Por EDUARDO BORGES*
O conflito afegão não é um tema para incautos e amadores
O grupo Talibã voltou a povoar os corações e mentes da imprensa brasileira. Uma plêiade de “especialistas”, boa parte deles devidamente imbuídos de adequar suas respectivas “análises” ao nosso momento político, apresentam versões do fato sem levar em conta toda a complexidade histórica que envolve este evento. As análises muito pouco conseguem alcançar a amplitude teórica e conceitual que envolve a crise política e social de uma região do mundo cuja histórica formação social não se deu com base em valores e ações presentes no conceito de evolução histórica do mundo ocidental.
O entendimento da complexidade que caracteriza o atual conflito afegão deve, necessariamente, partir da compreensão de sua importância geopolítica na região. Formado por cadeias de montanhas o território afegão não é presa fácil para seus invasores que o diga Alexandre Magno no século IV a.C. No interior das relações políticas e econômicas da Ásia o Afeganistão se firmou como ponto estratégico de rotas comerciais no continente. Suas fronteiras também colaboraram para colocá-lo em constante condição de vulnerabilidade na medida em que teve que lidar permanentemente com vizinhos do quilate do Paquistão e seu arsenal nuclear, da Índia, da China e do Irã, país que teria sobre ele impacto direto em termos religiosos e culturais.
Tudo isto fez do Afeganistão um dos territórios mais invadidos da história. Desde Alexandre Magno no século IV a.C., a região sofreria invasão dos árabes durante a dinastia Abássida e dos mongóis sob Genghis Khan. Nos séculos XIX e XX foi a vez do imperialismo inglês colocar suas garras na região através da Índia, na época território britânico. No final dos anos setenta do século XX, em plena Guerra Fria, coube à União Soviética implementar a primeira grande investida imperialista sobre o Paquistão em tempos modernos.
A invasão soviética redesenhou as relações políticas das duas potencias mundiais (URSS e EUA) na região e estabeleceu o ponto de partida das inúmeras investidas equivocadas do imperialismo americano. É impossível debater o Talibã, sem compreender primeiro as ações do imperialismo americano em meio à disputa da hegemonia política e econômica mundial. Não obstante a condenável ação soviética sobre o Afeganistão, não cabia aos EUA se aproveitar oportunisticamente para fincar seus pés no país. Aqui resgatamos o conceito de autodeterminação dos povos que geralmente é estrategicamente esquecido pelos tendenciosos analistas de plantão. Na ânsia de afastar os soviéticos, os americanos não se furtaram em colocar em prática aquilo que eles mais sabem fazer em termos de relações internacionais: armar e treinar seus futuros inimigos. O maquiavelismo de que os fins justificam os meios é frase estampada em todos os escritórios da CIA pelo mundo.
No tempo da invasão soviética a CIA abriu os cofres para os radicais islâmicos, os mujahidins, canalizando suas ações contra o invasor. Por tabela, acabou ajudando, mesmo que indiretamente, a um sujeito chamado Osama Bin Laden que buscava se firmar como liderança na região. Osama tinha muito boas relações com o líder mujahidins Jalaluddin Haqqani. É neste contexto que o Talibã se firma como combatente aliado dos americanos se beneficiando da enxurrada de dólares derramado na “Guerra Justa” dos jihadistas afegãos. No mesmo período, em 1980, a revolução islâmica acontecida no Irã sob a liderança do aiatolá Khomeini, e que derrubou o Xá Reza Pahlevi (aliado dos EUA), faria os americanos armarem um político iraquiano que se firmava como grande liderança local, seu nome: Saddam Hussein. O que vem em seguida é história.
Uma das consequências do apoio americano ao Talibã, que também é negligenciado pelos analistas atuais, foi a afirmação do fundamentalismo islâmico como base moral da sociedade. Naquele momento, para os americanos, isto era o que menos importava. Em 1977 através da chamada “Operação Fair Play” o Chefe do Estado Maior do Paquistão General Muhammad Zia-ul-Haq desencadeou um golpe de estado e assumiu o poder no país. O governo de Zia-ul-Haq foi extremamente violento contra a oposição, impôs um regime de terror baseado no fundamentalismo islâmico e aliado a grupos também fundamentalistas como o Talibã, todos eles devidamente encorpados com os dólares do tio Sam. Quanto à posição do “mundo livre” em relação à ditadura de Zia-ul-Haq, não enxergou grandes problemas, desde que ele fizesse o trabalho sujo contra os soviéticos continuaria sendo agraciado com ajuda econômica.
Entre os grupos fundamentalistas que se formaram no contexto da disputa entre americanos e soviéticos o Talibã, que significa “estudantes”, se firmou como o mais poderoso depois de anos de disputas internas entre as diversas facções étnicas paquistanesas. Em 1996, sob a liderança de Mahammed Omar, o Talibã chegou ao poder estabelecendo o Emirado Islâmico do Afeganistão. Iniciou um processo de imposição de poder com base em rígidas normas de condutas morais e apesar de contar, inicialmente, com algum apoio popular, foram se desgastando na medida em que impunham ações violentas contra os direitos humanos e supressão de liberdades. As mulheres foram as que mais sofreram sendo proibidas de frequentar a escola ou trabalhar fora de casa.
É certo que a partir de 1996, quando as ações condenáveis do talibã contra a população afegã ganharam o mundo, o grupo teve que conviver com fortes reações internacionais. Em 1997 Osama Bin Laden firmou seu centro de comando em Kandahar vinculando-se definitivamente ao Afeganistão. Para os EUA, os ex-aliados tinham se transformados em perigosos terroristas. Mas ainda faltava um pavio curto para iniciar o incêndio e ele veio em 11 de setembro de 2001.
O maior atentado da história americana exigia rapidamente que se encontrasse o responsável. À rede Al Qaeda, liderada por Osama Bim Laden, foi atribuída a responsabilidade pelo atentado. Osama atuava desde o Afeganistão e sua conexão com o Talibã foi imediata. Para os EUA, derrubar Osama passava por derrubar o Talibã e consequentemente invadir o Paquistão. Em outubro de 2001 uma coalizão militar liderada pelos Estados Unidos da América invadiu o Afeganistão e botou para correr as lideranças do talibã, entre eles o próprio Mohammed Omar, o país passaria ao controle americano em dezembro deste mesmo ano. Assim começava a saga de americanos e Talibãs pelos últimos vinte anos.
Entre 2001 e 2021 o mundo acompanhou de perto esta saga que se mostrou sangrenta e violenta para a população do Afeganistão. A guerra não foi diferente para milhares de jovens americanos que tiveram suas vidas físicas e psicológicas destruídas de forma cruel. O Talibã, afastado do poder, nunca esteve verdadeiramente abatido. Manteve-se na ativa desempenhando o que mais sabe fazer, usar a geografia do país para impor sua guerra de guerrilha entre as montanhas. A um custo de US$ 2 trilhões a presença americana não só não cumpriu com seus objetivos ditos democráticos como desencadeou a morte de milhares de civis e destruiu o futuro de milhões de pessoas. Em 2012, o Talibã seguia tentando fragilizar a presença ocidental na região e promoveu um ato que marcou os anos de conflito. A estudante Malala Yousafzai sofreu um atentado no Paquistão ao denunciar à imprensa internacional a violência causada pelo Talibã na região. Malala sobreviveu e recebeu o prêmio Nobel da Paz.
A presença ocidental no Afeganistão somente serviu para demonstrar a incompetência de militares americanos e britânicos em termos de análises de médio e longo prazo. Não aprenderam com o passado (vide Alexandre Magno) e negligenciaram a experiência de guerrilha do Talibã e o conhecimento do terreno inóspito. Uma guerra como esta até teria uma causa inicial, mas, definitivamente, era impossível saber somo se daria o final. O imperialismo ocidental foi completamente arrogante e hoje, passados vinte anos, paga o preço. Entraram em uma guerra “sem fim” contra um inimigo cujos limites não são pautados pela lógica das limitações e das fraquezas ocidentais. Queriam combater o terrorismo, mas só o ampliaram.
A “vitoriosa” invasão ocidental no Afeganistão foi a grande ilusão bélica do século XXI. O Estado colocado no lugar pelos invasores não conseguiu se estabelecer com o mínimo de respaldo popular. A corrupção manteve-se mediando as relações de poder e a violência transformou-se em ação do cotidiano. O capitalismo imperialista americano, sempre muito arrogante, se mostrou débil e incompetente. Novos atores como China, Rússia e Irã, buscam se aproximar do conflito e se beneficiarem política e economicamente da tragédia humana vivenciada pelo país. Em meio a este conflito de “abutres” sofre passivamente a classe trabalhadora paquistanesa. É o sistema-mundo capitalista reorganizando suas posições entre o centro e a periferia do sistema.
Quando em 29 de fevereiro de 2020, sob o governo de Donald Trump, houve o aperto de mãos entre Abdul Ghani Baradar, líder da delegação do Talibã, e Zalmay Khalilzad, enviado dos EUA para a paz no Afeganistão a guerra iniciada em 2001, como uma ação cirúrgica e competente dos EUA, chegava ao fim de maneira melancólica para o imperialismo americano. Para as relações internacionais, um novo mundo se abriu em termos de ações intervencionistas entre estados soberanos. O agora fugitivo presidente afegão Ashraf Ghani não participou da “festa” em Doha, no Catar, em fevereiro de 2020. O imperialismo optou em “falar” com quem realmente manda. O governo Trump assumiu a obrigação de retirar suas tropas em 14 meses. Biden concluiu o processo de forma meio abrupta nesse fatídico agosto de 2021. Os americanos calcularam mal tanto a entrada quanto a saída.
O acordo de Doha previa que a Al-Qaeda não teria o respaldo do Talibã. Os Estados Unidos levaram 20 anos e muitas mortes de inocentes para conseguirem fechar, em um acordo festivo, a ferida do 11 de setembro de 2001. O todo poderoso secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo, demonstrou toda abnegação ocidental diante dos “terroristas” islâmicos: “O Talibã mostrou, no período de redução de violência, que tem disposição de ser pacífico”.
No dia 15 de agosto o Talibã entrou em Cabul, capital do Afeganistão, e deu sua resposta ao Ocidente e a Pompeo. Washington se mostrou atordoado e os seguidores de Joe Biden e Donald Trump iniciaram uma pequena e particular “Guerra Fria” ideológica que somente serve para expor as mazelas do imperialismo americano. Funcionários da embaixada americana em Cabul arriaram a bandeira e deixaram às pressas a capital. Outros governos estão fazendo o mesmo com seus cidadãos. O último que sair apague a luz.
O que fica é um rastro de sangue, tristeza e morte. A população afegã, principalmente sua classe trabalhadora, aquela que verdadeiramente sofreu com a ocupação americana pagando com a vida a completa falta de possibilidade de cidadania, vai seguir a mercê da vontade e da ganância do capitalismo mundial e do fundamentalismo do Talibã. O Conselho de Segurança da ONU resolveu aparecer depois de anos de subserviência à arrogância do imperialismo americano. Alguém razoavelmente bem informado por acaso achava que a chamada “construção da nação”, que os EUA se propunham a estabelecer no Afeganistão ocupado, passaria pelo respeito e pela mediação do conceito de autodeterminação dos povos? O “mundo livre” americano só existe da porta para dentro. O futuro do Afeganistão e de seu povo será o grande desafio dos povos de todo mundo, mas será, principalmente, o maior desafio do próprio povo afegão. Definitivamente, este não é um tema para incautos e amadores.
*Eduardo Borges é professor de história na Universidade do Estado da Bahia.