Por EVERALDO DE OLIVEIRA ANDRADE*
Apresentação do livro recém-lançado de Markus Sokol
Muito se escreve e fala da China atual, mas são raros os relatos feitos a partir do olhar de um dirigente político. Markus Sokol, membro da Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores, integrou uma delegação que visitou a China ao longo de 10 dias, em junho de 2023. As relações do PT com o Partido Comunista da China (PCCh) nem sempre foram tranquilas, mas hoje mudaram. Em 1989, toda uma geração foi impactada pelo massacre dos estudantes na praça da Paz Celestial, o que motivaria na sequência o rompimento, por alguns anos, das relações do PT com o PCCh. Mas a China atual, sua pujante economia, seu intenso comércio com o Brasil em particular, as pressões imperialistas dos EUA, mudaram e colocam novas perguntas e desafios não só para o PT, mas para as próprias relações atuais entre a economia e a sociedade brasileiras e chinesas. Isso, por si, só destaca a importância das questões levantadas por este livro.
Markus Sokol nos convida para acompanhá-lo em sua viagem pela China, mas não se trata de um relato trivial. Ele nos faz transitar no tempo e no espaço, nos lugares e na história, no texto e nas imagens. É possível perceber esse movimento muitas vezes, através do seu olhar observador registrado com relatos de conversas, fotos e imagens em suas passagens pelos diferentes locais visitados. Uma foto aparentemente pouco significativa registrada numa loja, mostra um pai em trajes tibetanos com um filho vestido como uma criança ocidental. Isso permite a Sokol dar um mergulho profundo nos dilemas e contradições econômicas, sociais e culturais do país, e mesmo na história dessa China que pouco conhecemos. E isso se repete ao longo de todo o caminho, transformando o que seria um relato de viagem num roteiro desafiador para se entender o grande país asiático, sua história e as grandes polêmicas econômicas e políticas da luta pelo socialismo, que levaram a classe trabalhadora a transformar a China contemporânea.
Esse imenso país, que realizou uma das grandes revoluções do século XX com a vitória de 1949, carrega na sua modernidade a combinação das suas antigas tradições culturais e sociais, a história de lutas do povo chinês por sua soberania nacional após a invasão das potências capitalistas desde o século XIX, e do papel da sua classe operária em erguer uma resistência impactada pela vitória da revolução russa de outubro de 1917. Mas esse caminho está marcado por muitas contradições. Sokol mergulha diversas vezes nas lutas históricas do movimento operário e do comunismo chinês em busca de respostas. Ele recupera a esquecida trajetória e o lugar de um dos principais fundadores do PCCh, Chen Duxiu, depois também dirigente da primeira seção da 4ª Internacional na China, quase esquecido da história do partido, sempre buscando recuperar esses caminhos.
Onde está a classe trabalhadora chinesa e seu poder conquistado? Muitos militantes hoje se perguntam, no PT e fora dele, se a China tem uma economia socialista e se seria uma referência para as lutas atuais da classe trabalhadora. Essa pergunta atravessa todo o livro e é, afinal de contas, uma das grandes questões em debate. E se a China é um país socialista, como afirmam muitos, a classe trabalhadora exerce seu poder de que maneira? Sokol tenta encontrar ao longo da viagem, nas caminhadas pelas ruas e cidades e nas várias reuniões preparadas meticulosamente pelo PCCh, nos almoços e encontros com dirigentes locais, nos raros momentos de debate, alguns sinais mais visíveis dessa classe trabalhadora ou, pelo menos, desse povo chinês em seu exercício de poder e registra: “em 10 dias não fomos a uma casa, no campo ou na cidade, nem nas fábricas, só diretorias…”. A fusão estado-partido como característica do regime, algo provavelmente pouco levado em consideração mesmo dentro do PT, permite o exercício pleno da democracia pela classe trabalhadora? O difícil contato direto com o povo chinês não parece ser apenas por conta das barreiras linguísticas, afinal.
Sokol não hesita em informar e demarcar as polêmicas necessárias para um atual debate lúcido sobre a China. O operariado chinês vive em condições de trabalho que podem chocar os mais sinceros ou desavisados militantes socialistas do Brasil. As constantes greves e lutas sem a existência de sindicatos livres, a exclusão do direito de greve da Constituição chinesa, extensas jornadas de trabalho semanais, baixos salários, restrito direito de férias e limitações às aposentadorias, expressam alguns exemplos das duras condições de vida a que são submetidos centenas de milhões. E não existem universidades totalmente gratuitas na China, como muitos imaginam, ainda que até o ensino médio haja gratuidade.
Tudo isso ocorre, lado a lado com a acumulação das fortunas dos novos milionários que se multiplicam pelo país. As empresas chinesas exploram os seus trabalhadores, há luta de classes e acumulação de capital dentro e fora do país. E uma burguesia chinesa prospera, ao mesmo tempo que tem representação dentro do próprio Partido Comunista. Sokol registra as imagens luxuosas das grandes corporações chinesas e coloca muitas questões para reflexão, quando registra um capitalismo em plena expansão combinado com um regime de partido único.
Ao mesmo tempo que o PCCh está entranhado em todas as instituições do país – e Sokol não deixa de registrar as atividades que uma célula comunista realiza em sua localidade – está presente uma ocidentalização cultural cada vez mais profunda no cotidiano da população. Mais uma vez, é o olhar atento que capta muitas vezes no pequeno gesto dos costumes e hábitos, nas roupas e objetos triviais nas decorações, e mesmo num pequeno artefato do cotidiano, a ausência ou raridade crescente de temas da cultura chinesa mais profunda. É o movimento homogeneizador do mercado mundial que busca padronizar toda a produção, em todas as esferas da vida. O seu olhar arguto consegue ir capturando na superfície, aparentemente sem importância, as grandes contradições da construção da sociedade atual da China e talvez de um suposto “socialismo com características chinesas”.
Novos desafios aparecem na caracterização do Brics e da nova Rota da Seda, como parte de uma nova política internacional chinesa de expansão comercial e disputa de mercados, mas não só. O planejamento econômico chinês e os célebres planos quinquenais, uma herança da planificação econômica socialista, nascida na União Soviética como alternativa à anarquia da economia de mercado capitalista, e que é mencionada ao longo do texto, explica o arranque fenomenal da economia chinesa desde a década de 1950, e mais ainda da década 80. Mas, desde então, foi o socialismo ou a economia de mercado e o capitalismo que se fortaleceram na China? É possível que uma futura simbiose política e econômica nova esteja em gestação na China? É uma hipótese lançada por Sokol e que é necessário refletir, as respostas não estão prontas.
O desafio da luta pelo socialismo, que significa a expropriação pela classe trabalhadora da propriedade privada dos meios de produção e a ampliação de direitos à classe trabalhadora em todo o mundo, estão conectadas com uma compreensão, a mais ampla e profunda possível, do que ocorre nesse país. O livro é um convite ao diálogo e sem contornar os temas complexos e difíceis, deixa as portas abertas para um debate necessário.
*Everaldo de Oliveira Andrade é professor do Departamento de História da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Bolívia: democracia e revolução. A Comuna de La Paz de 1971 (Alameda).
Referência
Markus Sokol. Viagem à China: um relato comentado. Editora Nova Palavra: 2023.
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