Vida além do trabalho

Imagem: Tomas Andreopoulos
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Por EDERSON DUDA & MATHEUS SILVEIRA DE SOUZA*

A esquerda também pode jogar no ataque

Durante o mês de novembro, a luta pela redução da jornada de trabalho, conduzida pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT), ganhou o noticiário e a opinião pública. A pressão social feita para que o Projeto de Emenda Constitucional (PEC), apresentado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP), conseguisse as assinaturas necessárias e fosse protocolada na Câmara surtiu efeito. Além disso, a pauta encabeçada por Rick Azevedo (PSOL/RJ) conseguiu adesão de diferentes setores da sociedade brasileira, à esquerda e à direita no espectro político.

O tema tomou conta do debate público, ocupou o trending topics do antigo Twitter e mobilizou desde perfis políticos até páginas de memes nas redes sociais, forçando os meios de comunicação tradicionais a se posicionarem sobre o assunto. No dia 15 de novembro, em diversas capitais do Brasil, ocorreram manifestações de rua em apoio ao fim da escala 6×1. Mesmo após toda repercussão, o governo Lula deu acenos muito tímidos de adesão à pauta.

Como reflexo da pressão exercida pelo movimento Vida Além do Trabalho e pela sociedade, trabalhadores da PepsiCo realizaram uma paralização exigindo o fim da referida escala e a adoção da escala 5×2, com folgas aos sábados e domingo. No dia 04 de dezembro ocorreu uma audiência pública na Câmara dos Deputados para discutir o tema. A audiência, encabeçada pela deputada Erika Hilton, representa mais uma tática para pressionar os parlamentares a aderirem à pauta e angariar ainda mais apoio da população. Segundo pesquisa divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo, 70% dos brasileiros apoiam o fim da escala 6×1, contando com adesão de pessoas à esquerda e à direita.[i]

Tais iniciativas devem ser valorizadas como lutas que buscam avançar na discussão sobre as condições de existência dos trabalhadores no Brasil. Desde o golpe de 2016 e as reformas antissociais realizadas pelos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, como a trabalhista e a previdenciária, as pioras na condição de vida da classe trabalhadora só se intensificaram.[ii] O que os indicadores demonstram, desde então, é o aumento da informalidade, com empregos precários, terceirizados, de baixa estabilidade e remuneração, forçando o conjunto dos trabalhadores a assumirem jornadas de trabalho cada vez mais extensas para conseguirem sobreviver.

Redução da jornada de trabalho como uma luta internacionalista

A luta pela redução da jornada tem avançado em países do centro do capitalismo, como Alemanha, França, Canadá, dentre outros, onde os trabalhadores organizados conseguiram assegurar jornadas abaixo das 40 horas semanais. Entretanto, é importante frisar que para que os trabalhadores do centro do capitalismo possam conquistar tais direitos, aqueles que estão nos países periféricos são cada vez mais subordinados à extensão do tempo de trabalho, como forma de compensar e equalizar a taxa de mais valor do capital social total.

Portanto, a situação precária de vida de um trabalhador do Sul global está diretamente vinculada à forma como está organizada a divisão internacional do trabalho e a mundialização do capital. Assim, fica evidente que a luta pela redução da jornada de trabalho não se limita ao contexto brasileiro, mas é uma luta de caráter internacionalista e anticapitalista por essência.

Depois de muito tempo agindo de forma reativa, a esquerda brasileira conseguiu impor uma pauta ofensiva no debate público. Após anos em uma situação defensiva, atuando para não perder direitos anteriormente conquistados, a discussão sobre o fim da escala 6×1 conseguiu furar a bolha e dialogar com grupos não identificados necessariamente com a esquerda, justamente por tocar em uma questão material vivida diariamente por milhões de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.

Embora os últimos embates públicos tenham ocorrido com a esquerda jogando no campo do adversário, a discussão sobre a redução da jornada obrigou setores da direita a disputarem o jogo em um campo que lhes é estranho. Em síntese, “criar um campo no qual o adversário é obrigado a se mover”[iii] é uma forma de controlar os movimentos do oponente.

Se um dos sintomas do “realismo capitalista” é a redução dos horizontes políticos – pois é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo –, o engajamento de milhões de pessoas em torno de uma pauta que prega uma vida além do trabalho nos dá algumas pistas sobre as disputas capazes de tocar o desejo de diferentes frações da classe trabalhadora e, simultaneamente, confrontar o avanço da extrema direita no Brasil e no mundo. Nos mostra, também, que um dos desafios do nosso tempo é explicitar que as lutas relacionadas à gênero, raça, sexualidade e classe social possuem um elemento unificador, qual seja, o anticapitalismo.

Histórico de lutas e caminhos para o presente

A redução da jornada laboral é uma reivindicação antiga e presente no repertório da classe trabalhadora ao longo da sua história. Desde os primórdios do capitalismo, a luta de classes tem sido expressa na disputa pela apropriação de mais de tempo de trabalho por parte dos capitalistas, ou pela redução e maior tempo de vida social por parte dos trabalhadores.

No Brasil, a Greve de 1917, que simboliza o início das grandes mobilizações operárias, teve como pauta, para além de melhores condições de trabalho e vida social, a redução da jornada para 8 horas diárias e uma semana de cinco dias e meio de trabalho. Antes, a jornada podia chagar a até 16 horas por dia.  As reformas implantadas com o golpe de 2016, embora tenham pregado uma modernização das leis trabalhistas e melhores condições de vida à população, entregaram, na verdade, um retrocesso geral sobre o conjunto de direitos e conquistas da classe trabalhadora.

É preciso levar em consideração que as contrarreformas trabalhistas, a implantação das TICs e de políticas neoliberais, defendidas pela burguesia e seus porta-vozes midiáticos, são mecanismos eficientes para intensificar a superexploração da classe trabalhadora. Marx, em O capital, já havia nos alertado que cada progresso econômico no capitalismo constitui simultaneamente uma calamidade social.

É o que temos presenciado desde pelo menos a década de 1970, com as reestruturações produtivas e a introdução das TICs, cujo resultado tem sido o aumento do desemprego e das desigualdades sociais, que se apresentam como “altamente gratificantes” para os interesses do mercado, já que possibilita o crescimento do exército industrial de reserva, a competição entre os trabalhadores e a corrosão da solidariedade de classe.

A luta pela redução da jornada de trabalho não é apenas legítima, mas também necessária, pois representa uma confrontação direta da exploração capitalista sem medidas. A organização dos trabalhadores mundo afora pela redução da jornada laboral é a esperança da classe trabalhadora de sair do inferno capitalista moderno, que tem levado as pessoas ao burnout, depressão, crises de ansiedade, entre outras doenças psíquicas. Em síntese, as condições de trabalho no neoliberalismo massacram os indivíduos não apenas fisicamente, mas também mentalmente, impondo uma vida exaustiva e degradante para a maioria da população.

As políticas que atacam diretamente os direitos trabalhistas nos últimos 40 anos, por meio das terceirizações, flexibilização da jornada de trabalho, desregulamentação da CLT, ampliação da pejotização e das noções de empreendedorismo e trabalho autônomo, exercem uma pressão sob o tempo de trabalho, agindo principalmente na extensão da jornada para além do estabelecido pelas leis burguesas.  Muitas vezes essa ampliação da jornada de trabalho não é paga pela forma salário, mas sim por meio de banco de horas, consumindo o tempo de vida social do trabalhador.

Ao mesmo tempo, é preciso reforçar que a escala 6×1 afeta principalmente as mulheres, que em sua grande maioria exercem dupla jornada de trabalho, fora e dentro de casa, agravando ainda mais as questões relacionadas à reprodução social, divisão do trabalho doméstico e dos cuidados. Não é por acaso que entre os 70% dos brasileiros que apoiam a pauta, a adesão chega a ser até 10% maior entre as mulheres[iv]. A população negra e periférica também são as camadas sociais mais impactadas por essa escala, pois exercem os trabalhos mais precários, com baixa remuneração e sem proteção social. Em outras palavras, as pessoas obrigadas a trabalhar nesta escala possuem raça e gênero muito bem definidos.

A plataformização do trabalho, com jornadas de 12h impostas a motoristas e entregadores de APPs, é um exemplo de como os capitalistas atualizam as formas de expropriar o tempo de vida da classe-que-vive-do-trabalho. Portanto, o progresso tecnológico sob o capitalismo tem como pressuposto uma regressão social cada vez mais dramática para a população. O capitalismo, para continuar seu desenvolvimento constante de autovalorização, retira todo o sentido do trabalho e o reconhecimento por parte do trabalhador daquilo que é produzido. Nesse sentido, ele subordina toda a existência dos indivíduos às necessidades do seu desenvolvimento.

Construir unidade na luta e apresentar pautas ofensivas

O inferno capitalista propicia ao trabalhador apenas um tempo de “não-vida”, não reconhecimento de si, anulando sua autonomia e o tempo do bem viver, que se apresenta na realidade capitalista insuficiente para a reprodução social e do lazer. Isso porque a extensão da jornada de trabalho é acompanhada da diminuição ou desvalorização da forma salário relativa, que é o que possibilita, sob o capitalismo, o acesso às mercadorias e serviços.

Se a vida do trabalhador é cada vez mais sofrida e explorada, é preciso não perder de vista que a concentração da riqueza e o surgimento de bilionários têm crescido de maneiras alarmantes desde pelo menos os anos de 1970. No Brasil, 63% da riqueza social está nas mãos de 1% da população,[v] o que deveria ser inadmissível para os defensores do “progresso” brasileiro. Lutar pela redução da jornada de trabalho em busca de maior qualidade de vida passa, também, pela construção de um sistema tributário progressivo, com a taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos e de heranças.

Em síntese, garantir a distribuição da riqueza socialmente produzida, fazendo com que o Estado não aja como um Robbin Hood às avessas. Ademais, economistas já demonstraram que a redução da jornada não é apenas viável economicamente, como apontaram que experiências que adotaram a escala 4×3 tiveram ganhos de produtividade.[vi]

Devemos reforçar a proposta apresentada pela deputada Erika Hilton, que além de propor melhorias na negociação coletiva, busca pautar o Congresso Nacional e a sociedade brasileira sobre um tema essencial para a vida da classe trabalhadora. Simultaneamente, é preciso fortalecer as lutas do movimento Vida Além do Trabalho e transformar a disputa pelo fim da escala 6×1 em uma disputa nas ruas, apontando caminhos possíveis e concretos para a população.

No cenário atual, diante do avanço da extrema direita mundo afora e da regressão de direitos trabalhistas, a luta pela redução da jornada de trabalho é uma das disputas mais importantes que se apresentam para o reequilíbrio de forças. Portanto, a unidade entre os diferentes setores da classe trabalhadora, a partir de pautas que dialoguem com suas necessidades concretas, é fundamental para construção de horizontes anticapitalistas capazes de colocar a esquerda em uma posição ofensiva e propositiva na conjuntura política atual.

*Ederson Duda é doutorando em ciências sociais na Unifesp.

*Matheus Silveira de Souza é doutorando em sociologia na Unicamp.

Notas


[i] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/12/fim-da-escala-6×1-tem-apoio-de-70-da-populacao-e-agrada-a-esquerda-e-a-direita-segundo-pesquisa.shtml

[ii] Disponível em: < https://diplomatique.org.br/a-falacia-da-reforma-trabalhista-uma-analise-critica-da-precarizacao-do-trabalho-no-brasil/#:~:text=O%20DIEESE%20(2023)%20destaca%20que,e%20da%20precariza%C3%A7%C3%A3o%20do%20trabalho.

[iii] OLIVEIRA, Francisco de. “Política numa era de indeterminação: opacidade e reencantamento”. In: OLIVEIRA, F. de; RIZEK, C. (org.). A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007.

[iv] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/12/fim-da-escala-6×1-tem-apoio-de-70-da-populacao-e-agrada-a-esquerda-e-a-direita-segundo-pesquisa.shtml.

[v] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/desigualdade-63-da-riqueza-do-brasil-esta-nas-maos-de-1-da-populacao-diz-relatorio-da-oxfam/.

[vi] MANZANO, M; BORSARI, P; DARI KREIN, J;SCAPINI, E. Fim da escala 6×1: viável para a economia, urgente para a sociedade. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/11/fim-da-escala-6×1-viavel-para-a-economia-urgente-para-a-sociedade.shtml


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