Variedades de capitalismo

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Ironicamente, Marx e Engels inventaram o capitalismo. Esse termo não foi criado pelo guru dos defensores do livre-mercado, Adam Smith

A leitura do livro de Anthony Giddens e Philip W. Sutton, Conceitos essenciais da sociologia, ajuda ao economista a precisar inclusive um conceito amplamente conhecido e utilizado: capitalismo. Eles o definem como “sistema econômico, originado no Ocidente, baseado no intercâmbio comercial e na geração de lucro, visando ao reinvestimento e crescimento dos negócios”.

Uma análise do sistema exige visão holista – de “holos” ou o todo – para verificar como a complexidade de suas configurações dinâmicas emerge de interações variáveis ao longo do tempo de múltiplos fatores. O reducionismo binário da luta de classes tipo “nós (pobres) contra eles (ricos)” não explica suas transformações.

Ironicamente, Marx e Engels inventaram o capitalismo! Esse termo não foi criado pelo guru dos defensores do livre-mercado, Adam Smith, mas surgiu sim em meados do século XIX, quando eles discutiam o modo capitalista de produção.

Para os marxistas, o capitalismo é um sistema econômico explorador dos trabalhadores livres, cuja alternativa é apenas vender sua única posse (a força de trabalho) ao capital-dinheiro. Este os pagaria apenas o suficiente para a sua subsistência (e reprodução) e os usaria na produção de mercadorias, gerar maior valor (mais-valia) ou lucros para os proprietários: uma burguesia ou a classe capitalista.

Uma concepção alternativa ao grande esquema histórico de Karl Marx foi apresentada por Max Weber ao colocar o espírito do capitalismo na ética protestante. Para Max Weber, o capitalismo não resultou de mudança revolucionária, tampouco resultaria em uma revolução comunista no futuro.

De acordo com sua linha de argumentação, o futuro da classe trabalhadora está no desenvolvimento – e não no fim do capitalismo. De fato, a robotização, a automação e/ou a digitalização do trabalho estão dando “adeus ao proletariado” e produzindo trabalhadores autônomos, no Brasil, chamados de “pejotizados”: com CNPJ e sem direitos trabalhistas.

Max Weber, como também Joseph Schumpeter, sugere o capitalismo incentivar a competição e a inovação. Mitigariam os efeitos repressores da dominação do antigo Estado do mercantilismo, dando liberdade para experimentar novas ideias e transformar o sistema.

Por exemplo, trabalhadores com ensino técnico ou a formação universitária propiciaram inovações tecnológicas, além de criarem áreas de negócios em serviços, publicidade, economia criativa etc. Com maior poder de barganha, alcançaram um varejo de alta renda para obter providência complementar em suas aposentadorias.

Antes de Weber, Marx tinha delineado os estágios progressivos de modos de produção. Começaram com as sociedades comunistas primitivas dos caçadores e coletores e passaram pelos antigos sistemas de propriedade de escravos e sistemas feudais, baseados na divisão entre servos e proprietários de terra.

O surgimento de mercadores e artesãos marcou o início de uma classe capitalista para produzir e vender mercadorias. Substituiria a nobreza fundiária ou arrendatária como nova classe dominante.

Um problema é muitos marxistas verem os ensinamentos de Marx como dogmas invioláveis e não fazerem um uso de seus conceitos de maneira adequada às mudanças do sistema capitalista. Por exemplo, Marx identificou dois elementos principais no capitalismo.

O primeiro, o capital, seria qualquer ativo, portanto, uma forma de manutenção de riqueza, incluindo máquinas ou até fábricas, mas com atributo de liquidez ou conversão em dinheiro. Nem sempre é usado de imediato, sendo deixado para ser investido e produzir ativos futuros no tempo adequado. Os dogmáticos criticam essa “financeirização”.

O segundo, a mão de obra assalariada, um conjunto de trabalhadores sem serem donos dos meios de produção, antes dependiam apenas de empregos remunerados. Muitos, sem os encontrar, tornaram-se microempreendedores por conta própria e bem-sucedidos para cuidar de si e suas famílias.

Não se confirmaram as previsões de Marx como um determinismo histórico. Nem todos os trabalhadores e capitalistas são mutuamente dependentes, os operários da indústria geral são uma minoria.

A maioria dos trabalhadores está ocupada em comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas, transporte, armazenagem e correio, alojamento e alimentação, tecnologia de informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas, administração pública, defesa, seguridade social, educação, saúde humana e serviços sociais. Isso sem citar outros serviços e serviços domésticos. A classe trabalhadora está dispersa e desunida!

Falhou o argumento de o conflito de classes viria a se intensificar por terem uma relação de exploração. Marx imaginava, com o tempo, todas as outras classes encolheriam, mantendo-se apenas as duas classes principais, cujos interesses estariam em conflito direto. Sua previsão de revolução fracassou na prática política totalitária dos poucos casos, em situações totalmente distintas das imaginadas, ou seja, em países atrasados.

Não é claro se acertou em outra previsão: devido ao capitalismo ser produtivo, libertaria as pessoas da desnecessária opressão da autoridade religiosa e da “estupidez da vida rural”. No Brasil, não parece isso ter acontecido…

Tampouco a humanidade teve poder para formar seu próprio futuro em vez de ficar à mercê de forças naturais. As relações sociais (e nacionais) competitivas se tornariam um obstáculo à cooperação necessária para as pessoas controlarem o próprio destino.

É necessário reconhecer: houve mudanças significativas no desenvolvimento do capitalismo, desde o capitalismo industrial da época de Marx, passando pelo capitalismo gerencial, desenvolvido conforme as empresas cresceram tanto a ponto de fazer fusões e aquisições, superar o controle por membros de uma família e alcançar o capitalismo mega corporativo transnacional. Mas a melhor variedade é o capitalismo assistencialista com conquistas sociais de direitos universais da cidadania.

O debate entre os pontos de vista weberianos e marxistas envolve julgamentos morais. Para os marxistas, o capitalismo é um sistema econômico capaz de prosperar com a desigualdade. Para os weberianos, o capitalismo, apesar de ser explorador, oferece possibilidade de democracia e exercício da liberdade pessoal, podendo até mesmo diminuir a desigualdade social. Só aconteceu isso entreguerras e no pós-guerra.

Outro debate público se dá entre neoliberais e socialdemocratas (na Europa) ou social-desenvolvimentistas (nas Américas) sobre as variedades do capitalismo. Para os primeiros, as economias capitalistas “funcionam” com mais eficácia com o mínimo de regulamentação econômica, baixa tributação e um Estado pouco assistencialista.

Os segundos contra-argumentam: os países nórdicos socialdemocratas desafiam esse receituário. Sua versão de capitalismo se fundamenta em impostos relativamente altos, enorme orçamento estatal, altos níveis de regulamentações e economia aberta ao exterior. Desse modo, compete e supera o modelo neoliberal de baixa regulamentação.

Suas empresas obtêm vantagens das instituições do país, as quais coordenam os mercados de trabalho, gerenciam treinamentos vocacionais e capacitadores profissionais, e adotam uma política industrial. Esse conjunto de instituições prova haver mais de uma forma de ter sucesso nos mercados globais. Posse de recursos naturais, educação, ciência e tecnologia, além de uma pequena população é chave do sucesso!

Não devemos nos esquecer: a divisão (local e internacional) do trabalho leva à separação das tarefas e ocupações do trabalho em um processo de produção, circulação e “financeirização” criador de uma abrangente interdependência econômica. Ao contrário do esperado pelos marxistas, não houve a plena destruição da solidariedade social e o estímulo ao individualismo resultante em maior conflito.

Uma “solidariedade orgânica” surgiu como resultado da ampla divisão do trabalho. A especialização de funções fortaleceu a solidariedade social em comunidades maiores, criando vínculos por meio da dependência mútua. Todos nós dependemos de pessoas, em escala mundial, para obter produtos e serviços capazes de sustentar a nossa vida.

A divisão internacional do trabalho resultou na interdependência econômica global entre os países. Nesse sentido, os povos do mundo necessitam do contato comercial e da cooperação pacífica nessa nova variedade de capitalismo globalizado.

Mudanças no mercado de trabalho, em escala planetária, levaram ao crescimento das ocupações no setor de serviços nos países desenvolvidos para as novas gerações dos países em desenvolvimento. Está ocorrendo também o offshoring – o movimento sistemático de um número crescente de tarefas para o exterior – e o home-office internacional. O maior nível das remunerações e a taxa de câmbio é favorável a isso.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]


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