Racismo e eugenia

Imagem: Athena
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Por RAFAEL GALVÃO DE ALMEIDA*

O que não é discutido sobre a história do liberalismo

Ayn Rand foi uma pessoa que queria viver uma vida sem contradições. Se A é A, então contradições não devem existir. Se elas “existem”, então devemos checar as nossas premissas. Apesar disso, ela viveu uma vida com várias contradições. Afinal, ela é responsável pelas citações a seguir[i]:

“Se você acredita nos direitos e nas instituições da escravidão, é uma contradição enorme. É em favor da honra desse país, que os odiadores da América nunca mencionam, que pessoas deram a vida para abolir a escravidão”.

“[Os preconceitos] contra os negros estavam morrendo por causa da pressão da economia livre, porque o racismo, no sentido do preconceito não paga. Então, se alguém quiser ser racista, ele sofre, porque o funcionamento do sistema está contra ele”.

“Em relação aos índios, eu nem me importo em discutir esse tipo de alegações que eles têm contra esse país. Eu acredito com razões científicas e sérias que o pior tipo de filme que você verá – do pior ponto de vista do índio – é o que eles fizeram com o homem branco”.

“Qualquer pessoa branca que traz os elementos da civilização tinha o direito de conquistar esse continente e é ótimo que alguns deles o fizeram e que descobriram que não poderiam o fazer em nenhum lugar e que os índios, se existem índios racistas hoje, não acreditam até hoje: respeito por direitos individuais”.

Essas citações estavam no mesmo discurso, feito a oficiais militares da West Point Academy, em 1974. A lógica é clara: racismo = ruim, por ser uma violação dos direitos individuais; genocídio de povos que não se adequam ao capitalismo = bom. E não somente isso, mas as vítimas devem se considerar abençoadas por serem brutalizadas, pois os sobreviventes podem desfrutar as bênçãos do capitalismo e da propriedade privada.

O liberalismo de mercado de livre se preza por ser igualitário e que todos, independentemente de suas características raciais, sexuais e culturais, podem triunfar com trabalho duro. Essa é uma das mensagens principais de A revolta de Atlas.[ii] Então, à primeira vista, parece estranho que Rand tivesse tais ideias. À primeira vista é uma contradição que pode ser simplesmente explicada como Rand não tendo a mínima ideia do que é racismo de verdade. Porém, ela experimentou racismo por ser judia[iii], mas os seus livros tratam as culturas não europeias com desdém – enquanto que o narrador de A revolta de Atlas lamenta a opressão socialista sobre os povos europeus, o oriente é tratado de forma obscura e irrelevante, o Ganges não tem nada a não ser favelas e a soja oriental é maligna. Logo, é uma contradição com o pensamento liberal, certo?

Mas e se não for uma contradição?

Os institutos liberais e seus membros sempre venderam a narrativa de que o liberalismo de mercado livre é uma ferramenta fundamental na luta contra o racismo. Afinal, o dinheiro não tem cor. O racismo é uma preferência racional, que pode ser mudada com conhecimento das verdades liberais (mas não com cotas, porque elas só pioram o problema de acordo com eles). Qualquer acusação de racismo é rechaçada por minorias afiliadas ao liberalismo e também ao conservadorismo, enfatizando o papel do esforço individual e contra o “vitimismo”[iv]. Derrick Bell já observou o “princípio do posicionamento racial”, em que um negro liberal ou conservador que critica outros negros é repentinamente a autoridade mais qualificada para falar sobre o assunto, ignorando debates profundos na comunidade negras, fazendo com todos os que não concordam com eles são ideólogos do verdadeiro racismo[v].

O caso de Ayn Rand é singular. Apesar de suas novelas serem bastante recomendadas por liberais, suas ideias mais “politicamente incorretas” muitas vezes são convenientemente deixadas de lado ou até mesmo rechaçadas. Mas as ideias de Ayn Rand, de supremacia da cultura branca ocidental e da necessidade de se ignorar os direitos dos povos “não-civilizados” foram prevalentes na cultura liberais por um bom tempo.

Um livro que chama a atenção a isso é Liberalismo: uma contra-história, de Domenico Losurdo. Publicado em 2011, o livro é fruto de anos de pesquisa do filósofo marxista italiano. Ele demonstra usando uma quantidade enorme de fontes primárias como que os autores fundadores do liberalismo viam o sistema liberal como restrito apenas a uma elite iluminada.

Se tomarmos o liberalismo como “a tradição de pensamento dos quais cuja preocupação central é a liberdade do indivíduo”, Losurdo abre o livro comentando sobre John C. Calhoun, um pensador americano do século XIX que é tratado até hoje[vi] como um defensor da liberdade individual contra qualquer forma de tirania e absolutismo. Porém, ele defendia a escravidão como um direito divino e critica os abolicionistas por serem iludidos. Calhoun não está sozinho nessa aparente contradição, envolvendo nomes importantes do liberalismo, como Hugo Grotius, John Locke, Alexis de Tocqueville, Lord Acton, John Stuart Mill, entre tantos outros. Entre um governo despótico que abole a escravidão e um governo democrático que a aceita, a doutrina liberal clássica sempre preferiu a segunda opção.

Assim, os liberais clássicos sempre defenderam que as liberdades políticas são absolutas apenas para uma elite iluminada, que era invariavelmente branca, com origem na Europa Ocidental. Se nem mesmo os trabalhadores brancos mais pobres tinham direito a essa liberdade, o que diria dos negros e povos não-europeus? Losurdo, na seção 7 do capítulo 4, mostra que enquanto que os ingleses se gabavam do seu sistema liberal, enquanto que impunham uma ditadura com o objetivo de explorar os irlandeses e destruir a cultura gaélica do outro lado do mar da Irlanda.

Losurdo é ignorado em círculos econômicos. Só fui descobrir que existe uma tradução em português deste livro só para fazer esse artigo[vii]. Eu tenho um passatempo de garimpar citações no Google Scholar e, das mais de 650 citações em julho de 2021, menos de dez são feitas por economistas. Losurdo, porém, não escrevia em periódicos de economia ou história da economia. Mesmo assim, poucos historiadores e economistas que lidam com esses temas prestam atenção a ele, especialmente na história do liberalismo, pois muitos economistas liberais adotam uma visão pristina de sua própria história.

Na minha tese de doutorado, estudei sobre a história do movimento da escolha pública, que defendia o uso das ferramentas econômicas para analisar a política. Muita ênfase é dada pelos historiadores da escolha pública – que tendem a ser simpatizantes desta – em demonstrar que ela defende a liberdade individual. Portanto, quando Nancy MacLean publicou Democracy in Chains[viii], ela causou celeuma por ser forasteira à história da economia. Ela foi bastante criticada por apoiadores da escolha pública por retratar um dos seus fundadores, James Buchanan, como menos que um herói. Ela tocou o dedo na ferida ao demonstrar o quão indulgente a escolha pública é com sua história. Um artigo retrata Gordon Tullock, um dos fundadores da disciplina, cujas tendências racistas são expostas por MacLean, como a segunda vinda de Cristo numa luta contra os traidores da América: comunistas, o partido democrata e a Fundação Ford[ix]. E esse artigo foi publicado na Public Choice, que é uma revista muito conceituada.

Mas se engana quem considera isso ainda não está presente no subtexto dos debates econômicos. Quinn Slobodian, em Globalist: The end of empire and the birth of neoliberalism[x], mostra como o que se entende por neoliberalismo hoje tem suas origens no pensamento de autores nostálgicos pelo Império Habsburgo e usaram o seu modelo de “democracia racial” para propor uma nova ordem mundial, onde o capital impera e os mercados internacionais são preservados. Investidores ganham mais direitos que os cidadãos de um país, que muitas vezes são tratados como cidadãos de segunda classe.

A necessidade de se manter um ambiente de negócios é mais importante do que respeitar os direitos humanos de povos “não-iluminados”. Exemplo mais claro é o debate sobre o apartheid sul-africano. Wilhelm Röpke defendeu o apartheid por motivos econômicos e racistas – o que é chocante já que ele deixou a Alemanha por causa do nazismo na década de 1930. Outros economistas, como William Hutt, Milton Friedman, entre outros, condenavam o racismo do apartheid, mas não sua economia. Pelo contrário, eles criticavam a comunidade internacional pelas sanções e eram contra os movimentos negros anti-apartheid porque eles apenas inverteriam a lógica, em que os brancos seriam perseguidos. Assim, para manter a ordem, os negros deveriam continuar a ser oprimidos até que a elite branca sul-africana julgasse economicamente viável estender direitos aos negros. É irônico que forças conservadoras se insurjam contra o globalismo, sendo que os primeiros globalistas foram os liberais.

Então porque se engajar com esse tipo de análise crítica da história do liberalismo? A economia ainda não aborda muito esses problemas de sua história. Thomas Leonard, em Illiberal Reformers: Race, Eugenics, and American Economics in the Progressive Era[xi], demonstra que o racismo e a eugenia estavam presentes na raiz do pensamento de vários economistas americanos. Uma resenha publicada no periódico Oeconomia[xii]comenta que pouco do que Leonard escreveu é novo para historiadores; só é novo para economistas porque esses assuntos são pouco discutidos em economia.

Pouquíssimos autores do passado estavam livres de preconceito e muitos que eram considerados progressistas (ou até traidores da raça dominante) para época, não seriam hoje. Os livros citados acima demonstram que racismo e eugenia eram algo que tanto intervencionistas quanto defensores do mercado livre tinham em comum. Institutos liberais e conservadores têm páginas e páginas de exemplos da “hipocrisia” da esquerda. Derrick Bell estava errado ao negar que o grupo Nação do Islã era antissemita[xiii], e isso é algo que é explorado por seus críticos, assim como as supostas simpatias de Losurdo por Stalin.

Isso deve ser engajado porque é parte das nossas vidas. Ao negar o caráter estrutural do racismo, focando-se apenas no individualismo, o liberalismo absolve a si mesmo de qualquer problema que tenha causado. E não somente isso, o liberalismo constrói para si uma narrativa de história pristina contra a história “imunda” dos seus oponentes. O papel dos movimentos sociais é apagado ao retratar os direitos sociais como um “presente” do capitalismo e do mercado livre. Mencionei que Bell estava errado, mas eu não acho que ele estava errado em se recusar a condenar eles só para agradar seus críticos, que não se importavam nem com negros ou com judeus.

Como um ex-liberal, perceber isso foi uma das várias coisas que me afastaram do liberalismo. Eu me considerava afiliado à Escola Austríaca, mas com o tempo fico percebendo o elitismo sutil, mas profundo do liberalismo em geral. O único indivíduo que importa no esquema liberal é o empreendedor. O resto… não é importante. É apenas o insumo “trabalho” numa função de produção. Se o “resto” quiser contestar o sistema, ele deve ser reprimido. O trabalhador não pode reclamar, ele tem que calar a boca, trabalhar e receber seu salário para mover a economia. Ele não tem direito real aos direitos anunciados do liberalismo.

Essa é uma representação curta, talvez curta demais, mas é também uma parte pessoal do artigo. Ainda assim, Losurdo, Slobodian, entre outros escreveram sobre isso, com pesquisa científica, a fim de demonstrar que não vale a pena tentar criar uma narrativa pristina do passado – narrativa que é constantemente puxada para defender uma suposta superioridade moral do liberalismo e do mercado livre, que no fundo continua com os mesmos problemas. Como Jesus respondeu aos fariseus: “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês edificam os túmulos dos profetas e adornam os monumentos dos justos. E dizem: ‘Se tivéssemos vivido no tempo dos nossos antepassados, não teríamos tomado parte com eles no derramamento do sangue dos profetas’. Assim, vocês testemunham contra si mesmos que são descendentes dos que assassinaram os profetas” (Mateus 23:29-31).

Mas não quero impedir ninguém de ler eles. Pelo contrário, a leitura de alguns autores conservadores e liberais como Russell Kirk ou Hayek pode dar novos insights ao leitor de esquerda. Mas eu também defendo que eles devem ser analisados criticamente e serem mais honestos a respeito de seus vieses e agendas, e não se esconderem atrás de narrativas pristinas. Essas narrativas ainda estão no discurso atual – o grande exemplo recente é a política do governo Bolsonaro de exploração da Amazônia, em que os direitos dos índios devem esmagados em favor do agronegócio e eles deveria ser gratos por isso. A menos que haja crítica e reconstrução das ideias liberais, as duas afirmações de Ayn Rand acima não serão contraditórias e o liberalismo continuará cego a seus próprios problemas.

*Rafael Galvão de Almeida é doutor em economia pela UFMG.

Notas


[i] Ver um transcrito em “Libertarian superstar Ayn Rand defended Native American genocide: ‘Racism didn’t exist in this country until the liberals brought it up’”, Ben Norton, Salon, 2015. https://www.salon.com/2015/10/14/libertarian_superstar_ayn_rand_defended_genocide_of_savage_native_americans/.

[ii] Ver meus comentários em https://aterraeredonda.com.br/a-revolta-de-atlas/.

[iii] Na biografia escrita por Jennifer Burns (Oxford University Press, 2009), ela relata alguns eventos nos quais Rand experimentou antissemitismo, levando à atritos com Rosalie Wilson e Isabel Paterson.

[iv] “Como funciona a lógica bolsonarista de colocar negros a favor do seu discurso”, Maria Carolina Trevisan, UOL. https://noticias.uol.com.br/colunas/maria-carolina-trevisan/2021/07/16/bolsonarismo-negro.htm.

[v] “The law of racial standing”, Derrick Bell, Yale Journal of Law and Liberation, 1991. https://digitalcommons.law.yale.edu/yjll/vol2/iss1/12/.

[vi] Ver, por exemplo, “The public choice theory of John C. Calhoun”, Alexander Tabarrok e Tyler Cowen, Journal of Institutional and Theoretical Economics, 1992. https://www.jstor.org/stable/40751557.

[vii] Eu li a versão em inglês para esse texto, publicada pela Verso. A versão em português é publicada pela editora Ideias e Letras. Ver a resenha “Liberalismo versus democracia social”, Alfredo Bosi, Estudos Avançados, 2007. https://www.scielo.br/j/ea/a/XQhy7TQ8mHHQNhbBH8LQZhF/?lang=pt

[viii] Penguin, 2017.

[ix] “The life and times of Gordon Tullock”, Charles Rowley e Daniel Houser, Public Choice, 2012. https://link.springer.com/article/10.1007/s11127-011-9899-3

[x] Harvard University Press, 2018.

[xi] Princeton University Press, 2016.

[xii] “Race in the history of economic thought: the missing narratives?”, Cléo Chassonery-Zaïgouche, Oeconomia, 2020. https://journals.openedition.org/oeconomia/8158?lang=en.

[xiii] Sobre o antissemitismo virulento da Nação do Islã, ver o perfil no site da Anti-Defamation League https://www.adl.org/resources/profiles/the-nation-of-islam.

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