro do genocídio social), o pintor passou a conceber o ato de trabalho como a capacidade de dar à arte sua regra (a exemplo do trabalho em geral que confere ao mundo como um todo e a todas as coisas feitas a sua medida a mais efetiva)’.[xi]

Esse novo patamar, fruto da determinação recíproca, em âmbito estético, das noções de arte e trabalho, suscitou em Van Gogh uma reflexão acerca da arte e da subjetividade autoral que veio inscrever a pintura entre outras práticas de transformação da matéria mediante o esforço humano.

Desse modo, as pinceladas de Van Gogh perderam, no seu galope, toda semelhança com a fatura impressionista, que se processava em toques pequenos e delicados na tela. O modo de pintar de Van Gogh abandonou também a economia do divisionismo rigoroso e intelectualista de Seurat, que à chegada em França lhe interessara vivamente, como mostram principalmente algumas telas de 1887.[xii]

Em síntese, a reformulação da prática de pintar implicou vigor que evocava trabalho quase braçal. As pinceladas, desferidas com a fúria física do manejo de um martelo, de um machado ou de uma foice, deixavam sulcos sobre a tela. Principalmente de 1889 em diante, vinham de uma margem da tela para desaparecer na outra, como se fizessem da pintura mero acidente de percurso, ante forças maiores que, de fora da tela, e irredutíveis às formas dessa, pareciam ocupá-la.[xiii]

Enfim, apresentou-se, de um modo ou de outro, nessa proposição inédita da pintura como produto do esforço corpóreo, uma dissidência marcada ante a opção impressionista de priorizar os efeitos óticos, combinada ao manejo cosmético do pincel, segundo o modo ilusionista do retoque.

Analogamente, a ação visual, nos trabalhos de Van Gogh, ao invés de depurada das demais faculdades, como queriam o opticalismo e a doutrina da “pura visualidade”, de Fiedler (1841-1895) e outros, apresentou-se combinada sinteticamente às demais práticas do corpo. A visão, desprendida da mente e desviada dos trajetos da potência própria da imaginação abstrata, se realinhou ao corpo, mais próxima à escala do braço e do passo.[xiv] A estrutura do campo visual, que era amplo no impressionismo, foi reelaborada, no trabalho de Van Gogh, como campo matérico e limitado.

Deu-se, nesses termos, um passo significativo e concreto rumo à superação crítica da noção historicamente indeterminada de “gênio” – outrora atribuída ora à Natureza, conforme Shaftesbury (1671-1713), ora a faculdades do sujeito transcendental, conforme Kant (1724-1804) –, de modo que se obtivesse, segundo o novo marco, o teor de uma força histórico-social.

 

O fundamento vivo da transformação

Desse modo, as pinceladas de Van Gogh não transformaram apenas os instrumentos de trabalho pictórico ou o valor próprio do corpo físico na pintura, mas ganharam também, por assim dizer, o todo, mediando a apropriação afetivo-pulsional e a metamorfose correspondente das coisas, alcançando as árvores, os pés de trigo, os vegetais que crescem, as fisionomias e os seus afetos; e ainda as correntes de vento, a pulsação das estrelas, o compasso das durações…

Projetando-se a partir do âmbito da tela e das cenas narradas, o trabalho, como foi posto por Van Gogh, passou nas telas tardias a se irradiar ilimitadamente pelas ações humanas e pelo cosmos, processando-se, tal uma potência prometeica, como força transformadora e de poderes múltiplos. Vale dizer, o trabalho vivo, em sua origem metabólica ou energética invocada por Van Gogh, surgiu assim concretizado e multiplicado como medida e causa, fator de imaginação e reflexão.[xv]

Nesse sentido, o pincel de Van Gogh mimetizou, metabolizou e transformou as forças corpóreas, sintetizando-as com as coisas do mundo. Constituiu, portanto, a sensação revelada como força de trabalho e traduzida em força produtiva.

Por fim, nas obras de 1889-90, a capacidade potencial da força de trabalho, de se tornar fundamento de um novo processo histórico de apropriação e transformação do mundo, transmitiu-se, inclusive, às forças adventícias da morte, a se crer no sentimento franco de uma carta ao irmão. Nela, ao comentar o seu quadro Wheatfield with a Reaper (julho-setembro de 1889, óleo sobre tela, 73,2 x 92,7 cm, Amsterdã, Van Gogh Museum), o pintor observou que o ceifeiro (figura remanescente, provavelmente, da iconografia religiosa que conheceu em seu período inicial na Holanda), evocado na tela como um vulto verde-turquesa anônimo e sem rosto, com a mesma cor opaca do céu e em meio a um irradiante campo amarelo ouro – este, uma exuberante imagem sintética do trabalho –, valia, para ele, como uma figura alusiva da morte. Resta que Van Gogh resume e sintetiza cosmicamente esse ceifeiro, como força aparentada (cromaticamente) ao céu, como se pode notar das resolutas e destemidas pinceladas.[xvi]

Assim, de um modo ou de outro, como metáfora de vida e da morte, englobando toda espécie de transformação, jubilosa ou trágica, os quadros de Van Gogh mostraram a natureza recortada pelo trabalho e, fizeram-no em termos opostos àqueles dos impressionistas, cuja pintura vinha, todavia, presa à cena-fetiche da paisagem bucólica. Notemos, entretanto, que uma tal oposição não é simples e nem sem consequências.

 

Na contramão da “belle époque” e da ditadura de classe da burguesia

Por certo, a negatividade dialética da pintura de Van Gogh (ao mesmo tempo, tão próxima quanto distante ante aquela dos impressionistas) trouxe também conteúdos próprios ao estado atrasado, naquele momento, da economia holandesa. Esta não apenas era retardatária quanto à industrialização, mas também pautada pelo modo escravista vigente em suas possessões até 1873! Daí a centralidade ética fundamental, para Van Gogh, do trabalho manual – investido de uma espécie de redenção pictórica seja como tema seja como prática – como também o valor evidente e axial de uma iconografia impregnada de valores camponeses.

No entanto, dessa combinação de formas desiguais, na qual formas econômicas atrasadas (rurais e manuais) articulam-se a práticas pictóricas e críticas de vanguarda (estas, nascidas de uma economia – a francesa – em curso de modernização acelerada), duas questões cruciais salientam-se na démarche (de dispêndio energético ou metabólico) de Van Gogh: a primeira é que, embora num plano distinto e diverso daquele do intelectualismo de Cézanne, em última análise as duas pinturas se unificam dialeticamente para além das diferenças dos seus recursos e termos específicos. Assim, note-se, uma como outra, ambas realizam igualmente, e em contraponto, a afirmação soberana dos valores do trabalho vivo – este último (após o massacre da Comuna) negado e condenado pela aniquilação manu militari do artesanato, como prática produtiva, até então generalizada.

Desse modo, não obstante as respectivas diferenças pictóricas apresentou-se em contrapartida no plano estético, ou da arte em sentido maior, e no que concerne à escolha de princípio e de sentido histórico, uma similaridade quanto à busca na arte de um futuro nascido da negação do trabalho alienado, dado como condenação, para todos os trabalhadores, e destino social de massa.

Em segundo lugar, tal negação, do lado de Cézanne e do lado de Van Gogh, é em si e para além do momento em curso (o da “belle époque” ou da ditadura da burguesia), portadora de uma afirmação comprometida com a refundação política e ética da sociedade; refundação baseada, desta vez, nos valores e parâmetros do trabalho vivo, do qual as duas obras são emblemáticas. Nesse sentido, o que se salienta com toda evidência da pintura de Van Gogh é que mesmo os elementos – àquela altura intocados ainda pela indústria humana – como o céu e os astros, foram transfigurados na sua pintura como produtos do trabalho.

 

Heroísmos da sensação

Em suma, a empatia inicial de Van Gogh com a vida proletária e a sua valorização ética do trabalho produziram por fim uma nova economia significante, doravante fundada na materialidade dos recursos e no protagonismo do corpo enquanto sujeito de enunciação pictórica (A démarche de Freud não se poria longe dessa via). Alguns decênios mais tarde, as proezas (épicas) gestuais do Picasso (pós-cubista), de André Masson (1896-1987) e de Jackson Pollock (1912-1956) virão se por igualmente na esteira dos heroísmos da sensação, dos quais as pinturas de Van Gogh restam como marcos emblemáticos.

À época, de um modo ou de outro – e ainda que em termos à primeira vista mais próximos das vias de Cézanne do que daquelas de Van Gogh – para os cubistas na geração seguinte, a determinação recíproca (entre categorias e práticas) da pintura e do trabalho já haveria de se por como dado explícito e modelo de ação corrente.

Pode-se também concluir que a seguir a “cultura dos materiais”, de Tatlin (1885-1953), estruturada pelo equilíbrio dinâmico de seus componentes, também teve (antes do laboratório cubista) sua primeira fulguração em Van Gogh; fulguração, precisamente enraizada no ineditismo do páthos e da nova épica, inerentes a um “heroísmo da vida moderna”, segundo propusera Baudelaire (em 1846), pouco mais de quarenta anos antes.

*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Conspiracy of Modern Art (Haymarket/ HMBS).

Extrato do trecho final da versão original (em português) do cap. 9, “Pintura como forma-trabalho”, do livro La Conspiration de l’Art Moderne et Autres Essais, édition et introduction par François Albera, traduction par Baptiste Grasset, Lausanne, Infolio (2023, prim. semestre, proc. FAPESP 18/ 26469-9).

 

Notas


[i] Ver, por exemplo, de Van Gogh: Woman Sewing (março-abril de 1885, Amsterdam, Van Gogh Museum); Woman Winding Yarn (março de 1885, Amsterdam, Van Gogh Museum); Os Comedores de Batata (The Potato Eaters, abril de 1885, Amsterdam, Van Gogh Museum); Head of a Woman (março-abril de 1885, Amsterdam, Van Gogh Museum); Weaver (1884, Boston, Museum of Fine Arts). Obs.: com exceção do último, todos os quadros antes mencionados, assim como a grande maioria dos referidos a seguir (salvo as telas de Boston e Dresden), encontram-se documentados em Richard KENDALL, Van Gogh’s van Goghs: Masterpieces from the Van Gogh Museum, Amsterdam, exh. cat., National Gallery of Art, Washington, D.C., 4.10.1998 – 3.1.1999; Los Angeles County Museum of Art, 17.1 – 4.4.1999, New York, Abrams, 1998.

[ii] Para um prenúncio da nova organização dinâmica que foi implementada por Van Gogh, ao refundar a pintura posteriormente não mais a partir de uma perspectiva mental, mas a partir do papel axial do corpo, pode-se confrontar o dinamismo circular (que caracteriza a estrutura dessa tela) à monumental imobilidade circular de A Virgem com o Menino e os Santos (La Vergine con il Bambino e Santi, ca. 1472/5, Milão, Pinacoteca di Brera), de Piero della Francesca (ca. 1416/7 – 1492), dada por uma estrutura de teor geométrico, que induzia o observador, assim disposto, a uma atitude de contemplação.

[iii] Van Gogh leu Les Misérables (1862), de Victor Hugo, nos anos 1870, e veio a reler o livro em 1883. Ver T. J. CLARK, The Painting of Modern Life/ Paris in the Art of Manet and his Followers, Princeton, Princeton University Press, 1989, n. 4 à p. 273.

[iv] Ver, por exemplo, de Van Gogh: Self-Portrait with Felt Hat (1887, Amsterdã, Van Gogh Museum); Mother by a Cradle, Portrait of Leonie Rose Davy-Charbuy (março-abril de 1887, Amsterdã, Van Gogh Museum); Boulevard de Clichy (1887, Amsterdã, Van Gogh Museum); The Seine with the Pont de la Grande Jatte (verão de 1887, Amsterdã, Van Gogh Museum); Banks of the Seine (abril-junho de 1887, Amsterdã, Van Gogh Museum); Restaurant at Asnières/ Exterior of a Restaurant in Asnières (verão de 1887, Amsterdã, Van Gogh Museum); Courting Couples in the Voyer d’Argenson Park in Asnières/ Garden with Courting Couples: Square Saint-Pierre (primavera-verão de 1887, Amsterdã, Van Gogh Museum); Trees and Undergrowth (verão de 1887, Amsterdã, Van Gogh Museum); A Park in Spring (1887, Amsterdã, Van Gogh Museum).

[v] Pode-se seguir comparativamente o desenvolvimento da ordenação cromática do espaço a partir dos quadros de 1887, citados na nota anterior, até os seguintes. Nos últimos, a notação cromática dos volumes e do espaço passou a ser cada vez mais incisiva, assim como a organização pictórica segundo eixos compositivos horizontais, assinalando a descontinuidade. Ver, de Van Gogh: The Flowering Orchard (primavera de 1888, Nova York, The Metropolitan Museum of Art); Wheatfield (junho de 1888, Amsterdã, Van Gogh Museum); The Harvest (junho de 1888, Amsterdã, Van Gogh Museum); The Sea at Les Saintes-Maries-de-la-Mer (junho de 1888, Amsterdã, Van Gogh Museum); Fishing Boats on the Beach at Les Saintes-Maries-de-la-Mer (junho de 1888, Amsterdã, Van Gogh Museum); The Yellow House/ The Street (setembro de 1888, Van Gogh Museum, Amsterdã); Wheatfield with a Reaper (julho-setembro de 1889, Van Gogh Museum, Amsterdã); Daubigny’s Garden (junho de 1890, Van Gogh Museum, Amsterdã); Houses at Auvers (1890, Boston, Museum of Fine Arts); Landscape at Twilight (junho de 1890, Amsterdã, Van Gogh Museum); Wheatfield with Crows (julho de 1890, Amsterdã, Van Gogh Museum).

[vi] Cf. A. AURIER, “Le Symbolisme en peinture: Paul Gauguin” (1891), Oeuvres Posthumes, Paris, intr. Rémy de Gourmont, 1893, pp. 211-3, apud Richard SHIFF, Cézanne and the End of Impressionism/ A Study of the Theory, Technique, and Critical Evaluation of Modern Art, Chicago, The University of Chicago Press, 1986, p. 7 e n. 15 à p. 233.

[vii] Cf. R. SHIFF, op. cit., p. 162. Ver A. AURIER, “Les Isolés: Vincent Van Gogh” (1890-2), in idem, Oeuvres Posthumes, notice de Rémy de Gourmont, Paris, éd. du Mercure de France, pp. 262-3, apud SHIFF, idem, ib., nota 1 à p. 280.

[viii] Cf. A. AURIER, “Les Isolés:…, p. 262, apud R. SHIFF, op. cit. p. 7, n. 23 à p. 234.

[ix] Cf. R. SHIFF, op. cit. p. 159, n. 16-7 à p. 279.  Ver John Rewald, Post-Impressionism from Van Gogh to Gauguin, New York, 1962; Sven Loevgren, The Genesis of Modernism, Bloomington, 1971.

[x] Ver Pierre Francastel, Histoire de la Peinture Française, vol. II, Paris, Médiations/ Gonthier,  pp. 108-9.

[xi] Segundo Kant no “§ 46. Bela-arte é a arte do gênio” da Crítica do Juízo (1790), “Gênio é o talento (dom natural) que dá à arte a regra. Já que o talento, como faculdade produtiva inata do artista, pertence, ele mesmo, à natureza, poderíamos também exprimir-nos assim: gênio é a disposição inata (ingenium), pela qual a natureza dá à arte a regra.” Cf. Immanuel KANT, Crítica do Juízo, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, in idem Textos Selecionados, sel. de textos de Marilena Chauí, São Paulo, Os Pensadores/ Abril Cultural, 1980, p. 246. O que o paralelo busca sugerir é que, exemplificando uma mudança histórica, a pintura de Van Gogh deu lugar à substituição da natureza pelo trabalho, como paradigma para a arte.

[xii] Ver, por exemplo, de Van Gogh: Self-Portrait (1886-7, Chicago, The Art Institute of Chicago); Courting Couples in the Voyer d’Argenson Park in Asnières/ Garden with Courting Couples: Square Saint-Pierre (primavera-verão 1887, op. cit.); Trees and Undergrowth (verão de 1887, op. cit.); A Park in Spring (1887, op. cit.).

[xiii] Ver, por exemplo, de Van Gogh: Quittenstilleben (ca.1888, Dresden, Staatliche Kunstsammlungen); The Sower [a partir de Millet] (1889, Otterlo, Rijksmuseum Kröller-Müller); A Pair of Leather Clogs (outono de 1889, Amsterdã, Van Gogh Museum); Olive Grove (junho-julho de 1889, Amsterdã, Van Gogh Museum); Undergrowth (junho-julho de 1889, Amsterdã, Van Gogh Museum); Daubigny’s Garden (junho de 1890, op. cit.); Ears of Wheat (junho de 1890, Amsterdã, Van Gogh Museum); Landscape at Twilight (junho de 1890, op. cit.); Wheatfield with Crows (julho de 1890, op. cit.).

[xiv] Anos antes de Van Gogh, pode-se dizer que Manet já rumara nesse sentido ao redefinir e redimensionar em termos físicos e táteis, nas suas pinturas, a perspectiva e o senso de profundidade, segundo ponto de vista posto de modo corporal. Proposição similar foi sugerida pela anotação do amigo Mallarmé a seu respeito (aqui traduzida livremente): “Lembro-me dele a dizer, então, tão bem: ‘O olho, uma mão…’, que fico a cogitar” (“Souvenir, il disait, alors, si bien: ‘L’oeil, une main..’ que je resonge”). Cf. Stéphane MALLARMÉ, “Édouard Manet” in Divagations, in idem, Igitur, Divagations, Un Coup de Dés, pref. d’Yves Bonnefoy, Paris, (Poésie) Gallimard, 1976, p. 160.

[xv] Argan explicou a passagem da pintura de Van Gogh, dos temas de “polêmica social”, para um novo patamar estilístico, não em termos de abandono do ideário socialista pelo simbolista, como entenderam os críticos simbolistas e formalistas, mas sim como uma síntese: “Em contato com os movimentos franceses de ponta, ele (Van Gogh) compreendeu que a arte não deve ser um instrumento, mas um agente da transformação da sociedade e (…) da experiência que o homem faz do mundo. A arte deve se inserir no ativismo geral como uma força ativa, todavia de sinal contrário: cintilante descoberta da verdade contra a tendência crescente à alienação e mistificação. A técnica da pintura também deve mudar, opor-se à técnica mecânica da indústria, como um fazer ético do homem contra o fazer mecânico da máquina. Não se trata mais de representar o mundo de maneira superficial ou profunda: cada signo de Van Gogh é um gesto com que enfrenta a realidade para captar e se apropriar de seu conteúdo essencial, a vida. Aquela vida que a sociedade burguesa, com seu trabalho alienante, extingue no homem”. Cf. G. C. ARGAN, Arte Moderna/ do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos, pref. Rodrigo Naves, trad. Denise Bottmann e Federico Carotti, São Paulo, Cia das Letras, 1993, pp. 124-5; L’Arte Moderna/ 1770/1970, Firenze, Sansoni, 1981, pp. 157-8. Em outro texto, no qual formula a análise da pintura de Van Gogh, também à luz da ideia de trabalho não alienado, Argan observou: “…os signos coloridos não seguem mais os contornos ou planos da figura e do objeto representados, mas ritmos e cadências de um dinamismo psicossomático do artista. O seu modo pictórico não é só o oposto do mecanismo do trabalho industrial, mas também da operação artesanal, projetada e controlada (…)”. Cf. G. C. Argan, “L’Arte del XX Secolo”, in idem, Da Hogarth a Picasso/ L’Arte Moderna in Europa, Milano, Feltrinelli, 1983, p. 387.

[xvi] “Eu vejo nele a imagem da morte, no sentido que a humanidade pode ser o trigo que ele está ceifando (…). Mas não há nada triste nesta morte, ela segue seu caminho, sob a ampla luz do dia, com o sol inundando tudo, com uma luz de puro ouro.” Cf. Vincent VAN GOGH, “Letter 604”, in Complete Letters of Vincent Van Gogh, London, 1958, reimp. 1991, p. 202, apud Richard KENDALL, Van Gogh’s van Goghs: Masterpieces from the Van Gogh Museum, Amsterdam, exh. cat., National Gallery of Art, Washington, D.C., 4.10.1998 – 3.1.1999; Los Angeles County Museum of Art, 17.1 – 4.4.1999, New York, Abrams, 1998, pp. 119-20.

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