As aventuras da reificação
Por CELSO FREDERICO*
Comentário sobre o livro “Capitalismo e reificação” de José Paulo Netto.
É verdade que cada livro tem a sua história e o seu destino, mas, antes de tudo, ele tem também o seu valor. Capitalismo e reificação resistiu ao tempo e, por isso, vem despertando a atenção de novos leitores. Parte desse interesse deve-se certamente à erudição de José Paulo Netto aliada ao didatismo de quem pretende introduzir o leitor em temas difíceis sem contudo banalizá-los. Relendo a obra mais de trinta depois, ela permanece viva e acenando para pistas a serem exploradas.
Sobre a primeira parte, em especial os capítulos dedicados diretamente ao fetichismo em Marx, há pouco a acrescentar ao que foi assinalado: finalmente, dispomos hoje de traduções confiáveis dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e dos Grundrisse, bem como da Ontologia do ser social de Lukács.
A segunda parte, porém, aquela dedicada à teoria da “positividade capitalista”, está marcada por “um discreto pessimismo subjacente”, como reconhece o autor. Esta “debilidade”, conforme observou, não passou indiferente ao olhar de Carlos Nelson Coutinho, que, na primeira edição, cobrou do autor a explicitação das “contratendências que se opõem à extensão e triunfo dos fenômenos da reificação”.
O pessimismo do autor, em 1981, fruto das vicissitudes do “socialismo real” e das falsas alternativas gestadas no Ocidente tinha, entretanto, algo de premonitório. Com a desagregação daquela experiência houve uma debandada no campo marxista. Lembro-me de uma reportagem na Folha de São Paulo em que se afirmava que os livros de Marx estavam encalhados nas livrarias. A mesma reportagem perguntou a vários “marxólogos” o que iria sobrar do legado de Marx (algo como “o que está vivo e o que está morto em Marx?”, para parodiarmos o título de um livro de Croce sobre Hegel). A surpreendente resposta de um deles foi: o capítulo dedicado ao fetichismo da mercadoria como ponto de partida para a crítica da reificação. O resto – a dinâmica do modo de produção, a crítica da economia política, a luta de classes – ruiu junto com o muro de Berlim.
A valorização do capítulo em que Marx falava do fetichismo mercantil perdeu a sua dimensão política de crítica do existente (seja do socialismo real ou do capitalismo tardio). Iniciava, em nossa recentemente despolitizada vida acadêmica, uma tendência a se estudar, entre os poucos que ainda se dispunham a tanto, O capital de Marx a partir de História e consciência de classe, e esta obra de Lukács a partir das ideias de Adorno. Desse modo, o marxismo tornou-se uma kulturkritik e não mais uma teoria científica e revolucionária.
Se atentarmos para esse percurso teórico do marxismo acadêmico, veremos que o seu norte é dado pela junção da crítica do fetichismo da mercadoria (e da correspondente reificação) com a teoria da racionalização de Weber. Foi Merleau-Ponty o primeiro a falar de História e consciência de classe como o livro que inaugurou o “marxismo-weberiano”.
Evidentemente, existem analogias entre as teorias de Marx e de Weber. Recentemente, Michael Löwy escreveu um livro interessante e bem informado apontando as “afinidades eletivas” entre ambos, A jaula de aço. Mas, não seria mais produtivo falarmos em “ligações perigosas”, já que o recurso à analogia não goza de boa reputação na dialética? Hegel, já criticava os estudos de “filosofia comparada” voltados à descoberta de semelhanças e diversidades. Tal procedimento, dizia Hegel, nos condena a ficar na superfície, “na diferenciabilidade exterior e indiferente” que nunca atinge a essência das ideias filosóficas estudadas.
Para abreviar o assunto, convém lembrar, como José Paulo Netto assinala, que a reificação diz respeito ao domínio das coisas sobre os homens, às relações objectualmente mediadas. Em Weber, podemos acrescentar, a racionalização é o resultado do domínio dos meios sobre os fins, cuja expressão mais elaborada é o triunfo da burocracia. Aqui, não se fala em exploração, mas, sim de dominação.
O futuro projetado por Weber não poderia ser pior: “não é a florada do verão que nos espera, mas a noite polar, glacial, sombria e rude”. O predomínio crescente da racionalidade, assim, nos fará prisioneiros da “jaula de aço”, uma prisão que a todos inclui e que a ninguém beneficia. Os homens, então, todos eles, permanecerão num estado de “surda semiconsciência”.
Esse pessimismo resignado Weber compartilhava-o com outros pensadores: Nietzsche, em primeiro lugar, e também Thomas Mann, Spengler, Tönnies etc. A partir de meados do século XX, assistimos à retomada do pessimismo cultural nos teóricos de Frankfurt que agregam à teoria da racionalização as ideias de Lukács sobre a reificação (embora tal teoria, em Lukács, conviva com um otimismo messiânico…).
Evidentemente, o “discreto pessimismo” de José Paulo Netto, à época, tinha como fundamento a estagnação do socialismo real às vésperas de sua degringolada e os impasses da esquerda nos países ocidentais. De qualquer modo, o autor, hoje, se penitencia da visão “pouco dialética dos processos de manipulação da consciência social pela ordem burguesa”.
Talvez se possa recolocar a questão da manipulação e perguntar sobre os seus limites. No capitalismo moderno completou-se o processo de reificação? Os homens estão condenados a viver num mundo governado pelo movimento automático das mercadorias? Pode-se ainda falar da existência de um sujeito do processo histórico? E quem seria ele: os indivíduos dispersos, as classes sociais, a humanidade?
A releitura de Capitalismo e reificação estimulou-me a refletir sobre o tema e voltar à obra de Marx.
Classe-sujeito ou sujeito automático?
Marx, em seus textos juvenis, sofrendo a dupla e contraditória influência de Hegel e Feuerbach, formulou uma concepção que mantinha unidas a filosofia da consciência do primeiro e o humanismo do segundo.
As conhecidas páginas sobre o trabalho alienado (ou, para ser mais preciso, do trabalho estranhado) nos Manuscritos econômico-filosóficos fazem lembrar a dialética do senhor e do escravo, descritas por Hegel na Fenomenologia do espírito. Em sua caminhada para a autoconsciência, a consciência de si, diz Hegel, aliena-se: senhor e escravo tornam-se, assim, “figuras” opostas da consciência em luta pelo reconhecimento – ambas prisioneiras da cisão e vivendo essa alienação de modos diferentes (a independência do senhor; a dependência do escravo). Na peregrinação da consciência, a alienação possui um conteúdo positivo: ela é uma etapa necessária do processo de exteriorização e enriquecimento. No momento final, na autoconsciência, ocorre a recuperação, a reconciliação entre a consciência e a substância que dela havia se separado.
A odisseia da consciência, que se perde na alienação para recuperar-se no momento final, no Espírito Absoluto, recebe um tratamento laicizado e negativo em Marx. A luta de classes, no último estágio da pré-história, prepara as condições para a superação da alienação e a realização do “homem total”. Mas, antes, o proletariado vive o seu calvário, tal como descrito nas páginas dedicadas ao trabalho alienado. Nelas transparece a influência da teoria da alienação religiosa de Feuerbach: o crente transfere para a esfera celeste os seus próprios atributos. Quanto mais poderoso é Deus, mais o homem se esvazia e se enfraquece. Do mesmo modo, quanto mais riqueza o operário produz, mais ele empobrece e mais enriquece o seu algoz.
É dessa situação extrema, baseada na teoria da “pauperização absoluta”, que o proletariado pode se redimir e superar a alienação – não só a sua como a de toda a sociedade, pois só uma classe que encarna “a ruína completa do homem” pode, através da revolução social, realizar a “renovação completa do homem”. Sem muito esforço, percebe-se a analogia com o martírio de Cristo como momento necessário para a redenção…
Em suas obras maduras, como bem nos mostra José Paulo Netto, o tema da alienação é reposto num outro patamar. Não se trata mais da antropologia feuerbachiana transposta para uma relação binária: o trabalhador e o capitalista. O capitalismo é então visto como uma totalidade, um modo de produção em desenvolvimento. No interior desse contexto rico de determinações, o fetichismo e a reificação, como observa o nosso autor, inauguram “uma forma nova e inédita que a alienação adquire na sociedade burguesa constituída”. Trata-se agora de uma “relação objetual”, cujo segredo último encontra-se na “forma-mercadoria” assumida pelos produtos do trabalho humano, forma que esconde o caráter social da produção por meio da aparência objetiva de um mundo automático regulado pelo movimento espontâneo das coisas (mercadorias) já esquecidas de sua origem humana.
A concretização histórica operada por Marx contrasta com a tese transhistórica defendida pelos frankfurteanos, que veem a alienação como uma versão laica do pecado original – o resultado da manipulação da natureza efetuada pela razão instrumental. Desfaz também o arcabouço teórico que a sustenta: a identificação entre alienação e objetivação, tal como aparece em História e consciência de classe.
Desfeita a identificação, pode-se pensar a forma primeira da objetivação, o trabalho, como a categoria fundante da sociabilidade humana e, ao mesmo tempo, pode se entender a positividade própria do capitalismo – a sociabilidade objetualmente mediada.
Nem sempre essa diferenciação foi percebida. Basta lembrar a “crítica do trabalho”, presente em autores como Moishe Postone, Robert Kurz e Anselm Jappe e reproduzida no conhecido Manifesto contra o trabalho do grupo “Krysis”.
Todos esses intérpretes partem de um diagnóstico comum: a crise terminal da “sociedade do trabalho”, da sociedade produtora de mercadorias, ou, como diz Kurz, o “colapso da modernização”. Com o avanço da ciência, expressa pela revolução microeletrônica, o trabalho humano deixou de ser a fonte do valor. Sendo assim, os militantes do grupo Krysis se unem na crítica do “marxismo tradicional” que se apegava à denúncia da mais-valia e não do próprio valor e de sua substância, o trabalho. Para eles, o trabalho no capitalismo tornou-se uma atividade separada das demais atividades, uma ferramenta a serviço do valor em sua corrida interminável para realizar um fim irracional: a sua própria valorização.
Curiosamente, não se faz distinção aqui entre trabalho, trabalho abstrato e trabalho concreto. Tal procedimento permite que se critique o “marxismo tradicional”, porque este via a contradição fundamental do capitalismo nas relações entre capital e trabalho, entre trabalho vivo e trabalho morto. Essa oposição, diz Jappe, é interior, isto é, intrínseca ao capitalismo: “trabalho assalariado e capital não são mais do que dois estados de agregação da mesma substância: o trabalho abstrato coisificado em valor”. Consequentemente, a luta operária, até hoje, teria tido como único resultado favorecer o desenvolvimento do capitalismo e do fetichismo mercantil: operários e capitalistas encontram-se e se congraçam como cúmplices na manutenção de uma ordem social centrada no trabalho. Trabalho e capital, diz o Manifesto contra o trabalho, são os dois lados da mesma moeda, a oposição entre eles é apenas uma oposição no interior da lógica da valorização, portanto, uma identidade lógica circunscrita à forma fetichista que os envolve.
Esse congraçamento em prol da lógica da valorização não corresponde à descrição que Marx faz do encontro do capitalista com o operário, vistos como personagens de um “drama”: “O antigo dono do dinheiro marcha agora à frente como capitalista; segue-o o proprietário da força de trabalho como seu trabalhador. O primeiro com um ar importante, sorriso velhaco e ávido de negócios; o segundo tímido, contrafeito, como alguém que vendeu sua própria pele e apenas espera ser esfolado”.
A transformação do drama numa relação de cumplicidade tem como contrapartida o abandono do “ponto de vista do trabalho”, do elogio do homo faber e das categorias fetichizadas daí derivadas: valor, dinheiro, mercadoria, Estado, democracia etc. O projeto de emancipação acenado propõe uma recusa do “modo de vida capitalista em geral”. Tal projeto permanece, entretanto, vago e genérico em sua grande recusa. O descarte da classe operária como sujeito deposita as esperanças no “colapso da modernização”: o esgotamento do valor, como medida, acarretado pelo próprio movimento do capital. A história, sem sujeitos reais, faz da realização do valor o “sujeito automático” que mecanicamente tudo conduz. A crítica do trabalho, assim, tem como horizonte uma nova sociedade na qual não existiriam mais trabalho e valor: nela, como nas comunidades primitivas estudadas por Marcel Mauss, iria vigorar uma economia da dádiva, do potlach.
Pode-se perceber em todos esses teóricos a sombra de Adorno. Embora critiquem esse autor, permanecem presos à sua dialética negativa ao substituírem a “ontologia do trabalho” do “marxismo tradicional” pela ontologia do estado falso para, assim, denunciar a inverdade do mundo em que vivemos sem, contudo, encontrar em seu interior os agentes interessados na emancipação.
Posição radicalmente contrária vem sendo defendida por diversos autores que, não raro, buscam inspiração na Ontologia do ser social de Lukács. A importância do trabalho, seu perene papel de mediador entre os homens e a natureza e entre os próprios homens, consagrou a expressão “centralidade do trabalho” para demarcar as interpretações materialistas e ontológicas e diferenciá-las das várias vertentes idealistas.
Essa nova versão do “marxismo tradicional” tem pela frente uma ausência e um desafio.
Classes sociais e luta de classes, curiosamente, não comparecem na Ontologia de Lukács. O processo histórico é visto nesta obra como “a explicitação do ser-para-si do gênero humano”, visão centrada basicamente nas relações entre o indivíduo e a espécie – sem a mediação representada pelas classes sociais e suas lutas.
Um autor simpático às ideias de Lukács, como o alemão Hans Heinz Holz, um dos organizadores do livro Conversando com Lukács, ao examinar a Estética e a Ontologia do ser social, constatou perplexo: “nas mais de três mil páginas não é mais tratada a questão da luta de classes ”.
Na mesma linha, o brasileiro Michael Löwy, que não aceita os rumos seguidos por Lukács a partir de História e consciência de classe, observou: “o que me parece faltar neste tipo de colocação (…) é precisamente aquela forma de suspensão do cotidiano, de objetivação social, de passagem do singular ao genérico, que ocupa o lugar central em História e consciência de classe: a ação coletiva, a práxis libertadora, a transformação dos explorados em sujeitos históricos conscientes”.
A discussão sobre a ausência das classes e de suas lutas não inibiu a difusão do slogan “centralidade do trabalho”, que migrou de sua condição originária de “protoforma da práxis social”, como quer Lukács, para dogma a ser defendido nas querelas sobre o processo de produção no capitalismo moderno.
A ausência das classes não se restringe à Ontologia do ser social de Lukács: também é tema controverso quando se estuda a principal obra de Marx, O capital. É somente no último capítulo, inconcluso, que Marx pretendia estudar as classes sociais. E nos três volumes anteriores, elas estão postas ou pressupostas?
Ruy Fausto fica com a segunda possibilidade, afirmando que as classes “são postas em inércia, portanto, não em luta”.
Posição radicalmente diferente é defendida por Hector Benoit. Segundo sua pitoresca opinião, “O capital, enquanto crítica da Economia burguesa, nada mais é do que a sistematização teórica da consciência de classe da classe operária, ou seja, da consciência desenvolvida pela e na própria luta de classes”. Marx, segundo o autor, parece que nada deve à economia clássica, e o que o diferenciaria dela, é o de ter percebido “a luta da própria classe trabalhadora, de escutar o murmurar das fábricas, de ouvir aquela crítica dramática da própria classe, em suma, de aprender teoricamente com a consciência de classe da classe operária”.
Essa interpretação obreirista de uma obra científica produziu um interessante e desigual debate de Benoit com Francisco Teixeira. Voltando-se contra os ataques descabidos à sua obra Pensando com Marx, Teixeira constatou que o seu crítico “cai no extremismo que nega a importância da crítica da economia política, que traduz o modus operandi do sistema, para afirmar a vontade da classe operária, como vontade autonomizada, que transcende todo e qualquer condicionamento imposto pelo capital”.
A ausência de condicionamentos pode ser observada entre os teóricos do “operaismo” italiano. A tese que orientou essa corrente é o entendimento de que todas as transformações tecnológicas produzidas pelo capitalismo moderno são respostas do capital à inventividade do trabalho e aos desafios da luta de classes. O progresso tecnológico é, assim, uma atitude reativa e não o resultado do desenvolvimento da ciência e da necessidade de realização do valor.
Mario Tronti, por exemplo, afirma que os marxistas começaram “por ver primeiro o desenvolvimento capitalista e só depois as lutas operárias. É um erro. Tem de se inverter o problema, mudá-lo de sinal, recomeçar desde o princípio: e o princípio é a luta de classes operária (…) o desenvolvimento capitalista é subordinado às lutas operárias, vem depois delas…”. O capital, assim concebido, torna-se “uma função da classe operária”. Por isso, conclui, deve-se partir do “pensamento operário” em sua oposição à “ciência dos patrões”.
O resultado final da empreitada, muitos anos depois, foi a glorificação do trabalho imaterial e da “classe do conhecimento”, levada à frente por Antonio Negri.
Resta ainda um desafio: como falar em “centralidade do trabalho” quando o processo de trabalho passou a ser comandado no capitalismo moderno pelo processo de produção? É correto ver a classe operária como um sujeito depois de Marx ter escrito nos Grundrisse que o valor se tornou o sujeito automático no capitalismo moderno?
Para dissipar equívocos, é necessário separar os planos: num primeiro momento, o trabalho e as demais formas de objetivação (arte, ciência), deram início ao processo de humanização e, desde então, acompanham a nossa história. A partir de certo momento, contudo, o processo sofreu um curto-circuito: a alienação e o fetichismo passaram a bloquear as possibilidades humanizadoras. Mas, apesar disso, o trabalho continua, mesmo em condições adversas, conduzindo o processo histórico, o “recuo das barreiras naturais”. Do mesmo modo, a arte verdadeira convive numa correlação de forças cada vez mais desfavorável com a arte alienada e comercial.
Tendo isso em vista, evita-se o apego à tese da “centralidade do trabalho”, de clara conotação antropológica, concebida como uma verdade indiscutível a ser reafirmada sem se levarem em conta as metamorfoses do trabalho submetido ao processo de produção.
Não custa lembrar que no silogismo dialético os termos estão interligados em seu ininterrupto movimento de transformação. No mais, trabalho é mediação, e mediação não é um ponto fixo, cristalizado, em que se possa apoiar confortavelmente no ofício da crítica. Hegel já advertia que “tudo é mediado”. Marx, por sua vez, foi muito claro ao apontar o perecimento do valor e a transformação do operário em “apêndice da máquina”. A tendência do capitalismo moderno, portanto, é a completa submissão do processo de trabalho ao processo de produção. Como fica, então, a “centralidade do trabalho”? Não há o que discutir quanto focamos o eterno metabolismo entre homem e natureza, mas apegar-se à tese da “centralidade do trabalho” como um dogma, conferir-lhe a dimensão de palavra de ordem na luta ideológica e transferi-la, sem mais, para o coração da indústria moderna só pode gerar mal-entendidos.
Afinal: o sujeito é a classe operária ou, ao contrário, estamos diante de um “sujeito automático”, o valor, que em seu férreo determinismo conduz o processo histórico?
A prudência desaconselha tomar partido diante de questões colocadas de modo unilateral. A classe operária, como objeto da exploração capitalista, pode rebelar-se e voltar-se contra ela buscando a emancipação. Nesse momento, quem era objeto torna-se um sujeito, pois sujeito é aquele que age sobre um objeto (e não um ente, uma essência, predestinado a realizar uma missão).
De modo semelhante, na outra ponta da explicação, o “sujeito automático” não é guiado pelo processo de racionalização-reificação, concebido como um continuum que progressivamente aprisionará a todos – explorados e exploradores – numa “jaula de aço”. Marx já advertia que o capitalismo é racional no interior da esfera produtiva, mas fora dela, no conjunto da vida social, reina a “anarquia da produção” e, diria Mészáros, a “lógica destrutiva”. Por isso, nos momentos de crise, as contradições tornam-se visíveis e a “mercadoria animada”, a classe operária, pode revoltar-se contra a exploração.
“Nossas esperanças estão nas contradições”, dizia Brecht; “o capital é a contradição em movimento”, escreveu Marx nos Grundrisse. O processo de reificação acentua-se, mas em seu interior habita e se debate a “mercadoria animada”, o negativo do capital. Contra o pessimismo da inteligência existe o otimismo da vontade e este sempre foi uma característica presente em toda a vida pública de José Paulo Netto.
Pessimismo à parte, Capitalismo e reificação, em 1981, foi um livro pioneiro ao tratar de um tema que, logo depois, traria tantas e frutíferas controvérsias. Hoje, continua sendo guia seguro para jovens e velhos leitores retomarem a matriz das controvérsias na tortuosa evolução do pensamento de Marx.
*Celso Frederico é professor aposentado e sênior da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Morula).
Este texto serviu de base para o posfácio do livro de José Paulo Netto, Capitalismo e reificação. São Paulo: Instituto Caio Prado Jr., 2015.
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