Zuza Homem de Melo (1933-2000)

Imagem: João Nitsche
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o historiador e crítico musical, recém-falecido

Este ano tão cruel levou embora no dia 4 de outubro uma das pessoas mais queridas do meio musical brasileiro: o produtor musical, engenheiro de som, crítico, organizador de festivais, historiador e jornalista Zuza Homem de Melo.

Sua biografia resumida está disponível na internet: jovem interessado em música, que começou a tocar contrabaixo nos anos 50, viajou para os Estados Unidos, estudou e passou a escrever artigos sobre jazz e música popular. A partir de 1959 trabalha na TV Record, e torna-se figura central da organização do que ele chamou mais tarde, em um de seus livros mais conhecidos, de A Era dos Festivais (Editora 34). Nas décadas seguintes, foi curador de festivais de jazz e MPB, produziu discos e shows, apresentou programas de TV (Jazz Brasil, na TV Cultura), teve programas de rádio, escreveu livros essenciais para conhecer a música popular de nosso tempo.

Fugindo da frieza acadêmica, do mero alinhamento de fatos e nomes, Zuza não tinha vergonha de se colocar como testemunha ocular (e auditiva) dos fatos que narrava. Aliás, fazia isso com a elegância discreta que sempre caracterizou sua atuação nos bastidores. Estimulando novos valores, orientando artistas consagrados, procurando abrir espaços de renovação da música, sem perder em nenhum momento a noção da importância histórica, cultural e artística dos fatos que relatava.

Deixou tantas obras essenciais que fica difícil escolher a mais representativa. A Canção no Tempo (co-autoria com Jairo Severiano), Eis Aqui os Bossa Nova, Música com Z(coletânea de artigos), Música Popular Brasileira Cantada e Contada.

Antes de morrer, aos 87 anos, acabara de colocar o ponto final em sua biografia de João Gilberto. Seu último livro publicado foi Copacabana –a trajetória do samba-canção (1929-1958), coedição da Editora 34 com o Sesc, de 2017. É sobre ele que vamos nos deter um pouco mais, atentos à lição do mestre.

A obra começa com uma saborosa contextualização do Rio de Janeiro dos anos 50, sob a ótica de um “paulistano no Rio” (título do primeiro capítulo). Zuza fala da chegada à Capital Federal, da dissonância entre zona Norte e zona Sul, do túnel do Leme, do ambiente social da época, da moda, dos cinemas, das boates, dos hormônios em ebulição. Descrito o cenário e dado o clima, descreve a passagem do samba dos teatros de revista do Centro para as boates chiques de Copacabana, tornando-se mais intimista e amaciando o batuque, absorvendo influências norte-americanas (foxtrote) e latinas (bolero).

À medida em que descreve o processo, Zuza interpola os protagonistas da história: compositores e intérpretes que construíram a textura sonora do gênero. Com farta iconografia, que abrange retratos, capas de discos, registro de shows e festas, programas, jornais, partituras e até cardápios, somos envolvidos e até convidados a cantarolar as canções que são citadas.

Em mais de 500 páginas, Zuza Homem de Mello consegue o admirável feito de dosar com sabedoria as suas preferências pessoais, sem escondê-las, e municiar o leitor de todas as informações necessárias para compreender o sentido da expressão samba-canção. De Ary Barroso a Chico Buarque, de Lupicínio a Cartola, de Aracy Cortes a Maysa, passando por Noel, Adelino Moreira, Nelson Gonçalves, Braguinha, Dick Farney, Cauby Peixoto, Ângela Maria, Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Tom Jobim, Dalva de Oliveira, Herivelto e tantos outros, a vontade é de parar a leitura a cada página para ouvir as canções citadas. E Zuza generosamente compila as gravações citadas, em apêndice precioso no final do livro.

O autor confessa, no prefácio, ter demorado quase 13 anos para escrever o livro. Outros trabalhos surgiram, livros foram encomendados e publicados, shows foram produzidos. Mas para ele, “o que se criou nos anos 1950 foi determinante para dar ao Brasil o reconhecimento de sua canção como destacada forma de arte na gênese da música popular. Ao primeiro sinal de seu toque rítmico e melódico, o pensamento voa evocando a saudade da terra, reconhecendo o talento musical e distinguindo o afeto do brasileiro comum.”

Do samba-canção surge a bossa-nova, e nos anos 60 tudo se precipita, se mistura e se reconfigura, sem perder a herança genética. E Zuza Homem de Mello, sempre atento aos novos sinais que surgiam em plena era dos festivais, nunca deixou de apontar a importância dos gêneros matriciais da moderna música popular brasileira. Com entusiasmo de garoto e sabedoria de quem viveu intensamente, tornou-se um dos autores fundamentais para entender e amar o que de melhor a cultura brasileira produziu: a nossa música.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
A biblioteca de Ignacio de Loyola Brandão
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Um território de encantamento, um santuário do verbo, onde o tempo se dobra sobre si mesmo, permitindo que vozes de séculos distintos conversem como velhos amigos
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
A nova indústria cultural
PorBRUNO BONCOMPAGNO: O monopólio é a tendência unívoca do capitalismo. A outra tendência do capital é desenvolver maneiras de maquiar sua dominação do cotidiano
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES