Dois anos de desgoverno – como chegamos até aqui

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Por CICERO ARAUJO*

Neste e no próximo ano um imenso desafio está posto aos que desejam uma nação mais democrática

Já se foram mais de dois anos de um governo estapafúrdio, que fez o país mergulhar fundo num labirinto de saída dificílima. Neste e no próximo ano um imenso desafio está posto aos que desejam que uma nação mais democrática reemerja de nossas atuais desventuras. Para melhor aquilatá-lo, convém recordar um pouco como chegamos até aqui, antes de examinar o que nos aguarda.

A crise da democracia no Brasil, é claro, não começou com Bolsonaro. Em tempos normais, figuras como ele viveriam inteiramente à margem do sistema de representação. Porém, conforme a crise política se aprofundou nos últimos anos, transformando-se numa crise do regime, a extrema direita passou a ganhar audiência. Bolsonaro é fruto disso. Hoje ele é a personificação mesma da crise, o agente que mais decididamente busca levá-la até suas últimas consequências: a completa destruição da democracia vertebrada pela Constituição de 1988. Como presidente da República, Bolsonaro é tosco, incompetente para a função, bem sabemos. Ocorre que nesta conjuntura de desarranjo institucional, multiplicam-se as oportunidades para que governantes como ele avancem entre as brechas que a própria crise vai lhes oferecendo. Não há mais por que ficar surpreso com as possibilidades de sucesso de sua empreitada.

Regimes democráticos podem ser destruídos pela via da morte natural ou pela da morte violenta. A primeira é a tendência ao desfiguramento gradativo das práticas e dos direitos democráticos; a segunda, do fechamento abrupto, coercitivo, das instituições da República. Até a ascensão de Bolsonaro, caminhávamos pela primeira via, o que já era uma péssima notícia. A partir da instalação de seu governo, porém, aumentaram muito as chances de passagem da primeira para a segunda via. Bolsonaro representa a disposição e o dispositivo para encerrar o regime de 1988 pelo caminho violento. E de fato, tal como a crise o projetou para o primeiro plano da política nacional, ela também o instiga a estreitar as opções do jogo, rumo a esse desfecho.

Desde o início de seu governo, tem se esmeirado na prática da tentativa e erro, sondando as paredes das instituições em busca de suas partes mais frágeis, por onde possa quebrá-las e fazer passar seu tacão autoritário. Aplicar-se a isso não requer um político habilidoso; na verdade, não exige nada além do “talento” que já possui: a capacidade de explorar o lado sombrio de cada situação e transformá-lo numa ocasião de impasse institucional. Incansável nesse objetivo, ele espera que em algum momento a estrutura da república acabe cedendo, por fadiga de material. A partir desse ponto ele estará, por fim, em seu elemento: o reino da violência sem peias. Seus gestos mais emblemáticos já prefiguram esse estado de coisas, que nada mais significam que a passagem da disposição ao ato.

Mas a crise de nossa democracia não é apenas a expressão de uma fragilidade institucional. Ela repercute uma fragilidade mais profunda, fincada na pirâmide social brasileira. O pacto constitucional de 1988, herdeiro de uma longa e profunda aspiração por liberdade e justiça social, subscrevia um projeto de achatamento dessa pirâmide pela via do consenso e da negociação. Ao longo de quase vinte anos de estabilidade política, esse projeto deu um rumo aos sucessivos governos: implementado de forma meio hesitante no início, adquiriu consistência mais firme depois.

Nunca deixou de esbarrar na resistência conservadora, especialmente nos porta-vozes mais estridentes da agenda neoliberal, hegemônica em quase toda parte. A despeito disso, atingiu voo de cruzeiro nos últimos anos do governo Lula, quando angariou consenso tanto na base quanto no topo. Entretanto, a própria estabilidade cobrou seu preço mais à frente, na medida em que a condução petista do projeto relegava uma massa considerável de insatisfeitos, situada bem no meio da pirâmide. E foi a partir desse flanco que o consenso se quebrou, abrindo um período de instabilidade.

O turning point foi a revolta popular que explodiu em meados de 2013. Digo “revolta popular” mais por seu caráter massivo e espontâneo do que por sua composição social. No fundo, ela dava vazão ao ressentimento acumulado das classes médias, sua percepção de que arcava com os custos da prosperidade de outros, sem receber os devidos benefícios em troca. Percepção que agora se agudizava, conquanto os anos de prosperidade pareciam ameaçados pelas dificuldades montantes da crise internacional do capitalismo. Espontânea como foi, os mais diversos motivos – alguns excelentes, diga-se de passagem, e outros nem tanto – e as mais diversas bandeiras foram despejadas nas ruas.

Todas elas expressões de um radicalismo político, saudável em princípio, mas que, sem foco, dificilmente escaparia da frustração. Em vez de ponto de confluência de tendências a apontar uma alternativa política clara, tornou-se apenas um ponto de cruzamento, no qual as correntes opostas se entreolharam, não gostaram do que viram e seguiram adiante para nunca mais se reencontrar.

Mesmo frustrada a revolta, seu efeito social e político foi muito sentido, ao abalar o prestígio dos governos petistas no terreno onde menos se esperava que viesse a ser abalado: precisamente nas ruas. Perplexo e paralisado, demorou para reagir. E quando o fez, uma avenida inteira já havia sido aberta para os opositores, que de quebra aglutinou e renovou o antigo questionamento conservador ao próprio regime constitucional. Do ponto de vista da presente análise, esse último aspecto é o que mais interessa destacar. Nos anos subsequentes, cada trecho percorrido da avenida significou um passo a mais no sentido da subversão do consenso obtido em 1988.

Aqui cabe registrar uma guinada da conduta dos representantes do “andar de cima” da pirâmide brasileira em suas ambivalentes relações com os governos do PT, ocorrida justamente nesse período. A fim de fazer frente à crise econômica internacional, iniciada em 2008, mas que demorou um pouco para chegar ao Brasil, o governo de Dilma Rousseff resolveu promover um grande acordo entre sindicatos e federações empresariais para garantir a produção e o emprego.  De início, todos os grandes nomes do empresariado participaram de sua costura, e deram o sinal verde para desenrolar o programa acordado. Contudo, ao longo de sua implementação, e conforme o governo já fazia sua parte – por exemplo, concedendo uma série de estímulos e isenções fiscais, cortando juros e as tarifas elétricas etc – as vozes empresariais foram mudando de posição.

Algo que já ressoava, por um lado, resultados econômicos do setor privado aquém do esperado e, por outro, o desgaste político do governo, que atingia seu ponto crítico na revolta de 2013. Essas vozes faziam agora ataques contundentes ao intervencionismo estatal, ao excesso de impostos e à falta de rigor fiscal, ao “custo Brasil” e às cláusulas sociais da Constituição… Tudo isso embalado num ambiente de sucessivas denúncias de corrupção do governo.

Resumo da ópera: Dilma Rousseff acabou tendo de pleitear sua reeleição contra uma ampla aliança formada pelos partidos conservadores (ainda sob a liderança do PSDB), quase todo o setor empresarial e os principais meios de comunicação. A nova vitória do PT, mas por pequena margem, semeou entre os derrotados o desejo de virar o jogo por vias não eleitorais, no limite pelo caminho da subversão constitucional. E de fato, em pouco mais de um ano do governo reeleito, o terreno já estava arado: a Operação Lava-Jato a pleno vapor, apoiada pela Suprema Corte, a economia em frangalhos e o governo sem maioria no Congresso, tendo um vice-presidente da república pronto para encabeçar um governo substituto. O impeachment da titular do cargo era uma questão de tempo.

Ainda que a legalidade do processo continue dando muito pano para debate, não resta dúvida que seu verdadeiro motivo nada tinha a ver com a peça de acusação que lhe serviu de pretexto. Estava todo ele contido em outro lugar: um programa ultraliberal para o governo substituto, chamado de “Ponte para o Futuro”, daqueles que jamais seriam capazes de obter o consentimento das urnas, prevendo o desmonte dos direitos sociais consagrados na Constituição e das próprias leis trabalhistas conquistadas há muitas décadas.

Há muito não se via – talvez desde os tempos da República Velha – um governo tão intimamente articulado com os grandes detentores da riqueza nacional e tão prestativo a eles. Contudo, mesmo obtendo o pleno apoio dos poderes econômico, institucional e de mídia, ele carregava um defeito de nascença: a completa carência de apelo popular. Por isso mesmo, só poderia ter sido formado do modo como foi. Não lhe apeteciam as urnas. Assim, persistindo o regime democrático, essa aliança tinha poucas chances de dar continuidade a seu projeto, não obstante os sérios danos infligidos ao seu até ali mais óbvio adversário, com Lula preso e inelegível.

Sabemos o trágico desfecho dessa história. Confirmada a falta de vocação eleitoral da aliança do dinheiro com os partidos conservadores tradicionais, restou ao andar de cima a escolha entre um candidato de extrema direita e o retorno do PT ao governo. O primeiro não fazia nenhuma questão de esconder suas pretensões autoritárias, tendentes ao fascismo; e o segundo não gozava de sua confiança, embora nem de longe pudesse ser comparado ao que significava a alternativa. Mas não é que o empresariado resolveu dobrar a aposta, apoiando justamente o candidato da extrema direita? Prova maior disso foi o júbilo com que os investidores da Bolsa de Valores de São Paulo, no dia seguinte, receberam a notícia do resultado das urnas.

Infelizmente, também sabemos, a eleição de Bolsonaro foi apenas o começo da tragédia. Chegamos ao terceiro ano de seu mandato, e ao segundo da pandemia, mas só agora a turma do topo da pirâmide chegou à conclusão de que com ele não dá mais. Qual a consequência disso, só o tempo vai dizer. Ocorre que o tempo da política, pelo menos nesta conjuntura, é material escasso. Os riscos da morte violenta de nosso regime democrático crescem a cada novo dia que o atual mandatário permanece em seu posto. A imagem que vou usar a seguir, creio, já deve ter passado pela cabeça dos que têm ciência da gravidade a que estou me referindo.

Bolsonaro instalado na presidência da república representa desafio semelhante a conviver com um animal feroz na mesma casa. Pior: habitando não o porão, mas a sala mais ampla, espaço nobre e de passagem para todos os cômodos. Cientes disso, os demais moradores tratam de elaborar, por mil artifícios, formas de manter a besta isolada em seu recinto. Uma espécie de jaula imaginária. Para contê-la na medida do possível, e saciar sua imensa fome e sede, um grupo de domadores voluntários se dispõe a entrar lá dentro e servi-la. (Como não poderia deixar de ser, de vez em quando um deles sai da jaula estraçalhado. Ossos do ofício.)

Confinado, o animal fica ainda mais intratável, rugindo o tempo todo e batendo com toda a força nas barras que limitam seu movimento. Inspetores de plantão (“cientistas políticos”) avaliam os riscos e garantem que a estrutura é robusta e aguentará firme. Mas é difícil imaginar que tamanha anomalia persista indefinidamente. Uma casa assim dividida não tem como parar em pé. Das duas uma: ou se dá um jeito de expelir o bruto, ou a casa toda se torna uma selva.

A República é uma casa já complicada por natureza. Normalmente, os moradores brigam bastante, embora sempre evitando a eliminação (física) recíproca. Os cômodos são, por isso, cuidadosamente separados. Mas para que a casa exista como um lugar habitável, eles têm de manter uma comunicação constante. A circulação, o trânsito entre os cômodos, é quesito de primeira necessidade. As paredes entre eles é feita de matéria sutil, resultado da imaginação institucional; seus limites não são precisos, podendo variar de acordo com as circunstâncias. São como “paredes quânticas”, digamos assim: próximo delas, o morador não sabe direito, de antemão, se está dentro ou está fora do cômodo. Daí o imperativo de negociar e renegociar espaços.

Mas o que acontece quando se tem um animal feroz dentro da casa, e ainda por cima no principal cômodo, mesmo que selado por uma jaula? Uma espessa atmosfera de insegurança se apodera de todos. Eles evitam se aproximar da jaula pois, sendo ela também fruto de imaginação institucional, nunca sabem exatamente a que distância estão das garras do animal. Na medida em que a sala é ponto normal de confluência dos demais cômodos e vão de passagem para eles, uma série de “gambiarras” têm de ser feitas para contorná-la e preservar a comunicação com o resto da casa. Comunicação mal feita significa, por sua vez, uma nova fonte de conflitos, mas agora sem a mesma folga para dirimi-los. De modo que a casa toda começa a ficar tão bagunçada que os moradores, desgastados, passam a preferir fixar-se em seus próprios espaços. O que resulta em mais bagunça. Eis que o tempo joga a favor do bruto: quanto mais permanece na casa, mais complicado se torna removê-lo.

A metáfora que estou usando é, naturalmente, uma simplificação. Não leva em conta, por exemplo, os poderes que um presidente continua a deter, mesmo “enjaulado” em seu recinto. Das mais diferentes maneiras, a ferocidade de Bolsonaro tende a contaminar esses poderes, exponenciando o perigo que representa para a integridade da república. Tais poderes se materializam no controle da máquina estatal que o presidente, chefe do Executivo, detém e com os quais contribui para articular o funcionamento da própria sociedade. Contudo, do mesmo modo que essa máquina pode ligar, ela também pode desligar trechos vitais do circuito social. Como, aliás, a gestão da pandemia bem o demonstra. O estrago sugerido na imagem da fera na casa é, portanto, uma estimativa “por baixo”.

Em suma, e voltando ao ponto inicial deste texto: imenso desafio, além de muita agonia, ainda nos aguardam. Já deve estar claro para qualquer observador minimamente atento que o bolsonarismo não poupará nenhum expediente para manter-se agarrado ao que obteve em 2018. Mas iludem-se os que pensam que, para o derrotar, será suficiente unir todas as correntes políticas, à direita e à esquerda, no próximo embate eleitoral. Antes disso, será preciso estreitar o diálogo com às maiorias que nenhuma ligação orgânica têm ou terão com qualquer força política, e que neste exato momento se batem, aflitos, para sobreviver aos dias penosos que o país está vivendo. O que significa que muitas vozes engajadas serão necessárias para repercurtir essa aflição e levar uma resposta clara, uma proposta muito concreta mostrando como as forças democráticas, e só elas, serão capazes de saná-la.

*Cicero Araujo é professor titular de Teoria Política do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. É autor, entre outros livros, de A Forma da República: da Constituição mista ao Estado (WMF Martins Fontes).

 

 

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