Por MÁRIO MAESTRI*
O identitarismo e a manipulação da história e das consciências
Há muito, acompanho os desmandos políticos-ideológicos do racialismo no Brasil. Primeiro tímidos, a seguir mais confiantes, hoje a rédeas-soltas. Portanto, esperava tudo e um pouco mais dessa vertente ideológico-conservadora. Mas a realidade supera sempre a imaginação. Tiraram-me o fôlego ao pintarem Marighella de preto, ao ser protagonizado no recente filme homônimo, de Wagner Moura, por um ator negro, Seu Jorge. E sufocaram a discussão sobre essa abnormidade propondo que Marighella não era branco, silenciando-se que não era também negro.
É de conhecimento geral que o revolucionário baiano era mulato, filho de pai italiano e mãe de ascendência africana. E o filho se orgulhava de ambas origens: “Descendo de italiano. Meu pai era operário, nascido em Ferrara. Chegara como imigrante a São Paulo e se trasladara à Bahia. Minha ascendência por linha materna procede de negros haussás (…).” (Brasil de Fato, SP, 4/11/2018.) A falsificação cinematográfica foi acolhida com protestos tímidos, sinalizando os atuais tristes tempos que nossa esquerda vive.
Não se cancelou do retrato de família apenas um pai branco, para propor negritude plena inexistente do personagem histórico biografado cinematograficamente. Por razões ideológicas, apagou-se um pai presente que, por sua origem social, política e nacional, ajuda a compreender a visão de mundo abraçada pelo combatente revolucionário. Um pai que teve, ele e sua família, no caso de Marighella, uma influência fortemente marcante.
Com a prestidigitação identitária, Carlos Marighella perdeu os vínculos que estabeleceu, através do pai, com as lutas históricas dos trabalhadores da cidade e do campo da rebelde Ferrara, na Emilia Romana, coração da Itália Vermelha, palco de duríssimos combates dos trabalhadores rurais e urbanos. Jamais saberemos a opinião de Marighella sobre essa operação. Possivelmente mandaria a fanculo os racialistas responsáveis pelo cancelamento do seu babbo Augusto!
Visão racista do mundo
A obliteração do pai italiano e a construção de uma arbitrária identidade afrodescendente plena apoiaram-se e expressaram, na telona, a operação racialista em curso no Brasil. Mutatis mutandis, trata-se do rebatimento dos insanos princípios da Inquisição ibérica, do nazismo alemão, do supremacismo estadunidense. Todos propunham que apenas “uma gota” de sangue judeu, cigano, africano cancelava a qualidade das demais ascendências. O indivíduo de sangue sujo não podia ser nobre, ser padre, escolher com quem casar e podia terminar na fogueira ou ser linchado.
No presente caso, incinera-se a rica ascendência político-ideológica que chegou a Marighella através do seu pai, ao serviço geral de abstração ideológica conservadora, a divisão racial bi-cromática do Brasil, em negros, explorados, e brancos, exploradores. Tratava-se, assim, de uma operação incontornável já que, para a visão racialista, Augusto Marighella, por ser branco, seria necessariamente um explorador ou, no mínimo, um privilegiado pelo racismo!
A metamorfose racialista arbitrária que, no frigir dos ovos, transformou Marighella em um homem negro, órfão de pai, filho apenas de mulher afro-descendente, se arrasta através de todo o filme, dando-lhe um perfil identitário, caído da cabeça iluminada dos roteiristas. As aberrações do roteiro não são “licenças artísticas”, liberdade do autor — no caso, o direto— diretor ao tratar artisticamente um tema histórico para melhor expressar sua essência.
O filme Lamarca, de 1994, de Sérgio Rezende, baseado no livro Lamarca, o capitão da guerrilha, com o desempenho magistral não apenas de Paulo Betti, é exemplo magnífico do recurso eventual à licença artística para registrar a tensão dos sucessos abordados. (EMILIANO & OLDACK, 2015.) Ao igual que Memórias do cárcere, película também incontornável, de dez anos antes, dirigida por Nélson Pereira dos Santos, com um magnífico Carlos Vereza no papel do prisioneiro Graciliano Ramos, apoiado no romance autobiográfico homônimo do nosso maior escrito. (RAMOS, 2008). Ambas películas foram produzidas quando da ofensiva do mundo do trabalho que antecedeu e precedeu o fim da Ditadura Militar (1964-1985).
Se Marighella entrasse como uma mera alegoria, em um filme sem preocupação com os fatos históricos, pouco interesse despertaria, devido a sua escassa qualidade artística. Mas não é o caso. Como os clássicos de Sérgio Rezende e Pereira dos Santos, a película também se propõe abordar artisticamente sucessos referencias do passado brasileiro, nesse caso, a fundação da Ação Libertadora Nacional e os últimos tempos de Marighell. (CAMACHO, 2018). E é dai que nasce o interesse, principalmente por parte de público nascido sobretudo após a morte do dirigente máximo daquela agrupação militarista, em 4 de novembro de 1969, há 52 anos.
A falta de compromisso com a essência dos sucessos, ao sugerir não apenas plasticamente Marighella como um quase Malcolm X brasileiro, e a ação da ALN como um bang-bang de esquerda, torna semi-ininteligíveis o momento histórico abordado, a visão de mundo do baiano e de sua organização. Esse viés ideológico-conservador, deseduca e não conscientiza.
Para discutirmos o sentido dessa operação, deixaremos uma análise mais circunstancial do filme para uma outra oportunidade e abordaremos o sentido político-ideológico do identitarismo negro, substrato dessa operação fílmica.
A racialização do Brasil
A historiografia conservadora definiu as ditas três raças formadoras da nacionalidade brasileira: lusitanos, africanos, nativos, e Gilberto Freyre propôs suas qualidades essenciais. Os portugueses nasceram para o mando mas eram pouco resistentes ao trabalho braçal nos Trópicos. Os indígenas, guerreiros e nômades, seriam imprestáveis ao esforço produtivo. “A enxada é que não se firmou nunca na mão do índio […]” (FREYRE, 2003, p. 160.). Os africanos eram tacanhos mas bons para a enxada. O esforço, mal repartido, das três raças teria aclimatado a cultura Ocidental no Novo Mundo, segundo o sociólogo brilhante e cabotino.
Desde os primórdios da colonização, por razões econômicas, sociais e demográficas, o Brasil conheceu enorme miscigenação, incomum em boa parte da América escravista. Ela ensejou multiplicidade de termos tentando apreender e classificar somaticamente os indivíduos, numa época em que a fotografia inexistia: negro claro, negro escuro, mulato claro, mulato escuro, pardo, moreno, cafuzo, cabra, caboclo, cariboca, mestiço, mameluco, sarará, zambo, tapuio, caburé, turco, marranos e por aí vai.
Nos anúncios de jornais de cativos e cativas fugidos, usavam-se aqueles designativos, seguidos de outros traços distintivos: altura, fala, sinais de castigos, etc. (GOMES, 1996). Quando da venda, não era universal a declaração precisa da cor e outras características pois interessava sobretudo a capacidade para o trabalho. Durante a guerra contra a República do Paraguai (1864-1870), nas listas dos abundantes desertores, a cor era também elemento distintivo, entrando agora nas descrições sobretudo os alemães das regiões coloniais do Rio Grande do Sul! A divisão bi-cromática branco-negro jamais foi funcional para fins objetivos e ideológicos.
A enorme população mestiça do Brasil ganhou ainda maior complexidade a partir da metade do século 19 e sobretudo após a Abolição, em 1888, quando acelerou a chegada de suíços; alemães variados; italianos, com destaque para os vênetos; galegos e outros espanhóis; poloneses; judeus; comunidades medio-orientais chamadas de turcos e libaneses; japoneses; nas últimas décadas, chineses de Taiwan e do continente; bolivianos, colombianos, venezuelanos, haitianos, cabo-verdianos, angolanos, senegalesas, nigerianos, etc. Uma imigração que se distribuiu em forma desigual através do Brasil.
Autodefinição
O IBGE pretende apreender esta enorme variedade de “cor” da população através do auto-enquadramento dos entrevistados em apenas cinco alternativas: branca, preta, parda, indígena ou amarela, com uma enorme imprecisão dos dados obtidos, não apenas devido à diversa valorização social das cores. No Brasil, um “indígena” é sobretudo quem vive em comunidades nativas, reservas, etc. Uma enorme população de origem nativa, sobretudo do Pará, Amazonas, etc., com baixa ou sem mestiçagem, define-se como branca e parda. Indivíduos tidos como pardos se autodeclaram brancos. Negros se propõem como pardos.
É enorme a distribuição das comunidades de variadas origens étnicos no Brasil, onde regem visões sociais diversas sobre as cores. O que é pardo e no limite negro em determinadas regiões dos Estados sulinos, pode e é comumente percebido como branco na Bahia e em outras regiões do Brasil. O status social de um indivíduo determina fortemente a avaliação comunitária de sua cor. Um mulato claro ou pardo rico é percebido como branco, já que a riqueza está associada comumente à cor branca. Porém, o ser branco não é condição suficiente para status social elevado.
Em 2019, o IBGE sintetizou o amalgama que propiciou da enorme complexidade epidérmica do país. Propôs, através da autodefinição, que 42,7% da população nacional seria branca, 46,8% parda, 9,4% preta e 1,1% amarela e indígena. Nessa rústica simplificação, salta aos olhos a subnotificação da autodefinição da população como amarela e indígena. Em Santa Catarina, os brancos seriam 88,1%; os pardos 9%, os negros, 2,7% e os indígenas 0,2%. A Bahia, com uma população de 63,4% de pardos, 20,3% de brancos e 17,7% de negros, teria apenas 0,6% de amarelos e 0,6% de indígenas. A Bahia é o estado da federação com maior proporção de negros, fortemente concentrada em Salvador. (IBGE, 2017.)
Soma arbitrária
Apesar dos levantamentos demográficos proporem, em forma aproximativa e rústica, que a população brasileira, como um todo, seja formada majoritariamente de pardos (46,8%), seguidos de brancos (42,7%) e, finalmente, de negros (9,4%), os ideólogos do identitarismo, passaram a definir o Brasil casuisticamente como tendo população majoritariamente negra-preta, ou seja, 54%! Essa estranha operação deu-se definindo como negros ou pretos todos aqueles que se auto-qualificaram como pardos e negros.
De multi-cromático, o Brasil passou, em um passe de mágica identitário, a limpidamente bi-cromático! O procedimento arbitrário foi apoiado sobretudo pelas administrações petistas, por instituições de Estado, com destaque para o IBGE, pela grande imprensa, pelo grande capital e pelo imperialismo estadunidense, origem dessas propostas. Ele foi aplaudido de pé por enorme parte da chamada esquerda brasileira, mesmo organizada, que se economizou a reflexão sobre a operação e seus sentidos, não raro por objetivos oportunistas.
A operação desrespeita a auto-definição da população, já constrangida pela camisa de força das cinco opções do IBGE, seguida pela manipulação binária. E, se ela é válida, no próximo senso demográfico deveria-se apresentar apenas duas alternativas: branco e preto. Ou, ainda melhor, “totalmente brancos” e “não-totalmente brancos”! Isso, enquanto os estudos genéticos sobre as etnias no Brasil apontam para uma enorme miscigenação que pode não estar registrada nas características somáticas. (FAPERGS, 2000.)
A rústica manipulação estatística da divisão racial binária escora-se em justificativa pretensamente progressista, porém perneta. E esconde, sobretudo, os objetivos político-ideológicos obscuros que o racialismo-identitarismo persegue com sua defesa e aparente naturalização de sociedade brasileira bi-cromática, ao serviço do conservadorismo. A justificativa para a adição de pardos e negros como pretos-negros é simplória, arbitrária e falsamente axiomática.
Para a interpretação racialista, o Brasil seria dominado desde sempre por totalmente brancos, detentores da riqueza e do poder, que exploraram no passado e seguem explorando no presente os não-brancos, servindo-se de uma racismo que agora se propõe que seja “estrutural”. Isto é, um elemento estruturante —permanente e não episódico, dominante e não subordinado— da organização e da opressão social. (MAESTRI, 2021. A) O mundo branco teria se servido no passado do racismo para uma super-exploração de negros e de pardos e hoje se serviria dele para impedir a progressão social dessas comunidades , mantendo o monopólio branco do poder e da riqueza. (MAESTRI, 2021.B)
Objetivos da falsificação
Propõe-se, como outra verdade fundante, que todas as comunidades não-totalmente-brancas seriam vítimas da mesma discriminação étnico-econômicas branca. Portanto, elas deveriam assumir-se como um só bloco étnico: a comunidade negra-preta brasileira. A bem da verdade, a compactação arbitrária —negros+pardos+não totalmente brancos— deveria dar-se em torno do termo “pardo”, majoritário. A proposta o bi-cromatismo brasileiro não surge da realidade social, mas de construção teórica discricionária e conservadora, de falsidade meridionalmente clara.
No Brasil, o poder e a riqueza sempre estiveram nas mãos dos detentores dos grandes meios de produção, nacionais e estrangeiros. Em geral, até recentemente, eles foram monopolizados sobretudo por euro-descendentes, puros e, comumente, menos puros. Desde a Colônia e o Império, houve uma minoria de escravistas afro-descendentes. E, no Brasil e alhures, os brancos —ou tidos como tais— donos da riqueza jamais tiveram pruridos em explorar brancos pobres. (LUNA, 1981.) Nos USA, nas Antilhas, etc., homens e mulheres brancos eram contratados, ou comprados, por um largo tempo de trabalho, por proprietários brancos, sendo tratados literalmente como escravos — indentured servants.
Os primeiros capitães-gerais iniciaram a exploração das donatárias com a população “miúda” lusitana, trazida do Reino. A alternativa falhou porque eram homens livres e preferiam viver como caboclos do que mourejar por uma cuia de farinha nos engenhos e roças do litoral. Não foram mais trazidos para a Colônia devido à resistência de venderem a força de trabalho por remuneração miserável, sendo substituídos por nativos e a seguir, africanos feitorizados. O sociólogo José de Sousa Martins formulou sinteticamente esta contradição: “Num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa.” (MARTINS, 1998.) Por mais que se horrorizem os identitários, a escravidão colonial nasceu por questões econômicas e sociais e não por opções étnico-raciais.
Há mais brancos explorados que negros
Sob a larga hegemonia da escravidão africana, sempre existiu população explorada branca e parda, no campo e na cidade, que se avolumou com o passar do século 19. (GORENDER, 2010.) No Brasil, hoje, quantitativamente, há mais brancos explorados do que negros, ainda que, devido ao menor número de negros em relação aos brancos, eles sejam proporcionalmente mais explorados. Há regiões sulinas em que europeus e euro-descendentes suportaram e suportam quase exclusivamente o peso da exploração pelo capital. E, se abraçarmos a proposta dos 54%, já há uma significativa parcela de negros-pretos entre os exploradores — 17%, em 2014. (UOL.economia. 4.12.2015.) Não há margem para a proposta de dominação da oposição de raça e não de classes no Brasil, com os “brancos” explorando os “negros”, como forma de organização da exploração no passado e no presente.
É outra falácia que o racismo se distribua em forma homogênea entre todos os brasileiros não completamente brancos. Em verdade, a aglutinação de “negros” e “pardos” em categoria unitária encobre o segmento populacional realmente objeto de discriminação racial. Jamais imperou no Brasil o princípio proposto de “uma gota de sangue”. No Passado, em Portugal, mesmo nas classes opulentas, um ancestral judeu, mouro ou africano impedia a ocupação de cargos eclesiásticos e outros, motivando pesquisas genealógicas sobre os ancestrais. (MAESTRI, 2006.) No Brasil Colonial, tão “sujo” era o sangue das classes dominantes em cristãos novos de judeus que a Coroa jamais permitiu que o “Tribunal do Santo Oficio” “se estabelecesse no Brasil”, agindo ele “sobre a colônia luso-americana através de visitações esporádicas, ou seja, temporárias e de caráter limitado”. (OLIVEIRA, 2008.) A Coroa portuguesa estava mais interessada nos impostos do açúcar do que no combate ao judaísmo. A ganância econômica se sobrepunha aos preconceitos raciais.
Sobre quem pesa o racismo?
O racismo pesa duramente em forma deletéria sobre a população mais pobre, em razão diretamente proporcional ao grau de ascendência africana e à baixa inserção social. Mesmo sendo extensa e diluída a ação deletéria do racismo, são os homens e as mulheres mais negros e mais marginalizados que mais sofrem o peso do racismo. Em estados do Brasil, as classes dominantes, a classe média, os intelectuais, etc. são em boa parte pardos, sendo tratados como brancos pelas ditas elites. Multidões de pardos e mulatos claros ocuparam, no passado, e ocupam, no presente, postos políticos de destaque.
Os exemplos históricos apresentados tradicionalmente de pardos e mulatos, sobretudo, que alcançaram alta distinção antes e nos anos seguintes à Abolição, são os presidentes Floriano Peixoto, Nilo Peçanha, o escritor Machado de Assis. Mas houve milhares como eles — senadores, ministros, banqueiros, latifundiários, advogados, compositores, artistas, etc. E, como membros das classes dominantes, eram socialmente tratados, em suas épocas, como brancos. Hamilton Mourão, de fortíssima ascendência nativa, é certamente visto pela população como branco e, jamais, como indígena e, jamais, como negro!
Nas passadas eleições, segundo os dados do TSE, dos mais de 5.400 candidatos a prefeito eleitos no primeiro turno, 1.700 se declaram pretos ou pardos — 32,1%. Dos mais de 57 mil vereadores eleitos, 54% se declararam brancos — os restantes 46% seriam não-brancos. E a possível sub-declaração de negros e pardos, que se declararam brancos, elevaria ainda essa participação. Faltaria não muito para uma correspondência perfeita entre o coeficiente de eleitos e de membros das comunidades não-brancas, ou seja, pardos somados a negros.
Portanto, segundo o identitarismo, teríamos no Brasil uma enorme quantidade de prefeitos e vereadores negros! Estaríamos muito longe da proposta hegemonia política branca! Prefeitos e vereadores pardos e negros sobretudo conservadores, despreocupados com as classes subalternizadas, de todas as cores! Entretanto, a proposta racialista, abraçada pelo STF, IBGE, grande mídia, etc. soterra a realidade objetiva : os candidatos que se declararam negros — e não pardos— foram apenas pouco menos de 11%. E, possivelmente, não foram eleitos na mesma proporção.
Quem sofre o racismo no Brasil?
É operação oportunista aproximar pardos quase brancos a homens e mulheres com forte ascendência africana, que realmente sofrem as duras sequelas do racismo. E sofrem respingos do racismo, mesmo quando pertencem às classes médias ricas e à própria burguesia. Por mais rico e conservador que seja, Pelé, rico e prestigiado, não deixa de conhecer a discriminação racial, certamente abafada, mesmo quando se esforça para negá-la.
É manipulação político-ideológica propor que alguém com três avós euro-descendentes e um afro-descendente seja negro. Tal proposta não apenas nega, não raro em forma retórica e ridícula, a percepção comunitária sobre a cor, como também oblitera arbitrariamente as raízes familiares e a carga cultural que elas comumente comportam, como no caso de Marighella, diga-se de passagem, registrado como “branco”. (MAGALHÃES, 2012, p. 45.) Negam a realidade objetiva, construindo fantasmagorias de raízes ideológicas.
São claras as razões da construção arbitrária de um Brasil bi-cromático, com de um lado os totalmente brancos, ou tidos em forma oportunista como tal, e do outro, todos os demais, definidos como negros ou pretos, por mais brancos que sejam. Essa operação divide o país entre exploradores brancos e explorados negros, sendo o mecanismo “estrutural” da opressão, não a classe, mas a raça. Proposta que horrorizaria Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, “Toledo”, já que era, quando viviam, defendida pelos ideólogos do imperialismo.
Melhorar a vida de alguns
A tese do confronto racial, entre brancos exploradores e negros explorados, abstrai a questão da propriedade privada dos meios de produção, controlados pelo capital, sem cor, o grande organizador da exploração social e de sua reprodução. Abandona a proposta de transformação estrutural da sociedade através da expropriação do grande capital aos seus detentores e sua socialização em favor dos explorados e da sociedade, pela proposta de melhorias relativas para facções da classe média negra, sobretudo, no contexto da ordem e da exploração capitalista. O racialismo é linha de defesa do capital no seio do movimento social.
O identitarismo liquida a reivindicação de melhorias gerais, no aqui e no agora, para a totalidade da população explorada, na qual tem importante destaque a comunidade negra. Reivindicação rejeitada pelo grande capital, que se esforça para confiscá-la, ali onde subsiste. Por essas razões, o identitarismo é apoiado fortemente, no mundo e no Brasil, por grandes corporações imperialistas, como Nike, Adidas, Twitter, Netflix, Citigroup, GloboPlay, YouTube.
A UBER empreendeu campanha anti-racista sem aliviar seus “parceiros” aguilhoados pelos aplicativos a jornadas de trabalho sem fim. A Magazine Luiza propôs seleção exclusiva de empregados negros sem aumentar um pila aos vendedores, brancos, pardos e negros super-explorados. A Globo abraça fortemente o programa de “empreendedorismo negro”, apresentando como o caminho do sucesso patrões negros — pisando logicamente em trabalhadores brancos e negros.
Em Racismo estrutural, livro racialista de sucesso, Sílvio Almeida é claro nesse sentido. Propõe modificações nas instituições vigentes, capitalistas, atribuindo “vantagens sociais a membros de grupos raciais historicamente discriminados”. (destacamos). No mesmo sentido, defende “políticas de ação afirmativa” para “aumentar a representatividade de minorias raciais”. (destacamos) Propõe, portanto, como programa, criar e aumentar uma elite negra, política, social e econômica, no contexto da permanência da ordem e da exploração capitalistas. (MAESTRI, 2021. A)
A política racialista, apesar de seu radicalismo verbal, esgota-se na reivindicação de políticas de “discriminação positiva”, para apenas poucos felizardos: a reserva em Universidades, concursos públicos, parlamento, etc. de alguns lugares cativos. Medida que não exige qualquer novo investimento ao governo do capital, que apenas redistribui investimentos já alocados — “cotas”. Sem qualquer avanço no que se refere às grandes classes trabalhadoras e marginalizadas negras.
Queremos também ser exploradores
Na esfera política, o racialismo e sua divisão bi-color da sociedade brasileira exigem a necessidade de equilibrar estatisticamente a representação de negros na política e no Estado. O que, paradoxalmente, como vimos, segundo a nova visão de negro, que agrega tudo que não for totalmente branco, está próxima de se realizar, sem que se tenha avançado socialmente um palmo, para não dizer mais. Já se propõe que, no Brasil dos anos 2030, se alcançará a proporcionalidade entre universitários “brancos” e “não absolutamente brancos”. Sem que, logicamente, a imensa maioria da população jovem negra, branca e parda brasileira tenha acesso à universidade, como acontece atualmente.
O objetivo do identitarismo negro é mais amplo e ambicioso. Organiza-se para criar separação de comunidades étnicas com seus representantes, como largamente impulsionada nos USA pelo imperialismo, devido à pretensa solidariedade entre explorados e exploradores de mesma etnia. Política que nega e combate a necessária solidariedade horizontal do mundo do trabalho, entre produtores e produtoras de todas as cores, contra seus reais inimigos — os detentores dos grandes meios de produção.
Na estratégia racialista de confronto de raça, os coletivos negros e os mandatos individuais negros apontam já para universidade, sindicatos, associações, clubes, e, quem sabe, algum dia, um partido negro. Um passo mais difícil de ser dado pois as grandes comunidades negras exploradas conhecem, ainda que em forma inconsciente, seus reais aliados. Um programa já esboçado pelas organizações de esquerda que propõem a eleição prioritariamente de negros, de feministas, de LGBT, etc., despreocupando-se em assentar raízes e promover lideranças classistas, de todas as cores. Ou seja, dão igualmente as costas ao mundo do trabalho, o único capaz de liderar o avanço social e a superação do impasse histórico em que nos encontramos.
*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Revolução e contra-revolução no Brasil: 1500-2019 (FCM Editora).
Agradecemos a leitura da linguista Florence Carboni
Referências
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EMILIANO, José e OLDACK, Miranda. Lamarca, o capitão da guerrilha. 18ª ed. São Paulo: Global,2015.
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