O capitalismo em crise

El Lissitzky, Proun 1 D from Proun, 1920
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Por ANNABELLE BONNET & VICTOR NEVES*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Paulo Nakatani e Rosa Maria Marques.

O capitalismo em crise traz uma interpretação, assumidamente posicionada no campo da crítica marxiana da economia política, sobre as determinações da crise econômica no capitalismo contemporâneo. Para Paulo Nakatani e Rosa Marques a crise capitalista só é compreensível levando-se em conta o lugar e o peso hodiernos de certas formas de existência do capital, nomeadamente o capital portador de juros e o capital fictício.

Nesse sentido, o livro busca apresentar elementos para uma compreensão de como tais formas assumiram centralidade na determinação da dinâmica da acumulação, constituindo os principais definidores das relações econômicas e sociais no capitalismo contemporâneo. Mais especificamente, convidam o leitor à reflexão de uma questão central: como o capital portador de juros, especialmente na sua forma de capital fictício, determina a dinâmica da acumulação capitalista nas últimas décadas, e, com ela, a forma específica, “financeira”, assumida pelas crises do capital?

Tal questão é enfrentada ao longo de quatro capítulos, que podem ser pensados como organizados em duas partes. A primeira parte (capítulos 01 e 02) é voltada para a exposição dos fundamentos com os quais os autores trabalham. Eles chamam a atenção para aspectos importantes do ser e do movimento do capital para melhor entender a autonomização das formas do capital, recorrendo, sobretudo, aos livros I e II d’O Capital de Marx.

Expõe-se ali que tanto o capital em geral quanto os capitais particulares têm sua existência determinada pela necessidade de valorização do valor, e dependem de mudar ininterruptamente de forma para que ela ocorra. O capital deve se transformar reiteradamente de dinheiro em mercadorias (meios de produção e força de trabalho), que entrarão no processo produtivo e serão transformadas em novas mercadorias grávidas de mais-valor, que serão, por sua vez, novamente convertidas em dinheiro (em montante maior que o inicialmente adiantado).

Tem-se então, ciclicamente: D-MFTMP…P…M’-D’. O movimento do capital é, portanto, entendido como sua mudança de forma, que é um pré-requisito do processo de valorização. Isso significa que sempre que o movimento de parte do capital é interrompido, essa parte do capital deixa, ainda que provisoriamente, de funcionar como capital, e, no processo de produção, sempre há alguma parcela do capital parada.

Esse problema de mudar de forma e passar pela produção (enfocados por Marx, sobretudo, no Livro II d’O Capital), está na base de um ponto que é apresentado por Nakatani e Marques e tem importância fundamental: que “cada unidade individual de capital pode e deve estar continuamente e no mesmo momento sob as três formas autônomas: capital dinheiro, capital mercadoria e capital produtivo” (cap. 01, p. 11).

A parte que está sob a forma dinheiro, o capitalista não a reterá entesourada: ele a emprestará (aplicando-a, por exemplo, em títulos de dívida, ou depositando-a junto a um banco ou operadora financeira que, por sua vez, a aplicará em ativos financeiros), com a finalidade de que essa parte do capital renda juros, mesmo sem passar pelo processo produtivo por ele comandado.

Surge assim uma separação entre capitalista prestamista e capitalista em atividade, ou funcionante (aprofundada por Marx na Seção V do Livro III d’O Capital). Reforça-se com isso uma forma particular do capital: o capital portador de juros. Os autores chamam a atenção para o fato de que se trata de uma forma em que o fetichismo e a reificação assumem seu mais alto grau, uma vez que, nela, dinheiro gera mais dinheiro (D-D’), sem passar, do ponto de vista do emprestador, pela mediação das mudanças de forma. No entanto, o acréscimo de dinheiro manifesto nos juros tem origem no mais-valia criada na produção por outra fração do capital social.

A posição dos autores ecoa o que é sustentado por Marx no capítulo XXI do Livro III d’O Capital, quando demonstra que o capital jamais aparece, na circulação, enquanto tal. A riqueza capitalista se reduz, em última instância, ao maior ou menor poder de se apropriar de trabalho alheio: tal apropriação não precisa se dar através da participação direta, na produção, do capital particular a ser valorizado.Ela pode ocorrer, por exemplo, através da captação da remuneração de capital emprestado a juros, quando esses forem pagos por determinado capitalista que tomou um empréstimo e que, ele sim, comanda determinado processo produtivo.Diferenciam-se assim produção e apropriação de mais-valor, e tangencia-se o problema da repartição do mais-valor no interior da classe capitalista.

Esse último ponto, prenhe de consequências bastante desenvolvidas por Marx no Livro III de O Capital (especialmente em suas Seções IV e V), ao mesmo tempo ajuda a compreender o descolamento e indica o atrelamento entre o assim chamado “mercado financeiro” e a economia dita “real (geradora de mercadorias, de emprego e de renda originária da produção de bens e serviços)” (cap. 03, p. 45), e constitui um dos pressupostos do livro de Nakatani e Marques.

É a partir deste último que a segunda parte (capítulos 03 e 04) foca num exame da categoria de capital fictício e de suas formas de manifestação na atualidade. Mais precisamente, os autores se assentam nesse momento na exploração dos desdobramentos do seguinte ponto: “na medida em que o dinheiro passou a representar o valor, […] a busca por ganhar dinheiro sem passar pelas agruras da produção [necessidade de mudança de forma do capital, tempos de interrupção do movimento etc.] se impõe” (cap. 04, p. 55).

Prosseguem com o exame das cinco formas particulares sob as quais o capital fictício se apresenta hoje: a dívida pública; o capital bancário; o capital acionário; os derivativos; as criptomoedas.

Essa busca por ganhar dinheiro sem passar pelas agruras da produção tensiona cada capital particular, e está na base do fenômeno que os autores nomeiam “hipertrofia do capital fictício”. Tal hipertrofia se inicia, segundo eles, ainda nos anos 1950 nos EUA, e metade dos 1960 na Europa, com o fenômeno da “acumulação financeira” decorrente da “centralização dos lucros não reinvestidos e das poupanças das famílias em instituições financeiras com o objetivo de valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos financeiros (moedas, obrigações e ações)” (cap. 03, p. 41).

Os autores expõem os processos que teriam contribuído para ela, até chegar, dos anos 1980 em diante, ao que chamam de “onipresença” ou “dominância do capital portador de juros” sobre o capital industrial – que é definido, por sua vez, como “o capital envolvido na produção de mercadorias” (cap. 03, p. 53, nota 9). Além disso, ressaltam que essa dominância teria sido possibilitada tecnicamente pela “formação de mercados integrados de moedas e capitais que, com o avanço da rede de computadores, permitiram a realização de negócios entre vários países quase em tempo real” e “aceleraram as transferências de capital de uma parte para outra do mundo, cujos mercados financeiros integrados funcionam durante as 24 horas do dia” (cap. 03, p. 47).

Uma vez estabelecida tal dominância, os autores exploram três consequências de grande envergadura sobre a economia: o desenvolvimento do capital fictício inibe o capital produtivo, uma vez que acena com a possibilidade de elevados rendimentos sem a necessidade de imobilização de capital na produção; prioriza-se a rentabilidade do capital fictício em lugar da aferição de lucros (o que, afirma-se, reduz a margem para o engajamento em políticas de longo prazo por parte das empresas e estabelece um compromisso entre capitalistas e frações superiores dos trabalhadores assalariados); elevam-se os níveis de desemprego e a pressão pela redução dos salários.

Esses pontos confluem para uma situação na qual se buscam compensar dificuldades de valorização na esfera produtiva (por exemplo: limite para o rebaixamento dos salários e extensão das jornadas de trabalho) através da obtenção de rendimentos na esfera financeira. Esse fenômeno determina o movimento de cada capital particular, representando tendência de movimento do capital em geral, de tal modo que o centro dinâmico da acumulação passa a basear-se na ampliação das formas de capital portador de juros, especialmente do capital fictício (cap. 04, p. 55).

Chega-se assim ao exame da forma atual, aparentemente financeira, das crises capitalistas. Decorrendo da demonstração anterior, os autores afirmam que a dominância das formas portadora de juros e fictícia do capital não pode ser entendida, como outras interpretações o sustentam, como uma mera distorção do capitalismo, mas sim como um desdobramento lógico desse modo de produção e de vida.

Põe-se no centro desse estudo a crise de 2007-2008, partindo do levantamento de seus antecedentes com a queda da Nasdaq em 2004 e estendendo a análise até as tendências em curso nos dias de hoje. Após a exposição mais detida dos vetores que confluíram para o desencadeamento daquela crise e dos modos particulares através dos quais ela se manifestou, passa-se à discussão das medidas tomadas para superá-la e de como ficou a situação da economia mundial pós-crise.

Essa exposição conduz a diversas perguntas, dentre as quais a de saber se seria possível e desejável superar os problemas apontados permanecendo nos marcos do próprio modo de produção capitalista. Se sim, como? Se não, como superar tal modo de vida? Essas são questões cujas respostas os autores preferiram deixar em aberto, e o desafio está lançado ao leitor.

*Annabelle Bonnet, doutora em sociologia pela École dês Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), é pesquisadora de pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGPS-UFES).

*Victor Neves, é professor, vinculado do Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM) e do Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS) da UFES.

Referência

Paulo Nakatani e Rosa Marques. O capitalismo em crise. São Paulo, Expressão Popular, 2020.

 

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