O que somos?

Imagem: Grupo de Ação
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

Fechamento total: metáfora da desgraça brasileira

Haverá fechamento total (também chamado de lockdown) dos processos de produção, montagem, distribuição, consumo e serviços no Brasil, exceto o estritamente essencial, a favor da salvação de vidas e provável superação da pandemia. Mas será ao modo brasileiro, antigo conhecido, isto é, bisonho, incompetente, esfacelado, atrasado e fora-de-lugar.  Tal modo custará, antes, muitas vidas e o esfacelamento da força de trabalho em saúde. Ao modo político partidarizado como sempre fez e Rodrigo Pacheco faz agora. Ao modo falsamente equilibrado, bom-mocista e gentil. Para dizer o mesmo depois de pesquisa e investigação apuradas, será ao modo violento, assassino, vingador, predatório e postergador.

É como fomos. Outros presidentes, ditadores e interventores foram asquerosos e deram mínima atenção à vida do povo deste país, ajudando em muito a assassiná-lo, pois a morte sempre é o resultado das postergações de responsabilidades, das mentiras públicas, da negação da ciência, do desequilíbrio ético e mental. Assim foi com todos os prefeitos, governadores e presidentes que abriram ruas e estradas sem pensar naqueles que ali já viviam, operários ou indígenas e quilombolas. Assim, fizeram os metros quadrados do “progresso” valerem outro e os pobres foram enxotados para várzeas, grotões desconhecidos e todas as formas de periferia. Nós os conhecemos desde os anos de 1920, Primeira República.

No governo da figura sinistra e desatinada, o plantonista do Planalto, tudo tão somente ficou pior, exacerbado, fora de limites, sem fronteiras, ao modo do assassinato banal e sem rodeios. Com apoio de uma massa que se diz “crente”, incapaz de precisar o objeto de sua crença. Com certeza, não tem nada a ver com a fé que emerge dos textos hebraicos, aramaicos e gregos. A novilingua religiosa dessa gente foi urdida nas teias do anticomunismo, da prosperidade dos dirigentes, da ideia de “comunidade” como “rebanho dos 99” (que jamais vai em busca do 1 desgarrado), do ritual que toma o lugar dos enunciados linguísticos do texto bíblico, da religiosidade como espetáculo, do grito por D’us (o acento é do articulista) que exige compensação material, da ignorância cabal presente na fala do “terrível crente” da AGU no STF a respeito da condição humana do crente no tempo e no espaço, independentemente de estar entre gentes, pois o Senhor das Escrituras está em qualquer lugar onde seu nome é invocado com sinceridade. Como é que essa gente pode se entender crente se ninguém fez com ela a simples hermenêutica que se agasalha no conceito de tsedakah, que é o fundamento do ser falante e agente encarnado em Jesus, o Cristo?

A nossa história diz muito do que vivemos hoje. Fomos e somos campeões de atraso na justiça étnico-racial desde a escravidão várias vezes centenária; postergadores de direitos de crianças, mulheres e pobres; relevantes negativos na conquista da educação e da ação cultural livre e autônoma; destacados nas mutilações de trabalhadores e trabalhadoras; líderes na repressão (e muitas vezes morte) do pensamento, da produção de informações e da verdadeira construção de atos comunicativos; extraordinários estimuladores de jeitinhos, que de fato são máscaras de antigas violências e humilhações transfiguradas; excelentes vociferadores do pouco ou quase nada que parecem ser muito e significar grandes coisas, como o índice da felicidade; destacamo-nos na completa negação dos valores bíblicos (alardeados) em nome de sinecuras, empreguinhos, remição de impostos de igrejas e donos de igrejas,  berros  escabrosos de púlpitos dirigidos por bandidos internacionais chamados de pregadores.

Por que a primeira pessoa do plural? Porque sempre houve alguma ou muita base social a favor dos males, horrores, tergiversações, mentiras, adiamentos e negação de direitos. Como Ruy Castro, em texto de 09.03.21 localiza a Quadrilha chamada Brasil, embora saiba de exceções e de não-aderentes.  A figura sinistra teve 57 milhões de votos em 2018 e ainda pode até disputar eleição, quando deveria estar interditado e internado, segundo diagnósticos de excelentes psiquiatras e psicólogos brasileiros.

Assumir nossa condição (e não afirmar como o presidente chulo: “não colocarei o meu na reta…”) deve ser ponto de partida pedagógico para esmiuçar fenômenos, encontrar variações, mover a balança da história, mas nunca fora da condição de parte da vida do povo e da nação. Apesar de tudo, nós a somos.  Oposições, sim; evaporação da responsabilidade, não.

Um pequeno artigo de Celso Furtado, na Revista do Brasil, 1984, tinha por título Que somos? e não Quem somos? Ali o economista e ex-ministro da Cultura começava por justificar o título: Que somos é um desafio a nossos mistérios, ou como tomar consciência de que em nosso futuro haverá algo irredutível à experiência vivida. Que somos “é que estamos em crise de identidade, sentimo-nos incômodos na pele ou dentro da roupa que estamos usando” (p. 12)

Celso Furtado salta para os momentos de nossa industrialização, nossas alegrias de crescer e progredir. Então afirma: “A nova mansão construída na euforia da industrialização e da urbanização exibe gretas em todas as suas paredes. Já a ninguém escapa que nossa industrialização tardia foi conduzida no quadro de um desenvolvimento imitativo, que reforçou tendências atávicas de nossa sociedade ao elitismo e à opressão social (12-14)”.

A elite esteve, dias atrás, com o sinistro do Planalto, que não põe o dele na reta (mas sim os de todo o povo) em uma mansão ignorada e não sabida de algum bairro nobre de São Paulo. Alguns integrantes deste grupo falam coisas bonitas e às vezes duras sobre isolamento social e vacina nas mídias apáticas. Mas ovacionaram o delirante em sua última mentira (penúltima ou antepenúltima enquanto se escreve este texto) sobre a compra de vacinas que ele negou na hora certa e boa. Inocentes úteis nas mãos do delírio, esses e essas já foram usados, na História, mutatis mutandis, por mãos do nazismo e do fascismo. Mas ainda falta a exacerbação política dessas elites nas mãos do mal (a quem se fizeram claque) até que eles chamem os ricos e proprietários que lá não foram de “comunistas”. Aí fecha-se o ciclo da boçalidade. Chamar alguém de comunista no Brasil como arma para a sua indigência mental e intelectual é o fim de qualquer simbolismo de vida. Como diria Estanislau Ponte Preta, o infeliz acusador do nada se transforma em “subnitrato de pó de espirro”. Mas ainda dá o último grito: Comunista!

Enquanto isso, Lira e Pacheco vão levando seus discursos inócuos na direção tocada pelos seus trezentos e tantos eleitores do Congresso com o objetivo mal disfarçado de organizar a seu modo o sistema eleitoral para 2022. Do mesmo modo, tentam enganar, via bom-mocismo, o sistema judiciário, a fim de impor a desinteligente pauta do sinistro, que nega gêneros, direitos, enche os coldres dos imbecis de armas, desenha o inócuo e reacionário homeschooling, nega a integridade dos povos das florestas e ribeirinhos etc. Esses dois estão aí para serem dilacerados pelo sinistro companheiro planaltino e deles não se lembrará ninguém nos próximos anos. Certamente associados a pessoas tidas como importantes, como Toffoli, Aras, Mendonça e Kassio, que dão respostas claudicantes a, porventura, confusas consciências. Serão todos eles “terrivelmente evangélicos”? E por isso ficam ao lado do “cristianismo” exclusivista, no qual se empenhou a AGU? Sim, serão logo logo esquecidos.

Enquanto a imitação do bizantinismo grassa, a morte empilha corpos… E o colunista (Folha, 09.04.21) deixa a costumeira racionalidade para pedir de volta sua mulher, intensivista a se esfalfar no sistema de saúde colapsado.

Será que iremos comemorar os cem anos do Movimento Modernista de 1922 sob essa desgraça política, companheira visceral do Sars Cov 2? Logo aquela experiência estética e ética, que abalou as Casas Grandes e euforias elitistas entre 1920 e 1945, mas não pôde derrubá-las, pois faltou gente, consciência esclarecida e fundamentação econômico-política. Já havia lá, com as ressalvas tempo-espaciais, parte da turma imensa que elegeu o sinistro brasiliense.   Mas o Modernismo abriu um mundo novo com Di Cavalcanti, Portinari, Mário de Andrade, Rubens Borba, Anita, Tarsila, Rachel, José Lins, Graciliano (e outros e outras!!) E na sequência da primeira libertação se seguiram obras de alta tensão e capazes de penetrar profundidades que não conhecíamos, como tão bem mostraram Candido e Bosi.

Ainda assim, pobres diabos da burocracia, que jamais diriam o que disseram em governos anteriores, nesta desgraça vivida afirmam que livros devem ser taxados, pois são coisa de rico ou bem-sucedidos. De fato, não existe mais o amanhã, entendido simbolicamente, pois tais infelizes sequer conseguem ver o trabalho ingente de bibliotecários pelo Brasil afora a espalhar livros às crianças de palafitas, além de produções gráficas similares poderem se transformar num universo de imagens educativas e novas formas de leitura. Sim, o Brasil ainda lê pouco como resultado de toda a história repressiva e da escola imposta pelas burocracias. Mas milhões de crianças adoram ler e muitos outros milhões lerão quando as escolas deixarem seu confinamento e se recriarem como comunidades educadora, indo, pois, muito além do livro didático. Tinha de ser neste governo! É coerente. A ideia de gestão pública (e mesmo de inteligência) parecem ter chegado ao fim, de modo mais abrangente do que antes.

O fechamento total virá, porém quando desfalecerem os trabalhadores da saúde diante do volume de moribundos e da falta de materiais indispensáveis ao seu cuidado. Então veremos como o país sucumbiu diante da inteligência limítrofe que engana a todos no grito e na caneta. As elites paupérrimas (e seus puxa-sacos intelectuais) que negam o fechamento porque não entendem de economia e nunca ouviram falar das teses originais de Smith ou das experiências comunitárias da economia matarão parte significativa do país e então decretarão o lockdown, sob a bênção do delirante que não constrói uma única frase inteligente. Para quê?

O que somos?

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

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