Bacurau e o Brasil de Bolsonaro nas páginas da Cahiers du cinéma
Por Lucas Fiaschetti Estevez*
Pelo menos aos olhos da crítica internacional, o cinema brasileiro está em alta. Bacurau estampou a capa da importante revista Cahiers du Cinéma, criada em 1951 e berço de um dos mais importantes movimentos artísticos da sétima arte, a Novelle Vague. Em sua edição de setembro, a revista dedicou várias páginas ao cinema brasileiro sob a era Bolsonaro: uma espécie de balanço não só do atual estado no cinema no país, mas da incongruente situação que dá título a este texto: enquanto um país vai mal, seu cinema vai bem?
Bacurau: a audácia estética de uma ficção política
Em seu enredo transpassado pela violência e resistência, Bacurau consolida uma abordagem da história na qual “se entrelaçam a sátira política e a ficção popular”, em uma espécie de resultado lógico do desenvolvimento da carreira de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, este último, diretor artístico dos filmes anteriores de Mendonça. Esta é a primeira consideração de Camille Bui em Village Global (Vila Global), uma crítica que não só pretende apresentar a trama do filme ao público, mas também reivindica à Bacurau uma estética que é reflexo do tempo em que está sendo produzida.
Segundo Bui, “Bacurau reorienta a energia vingativa e divertida do western tendo como alvo o capitalismo devorador dos EUA e o fascismo rastejante”. Tal reorientação é realizada através de dois registros de mundo que se encontram numa guerra: de um lado, a população de Bacurau em sua luta por resistência por um espaço e uma forma de vida; do outro, os estrangeiros engajados em uma caçada humana motivada por ganhos econômicos.
Tais registros de mundo não definem somente a linha de ação a ser seguida, mas também a forma como se relacionam com o Sertão, que deixa de ser um cenário folclórico e passa a encarnar não só a história do país, mas todo simbolismo trágico e ao mesmo tempo heroico que carrega desde o cinema novo. Ambos registros se tornam, assim, dois regimes espaciais, daqueles que habitam e daqueles que conquistam. É por meio de tais distinções que o filme constrói sua tensão crescente.
Resistir ao horror sob o dilema do “cada um por si” não é a opção de Bacurau. No lugar da competitividade individual que há entre os estrangeiros na busca por quem mata mais, Bacurau e seus moradores sintetizam um registro coletivo de resistência, no qual o que vale é a solidariedade e a defesa de “um bem público ameaçado de desaparecer por conta dos caprichos privados dos políticos corruptos e dos paramilitares americanos”.
O cortejo funerário de Carmelita, logo no início do filme, é onde Bacurau já se apresenta como uma comunidade e um todo unido. Segundo Bui, essa cena já escancara “um todo agarrado em um único quadro mergulhado nos sons de uma mesma canção, mas que sabe compor com a heterogeneidade: os corpos, as faces, as cores da pele, as idades, os gêneros”. Ao mesmo tempo que compõe um coletivo, Bacurau não apaga as diferenças, não dilui as personagens em figuras abstratas de uma resistência impotente. Seus moradores são uma entidade múltipla, um “coletivo que se revela progressivamente como a verdadeira personagem do filme”. É essa personagem, ameaçada de extinção pelo registro da invasão e da violência, que resiste em defesa de seu próprio tempo e de seu próprio espaço.
É por meio dessa ameaça de extinção que o filme opera como metáfora do Brasil atual. Segundo Bui, os critérios estéticos da obra convergem à uma negação da própria realidade reacionária que o país atravessa, na medida em que o enredo afasta de si qualquer simplismo binário. Os dois registros de mundo não são tidos como excludentes e incomunicáveis, mas sim, como modos de agir que admitem fronteiras porosas entre si.
Em suma, há uma zona de indeterminação entre o “bem” e o “mal”, entre a violência do opressor e a do oprimido. Segundo a crítica, tal anti-maniqueísmo afasta uma identificação dos invasores de Bacurau com um mal abstrato e essencialista; como se brotasse de pessoas más por natureza. Da mesma forma, os moradores de Bacurau não são elevados ao status de uma coletividade passiva que habita a moral de um povo pobre, porém feliz. Por vezes, o semblante do olhar dos exterminadores se mistura ao dos habitantes do vilarejo – são olhares irredutíveis a qualquer simplificação. Este cuidado que ultrapassa a tessitura estética do filme converge como crítica ao atual estado da política no país, onde tudo aparece como claro e óbvio, onde os inimigos são claros e os heróis se autoproclamam.
Segundo Bui, a construção de tais dicotomias porosas serve “para reforçar a apreensão inquietante do incompreensível e atiçar nossa empatia com resistência que desperta”. Com essa representação que reconhece a complexidade daquilo que apontamos como o “mal”, “o filme ultrapassa a simples denotação analítica de um estado do mundo ao nos fazer sentir com calafrios a profunda mudança de rota da ameaça fascista que eclodiu nos últimos anos”.
Ao se afastar dos clichês e das dicotomias do pensamento reacionário, a comunidade de Bacurau ostenta uma beleza não pelo que é, mas pelo que pode ser, “uma versão alternativa do presente ou de uma utopia possível”. É por meio dessa alteridade do real que o filme transforma a violência diante dos invasores em resistência. Nisso, Bui enfatiza a audácia estética do filme: a partir de suas demandas estéticas, ele postula falar para além de si próprio, apontando a um “ideal democrático de uma sociedade em movimento, construída pela multiplicidade e nutrida por uma história de resistência política e cultural – os afro-brasileiros, as mulheres, os trabalhadores do campo, os povos indígenas – ao invés da herança das conquistas assassinas, do fascismo e do patriarcado”.
Segundo eles, a construção desse personagem coletivo permitiu falar não só da desigualdade no país, mas da própria guinada do conservadorismo e do absurdo que tinge sua política. Porém, tal ataque é feito de forma indireta, intra-estética, o que torna o filme ao mesmo tempo subversivo, mas dotado de certa inocência artística. Não estamos diante de uma obra engajada no sentido clássico do termo, mas de um filme que constrói internamente critérios estéticos que o ultrapassam. Em suma, os pobres, a violência e o Sertão, lugares tão comuns ao cinema nacional, foram colocados sob um novo olhar. De forma indireta, cada traço do filme aponta para a realidade brasileira e toda sua história pregressa. Segundo eles, o filme escancara uma história que pertence ao ciclo infindável de atraso e violência do país.
O cinema brasileiro na era Bolsonaro
Em um extenso dossiê, o crítico Ariel Schweitzer realiza um balanço do cinema brasileiro, tal como expõe ao público francês o trágico estrangulamento e aparelhamento que a cultura vem sofrendo no Brasil desde a chegada de Bolsonaro ao poder. Porém, até chegar a esse ponto, o cinema nacional teve uma áurea história. Segundo Schweitzer, nos últimos anos o Brasil se destacou pela sua participação em grandes festivais internacionais de cinema. Neste ano, tanto em Berlim quanto em Cannes, o Brasil esteve representado, sendo que neste último saiu com duas estatuetas: ganhou o prêmio do júri por Bacurau e o prêmio da mostra Un Certain Regard por A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz.
Por outro lado, justamente nesse momento de destaque do cinema nacional, acompanhamos a ascensão e vitória da extrema-direita nas eleições de 2018. Tal cenário perturbador é o objeto de investigação do crítico. Para Schweitzer, o cinema brasileiro se encontra agora em um momento delicado e ambíguo: depois da gloriosa época do Cinema Novo nos anos 60, nunca estivemos tão fortes e, ao mesmo tempo, tão ameaçados. O cinema representado por Bacurau e outras produções recentes é uma das causas ou uma das consequências da tragédia política que acompanhamos? Talvez a pergunta deva ser colocada em outros termos.
Dentre os inimigos públicos do presidente da República, o cinema nacional figura como um dos principais. Desde então, acompanhamos inúmeras notícias que indicam um controle ideológico tanto da produção cinematográfica como na nomeação dos corpos técnicos das instituições que regulam a cultura do país. Tudo aquilo que não é condizente com o credo da alta cúpula do governo deve ser demolido. Ao listar os ataques que o cinema brasileiro tem recebido, Schweitzer relembra uma das inúmeras frases do presidente a respeito da Ancine, na qual declarou que “nós devemos ter um filtro nessa agência, e se nós não conseguirmos fazer isso, nós vamos privatizar ou suprimi-la”. Tudo que for possível para alterar os rumos do cinema nacional será feito: não financiar os filmes sobre a ditadura, suprimir os fundos de apoio e desidratar a Lei Rouanet, modificar os critérios de atribuição do dinheiro público, praticar a censura, entre outras políticas de desmantelamento do aparato cultural do país.
Segundo o crítico, somente “o futuro dirá se o cinema brasileiro poderá sobreviver a tais agressões, mas já é possível dizer que a política de Bolsonaro colocou um final brutal a um período dourado que começou com a criação da Ancine em 2001 e a ascensão ao poder de Lula em 2003”. Em sua visão, a política cultural colocada em prática pelos governos petistas teve um enorme papel no avanço do cinema nacional – e são os avanços obtidos neste período que estão sob uma ameaça direta.
Um dos grandes avanços na produção cultural do Brasil vinha sendo, segundo Schweitzer, a descentralização na produção cinematográfica via o desenvolvimento dos fundos regionais co-financiados pela Ancine e por diferentes governos estaduais, diversificando uma produção que, até então, se concentrava na região sudeste do país. Um fruto desse processo foi, por exemplo, a emergência de Recife como uma importante cena de produção musical e cinematográfica. Além do próprio Kléber Mendonça Filho, outro diretor em destaque da região é Gabriel Mascaro, com três longas-metragens em seu currículo: Ventos de Agosto (2014), Rodeo (2015) e Divino Amor (2019).
Fortaleza também tem produzido grandes nomes, como Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Sérgio Machado. Um dos cineastas mais promissores desta região é, na opinião de Schweitzer, Guto Parente, com seu destacado último longa-metragem, Inferninho (2018). Já em Minas Gerais, Schweitzer ressalta o cinema produzido em Contagem, como o filme Temporada (2019), de André Novais Oliveira. A lista poderia se estender a muitos outros polos regionais de desenvolvimento do cinema, porém, tais exemplos já bastam para termos noção do quanto o cinema evoluiu desde então.
Segundo Schweitzer, o outro grande avanço recente no cinema nacional foi a visibilidade crescente dada às minorias raciais, sociais ou sexuais, que constituem populações relativamente pouco representadas em nossas telas. Até então, eram poucos os títulos que traziam representatividade a tais grupos: o crítico lembra o filme pioneiro de Zózimo Balbul, Alma no olho (1973), que trata da questão negra, e o filme de Karim Aïnouz, Madame Satã (2002), que se debruça, entre outros temas, sobre a homossexualidade. Porém, o que era raro, se transformou em riqueza criativa.
Desde então, a presença de tais grupos no cinema brasileiro só foi aumentando – fenômeno possível graças às diversas políticas públicas e de financiamento realizadas na área. Para Schweitzer, tal desenvolvimento se fez notar no Festival de Berlim do ano passado, no qual dois filmes brasileiros receberam o Prêmio Teddy, a mais importante premiação de filmes com temática LGBT: Tinta Bruta (2018), de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon na categoria de ficção e Bixa Travesty (2018), de Claudia Priscila e Kiko Goifman na categoria de documentário. Outro destaque nas premiações internacionais foi o já citado A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2019), de Karim Aïnouz, que retrata a questão feminina na patriarcal sociedade carioca dos anos 1950.
Se o cinema nacional conquistou um lugar de destaque nos festivais internacionais durante os últimos anos, qual será o seu destino tendo em vista a mudança tão drástica da vida política do país? Segundo Schweitzer, cabe aos produtores, distribuidores e demais envolvidos na produção cinematográfica brasileira a escolha por uma estratégia que busque preservar os avanços obtidos e manter as produções ativas e ideologicamente independentes.
A grande questão é compreender “que estratégia estabelecer face a um poder que não se furta em esconder sua hostilidade com relação ao cinema” e sua independência. Segundo o crítico, cabe a nós decidir como dialogar com outros setores da sociedade e como combater tais tendências demolidoras de nossa cultura. Se já não bastasse o risco da destruição deste legado que foi construído nos últimos anos, ainda corremos o risco de criar o grande cisma em nosso cinema: “de um lado, o cinema oficial, centralizado, despolitizado e generosamente financiado pelo dinheiro público, e, de outro, um cinema regionalizado, radical, muito politizado e praticamente autofinanciado”.
É necessário descobrir como continuar produzindo um cinema crítico e potente sob as ameaças da era Bolsonaro, um cinema que não se restrinja às páginas da Cahiers du cinéma, mas seja aceito pelo próprio país. Um cinema que pense o seu próprio tempo e lugar e que possa servir de instrumento de combate à violência de nossa própria barbárie. Conhecemos a solução que Bacurau deu a essa questão. Qual será a nossa resposta diante de tanto caos?
*Lucas Fiaschetti Estevez é pós-graduando em sociologia na USP.
Traduções de Artur Passos Ruivo.