Alargamento da paisagem

Wassily Kandinsky, Beach Baskets In Holland, 1904.
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Por PRISCILA FIGUEIREDO*

Seis poemas

ACOMPANHEM MEU RACIOCÍNIO

Você me apareceu em sonho
essa frase deve ser remotíssima
nos irmanando a gregos fenícios
babilônios egípcios sumérios
cristãos, à gente
da Idade Média, Moderna, a Hamlet!
Todos creio, a usavam, ainda mesmo a usamos,
sabendo ou não sabendo de Freud,
sejam os forasteiros neste nosso albergue
bem vivos ou mortos.
Vira e mexe acontece
de uma hora cedermos a esse lapso poético
ou, porque seja isso no fundo, ao desejo
de visitar e ser visitado
ou visitar um filho lá, outro acolá
em outra parte dormindo.

Mas não é
que nos dividimos, uma parte de nós viaja,
a outra fica em casa — não é:
cada um agora é como um deus monoteísta,
em toda parte presente, mas em tudo indiviso,
e isso fica claro quando os relatos coincidem:
“Edna me aparecia em sonho esta noite”,
“Não diga! Aparecia pra mim também!”.
E rimos um pouco por saber que então formamos
uma comunidade trina e secreta
ou uma espécie de valor para Edna.

Não ouso, porém, perguntar
o que ela fazia em seu sonho
nem meu amigo pergunta isso a mim;
gostamos de pensar que Edna andou
passeando, ou pulou
de um momento pra outro
de um sonho pra outro, ou então
pulou no mesmo instante nos dois,
quiçá em outros mais.

(Com os animais de nossa afeição
não é hábito nos expressar desse modo, dizer
“Catito me surgiu hoje em sonho” não dizemos…
ou dizemos? Mas disso não devemos
fazer caso agora.)

Há uma espécie de felicidade por esse
alargamento da paisagem,
onde agora entram,
não importa se falha um pouco a imagem,
os de fora do quadro na vigília — fosse por morte
ou por coisas mesmo da vida. Penetram até
nossos inimigos,
e então é quando voltamos muitas vezes
a ser amigos.

E daí que no divã se venha a esclarecer
como Maria ou Edna ou o vendeiro da esquina
não são eles por si mesmos, mas falam mesmo de você?
Que importa?
Então por que me espantava comigo
passeando em seu sonho aqui e no sonho de um
amigo de lá,
eu passando por São Paulo,
mas também pelo Amapá, por quê?

Há o problema, claro, dos decididamente
indesejáveis, como as publicidades,

……………………………………………e há o caso de um neste país que, ao mesmo tempo ou quase,
……………………………………………passeia pela cabeça de inúmeros sonhantes, inclusive de
……………………………………………sonhantes insones.

Infelizmente
não podemos dizer que sejam réplicas
desse um na cabeça de cada um,
tampouco não seja
onipresente e indivisível,
como aos demais temos visto por nosso critério
poético e antigo;
ou mesmo que aparecendo muito se erode
a presença dele maciça e distribuída —
quantos milhares num só dia não dizem:
“Sonhei com Ele”, “Eu também
outro dia!”, “Eu também…”,

“Até ontem isso não tinha acontecido,
mas num cochilo apareceu ele, o demônio,
com sua risada maligna,
o seu pescoço de réptil”?
Essa forma,
esperançosa e amável, que empolgava
agora dá calafrio —
mas nesse caso usá-la comprova
ainda mais meu raciocínio.

 

ELE TINHA TELHADO de vidro:
Já entenderam então o que isso implicava —
uma pedra maior que lhe jogassem,
e ele estava ferrado.
A exposição era constante, mas aos poucos
ele compreendeu que era este seu destino.
Por enquanto jogavam-lhe só pedrinhas,
ou enchiam as mãos do granizo adormecido
pra atirar em cima de novo; as crianças
se acocoravam sobre a vidraça,
dando petelecos em bolas de gude,
jogando truco, ou então
gargalhavam olhando pra sua cara —
por que não pulavam pra quebrar de uma vez tudo?

Iam crescendo maldosas como os pais,
e muitos eram os que capitulavam, deixando
freios morais de lado,
estendendo o tempo do medo no homem que ficava
só embaixo
de olho vidrado
tanto quanto a audiência lá em cima.
Colaram-lhe um epíteto, “o peixe de vidro”,
e a expressão devia condensar a ideia
de que a casa fosse um aquário,
ou as telhas as escamas de um peixe.

O hábito nem por isso lhe diminuiu o medo;
mais gente ajuntava, montando barracas
nas proximidades, revezando-se entre si
pra trepar na claraboia, colando o rosto
entre os caixilhos, fazendo gestos indecorosos
com a mão, soltando frases sinistras.
Tinha ideia fixa como a plateia —
quando esta daria o passo
para o Grande Acontecimento?
Decerto preferiam tê-lo sob controle
para se divertirem mais um pouco.
Ainda assim ele dormia
e fazia sentinela, com um olho
aberto sob o teto que a qualquer hora
despencaria.

O resumo foi: ele mesmo com o tempo
ia ficando translúcido e quebradiço,
já não comia nem trabalhava,
e seus ossos vieram a se partir
antes mesmo do vidro.
Quanto ao destino da multidão,
não souberam me dizer, então imaginei:
depois da decepção e da raiva, ela deve
ter ficado entediada,
mas não demorou muito e logo alguém
veio avisar: “Ei!, achei outro
telhado de vidro!”.

 

GEMA

Estou bem deste jeito, quieta,
por mim não movo um milímetro;
com cuidado fui aqui deitada,
assim fiquei, não me esparramei,
não tomei espaço. Aviso: a rispidez
altera para sempre o meu estado.

Fizeram-me escorregar pra fora
da casca protetora e porosa —
ao menos me desembaracei
de desvelos viscosos,
da túnica inconsútil de albumina.
Tiveram dúvidas se eu, espécie
de vitelo amarelo, parava em pé;
mas não berrei; silenciosa, sobrevivi,
também à diferença térmica.

Preciso me concentrar, juntar
toda minha força centrípeta.
Sou delicada, mas sólida e atenta;
às vezes tremulo,
e isso é sinal de frescor.
Garanto que entre minha superfície e meu interior
não há surpresas
mas não pague para ver —
minha película, também cordão de segurança,
me protege do entorno, o protege de mim.

Uma vez rompida,
me derramo e impregno com um cheiro nauseante
as coisas, forço meu domínio.
Deverão vir
os solavancos do acaso e da maldade,
ou me espetarão pra ver se sangro —
agora tenho a cor do ouro e a palpitação da vida,
agora sou melhor o que me caracteriza, sou
apenas concentrada.

 

A PREGUIÇA pode ser uma virtude,
sempre achei isso —
no entanto era ainda feio divulgar.
Agora conto com a autoridade
de Kurt von Hammerstein.
Virtuoso
oficial prussiano, aristocrata e obstinado
em salvar o homem do homem,
fazia boa ideia da preguiça,
para ele uma virtude.
Então vou logo aproveitar —
malandro tem menos crédito
que prussiano e militar.

Deixa disso, vem cá!
Jura? tenho mesmo de ir matar?
Acordou tarde, faltou à reunião
na qual se planejaram crimes.
Não matou a família,
foi direto ao cinema.
Por preguiça
nem lhe ocorreu linchar.

Como vender melhor o produto?
Já não tá bom assim?
Dá trabalho enganar… enganar
sempre pede upgrade;
carreira
pede upgrade,
provento não cochila!
Tecnologia
tem mania de inovar!
Império se ficar parado
deixa de imperar.
Nada disso está em paz consigo ou diz:
“Chega, tá bom! Que bonito está assim”.

Preguiça, mas também cansaço,
seu primo, cruza os braços:
ah não, não vou fazer tudo bem feito!
Tem coisa que é melhor não fazer
bem feito. Tem coisa que dá medo
de fazer bem feito.
Que decepção, a gente trabalha
pra vida piorar.

Tenho eu lá tempo pra intriga?
Fico dormindo; logo
aproveito melhor o meu tempo.
“Gaste assim quando morrer,
vai dormir sem acordar — será
uma delícia! ninguém pra importunar”.
Mas dormir não é morrer,
dormir é dormir e acordar —
morto não sonha nem tem prazer,
morto não sabe
o prazer que é sonhar…

“Como ela é tão mais bonita que eu!
Paciência, acontece!”
“Vinde a mim os vagabundos,
assim também as vagabundas,
que todos estes viverão nos céus”.
“Quer que eu lhe dê um reino na Terra?”, perguntou
Satã a Jesus no deserto.
“Ah, pensou este,
que pedreira, já tenho um reino lá em cima,
e quando subir pra lá, terei a ajuda de dois,
exigirei a regência trina”.

Satã é insistente, não dorme,
tenta, atenta, cheio de intento;
Satã não se aquieta, toda hora
faz aposta.
Imperativo pró-ativo workaholic,
demônio cheio de metas.
Sossega o facho, Satã! Relaxa — tu
é muito diligente.

 

A MORTE CANSADA

fincou na terra a lâmina recurva
do seu instrumento
e descansa as mãos e o queixo
sobre o cabo agora.
Ela
a quem não deteve
nem o pavor do filho de Deus
em sua inconcebível solidão —
categórica e imperativa
incontornável
incompreensível
em dias como hoje porém
estaca, solta um suspiro discreto
(sabe que tudo que faz é sinal)
e começa a caçar
com uma foice imaginária
uma luz, uma possibilidade:

quem
a poderia substituir por algumas horas?
quem, o quê?
um coveiro se substitui
um enfermeiro
o vigia do velório
um operador da Bolsa
ou de um reator atômico
uma hora
cada um desses se substitui
mas não a ela
única em seu gênero,

a Indesejada das gentes
a de que se evita falar
como do demônio e do desemprego,
a que se julga espantar
com três toques solenes na madeira,
imaginada sempre à espreita —
“Nunca se sabe o dia de amanhã!”.

A origem
da humildade
da filosofia e da história
às vezes da discórdia
como do amor;
a rainha da noite
e de todas as castas —
a ela rendemos preito
querendo ou não querendo
sabendo ou não sabendo…

Eis que volta a empunhar a foice
gancheada como sua mão;
é grande senhora,
mas afinal desconhece o descanso —
ou será o orgulho de seu
incomparável poder
que lhe dá a energia de uma usina?
(Suas cogitações de há pouco,
inconclusas, já se dissiparam.)

 

COUP DE FOUDRE

Por que você achou que eu era assim?
Estava sentada,
a máscara colada à cara
os olhos detrás dos óculos
tantos grampos
cobrindo o cabelo sujo
sujo de dias, não devia dizer
ainda estava de roupas largas.

Você me vê bem agora
mas vê porque arriscou e achou
que me viu aquela hora —
por que você achou que me viu
naquela hora?
eu só disse: já vou sair
eu não tinha meios de dar
um sinal mínimo, um índice
nada me tornava visível:
“à primeira vista“? — só rindo.

Será que meu olhar de fundo
corroeu camadas como um ácido?
ou foi a cauda de um músculo na cara
as pontas de um U perto do aro
de quando eu sorri por dentro?
(as lentes embaçaram de vapor
isso se viu bem);

mas por mim tudo que eu era
era aquilo, antes e depois
das três palavras.
Eu estava como atrás da porta —
e você foi achar
que era justo aquela porta.

*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).

 

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