Por AIRTON PASCHOA*
Comentário sobre dois livros de Xavier de Maistre
Imagine o leitor que, por motivo qualquer, uma mortificação do amor, uma negligência da amizade, uma epidemia, tivesse que ficar encerrado no quarto uma boa quarentena. Que faria nestes 40 dias? Certamente assistia TV, via vídeo, praticava videogame, zapeava pelo mundo a cabo, mergulhava na internet, qualquer coisa, enfim, menos, pelo amor de Deus! ficava se escarafunchando…
Mas, há duzentos anos, na falta de tais expedientes centrífugos, longe da parafernália tecnológica que nos assola, não havia outra saída, e foi por ela que clandestinamente entrou Xavier de Maistre (1763-1852) na história literária. O autor, oficial do exército francês, tendo de cumprir prisão domiciliar por 42 dias, decidiu escrever um livro.
Era o ano de 1794, uma época em que se ocupavam de literatura (que ainda não tinha esse nome ímpio) os homens cultos do tempo. Mas que livro? Um livro de viagem, ora! como faziam todos. E na impossibilidade física de empreendê-la, fazia outra, menos custosa e operosa, uma viagem ao redor do quarto.
Eis como nasceu este livro delicioso, e que há dois séculos permanece deliciando público e crítica, sem perder o encanto. Em prosa galante e elegante, própria de um cavalheiro, Xavier de Maistre vai, em 42 capítulos curtos (um para cada dia), dando voltas em torno do quarto e de si, torneando temas delicados, os políticos e os sociais, estocando ironias, esgrimindo sua aguda arte retórica.
Nem só de retórica, porém, viveria o livro. O que o sustenta é seu humor irresistível, haurido numa fonte historicamente benfazeja: o cruzamento, na virada do século, do subjetivismo romântico, em espiral crescente, e do racionalismo clássico, de enraizamento fundo na cultura francesa. Isso explica as cômicas remissões a descobertas, métodos, sistemas, dissertações, a que dá vazão o autor ao longo da viagem, no trajeto entre a escrivaninha, a poltrona e a cama.
Trata-se de um uso caricato da razão, sem dúvida, mas de alto poder sugestivo. É como se a Razão, já meio despida e decaída em racionalismo, passasse a se interessar mais por seus limites que por suas proezas. Assim, se dedica agora a apreciar o novo centro do mundo, o indivíduo, em seu momento privado, em duelo cavalheiresco com a nova ordem histórica que despontava no horizonte com a Revolução Industrial e a Revolução Francesa.
Estamos longe, como se vê, da Renascença, do Homem em face do Universo; estamos diante do indivíduo (burguês) em face da sociedade (burguesa), um círculo bem menor, um centro bem mais estreito, mas ainda assim com aquele reconhecível apelo universal que ostentava o novo mundo em seu berço. E um pouco menos longe da desagregação do indivíduo, inominável já, nos buracos beckettianos.
A nova tradução, da Editora 34, meritória por recolocar o livro em circulação não se faz acompanhar – diferentemente das edições anteriores da Estação Liberdade, da Mercado Aberto e da Hedra – da continuação da viagem, a Expedição Noturna ao Redor do Meu Quarto, aparecida trinta anos depois, em 1825.
Ao contrário porém do que insinua a opinião crítica corrente, medusada pela novidade formal dos capítulos curtos, da narração caprichosa, e que já nem era tanta assim, se lembramos o Sterne do Tristram Shandye da Viagem Sentimental, este segundo livro de Xavier de Maistre é ainda mais fascinante que o primeiro.
Na Expedição Noturna, o autor, mais velho, abandona sua mais célebre teoria (e responsável pelas passagens mais divertidas da Viagem) da alma e da besta, do animal que nos habita e martiriza com suas urgências. A despeito do mesmo universo estilístico e temático, com sua narração fragmentária e arbitrária, com seu elogio da imaginação, com a descrição humorada da duplicidade humana, a divisão do ser já adquire uma coloração fortemente romântica: cabeça e coração, razão e sentimento.
Mas não é exatamente nesse romantismo mais franco que reside a superioridade da Expedição. Não, é na situação narrativa que o autor arma, infinitamente mais emblemática.
Um homem no seu quarto, empreendendo uma sui generis viagem ao seu redor, já é evidentemente rica de sugestões. O desdobramento ilimitado da imaginação, a apologia da sua força começa a dar na vista. Se algo se hipertrofia, é sinal de que algo também definha… Enfim, o poder da imaginação exibe involuntariamente seu reverso: sua impotência.
Pois bem, a situação de per si sugestiva, misto de poder e impotência, não é enfraquecida no segundo livro pela alegoria de moralista que finaliza a Viagem. Recordemos que no primeiro livro não tem outro sentido o sonho alegórico do autor, em que comparecem Platão, Péricles, Aspásia, Hipócrates, a não ser condenar os tempos modernos. Estão todos ali reunidos, naquele salão de Antiguidade em que se converte o quarto, a fim decondenar a Revolução Francesa, os costumes libertinos, a ciência homicida da Medicina.
Na Expedição Noturna, porém, já reduzida a quatro horas, das oito à meia-noite, o alegorista cede passo ao realista. E a impotência, tematizada subliminarmente na Viagem, como que se potencializa. Perto do fim, depois dos torcicolos todos à janela para ouvir o canto de sereia da vizinha de baixo, e em que por pouco não termina estatelado sobre o calçamento frio, o autor acaba melancolicamente a cavalo na janela, entre o quarto e a cidade alheia, com seus telhados e chaminés. Sob o sentimento de solidão exasperado, sente a presença do tempo, viva e fatal:
“Quando os homens se calam, quando o demônio do ruído está mudo no meio do seu templo, no meio de uma cidade adormecida, é então que o tempo eleva a sua voz, e se faz ouvir à minha alma. O silêncio e a escuridão tornam-se seus intérpretes, e me desvendam a sua marcha misteriosa (…) Vejo-o no céu impelindo diante de si as estrelas para o ocidente. Ei-lo, conduzindo os rios para o mar, e rolando com os nevoeiros ao longo da colina… Escuto: os ventos gemem sob o esforço de suas rápidas asas, e o sino longínquo estremece à sua passagem terrível.
‘Aproveitemos, aproveitemos o seu curso’, exclamei eu. ‘Quero empregar utilmente os instantes que ele vai me roubar’. Querendo tirar vantagem dessa boa resolução, na mesma hora me inclinei para diante, para lançar-me com brio à corrida, fazendo com a língua um certo estalido que em todos os tempos serve para excitar os cavalos, mas que é impossível de se escrever segundo as regras da ortografia:
……………………………… gh!gh!gh!
e assim concluí a minha excursão a cavalo com uma galopada.”
Com essa cavalgada reconhecidamente impossível, Xavier de Maistre ajudou na largada às outras tantas impossibilidades que vem figurando a literatura moderna nestes dois séculos.
*Airton Paschoa é escritor, autor, entre outros livros, de Ver Navios (Nankin, 2007).
Referências
Xavier de Maistre. Viagem ao redor do meu quarto. Tradução: Veresa Moraes. Posfácio: Enrique Vila-Matas. São Paulo, Editora 34, 2020.
Xavier de Maistre. Viagem em volta do meu quarto. Tradução e introdução: Sandra M. Stoparo. São Paulo, Hedra, 2009.
Xavier de Maistre. Viagem ao redor do meu quarto. Tradução: Armindo Trevisan. Prefácio: Marcelo Backes. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1998.
Xavier de Maistre. Viagem à roda do meu quarto. Tradução: Marques Rabelo. São Paulo, Estação Liberdade, 1989.