A Revolta dos Alfaiates

Carybé (Hector Julio Páride Bernabó), "Bahia", 1971.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o livro “Esconjuro!”, de Luís Pimentel

Poucos brasileiros conhecem com alguma profundidade a Conjuração Baiana, que leva o poético (e algo depreciativo) nome de Revolta dos Alfaiates, devido à grande participação de artesãos, pequenos comerciantes, sapateiros e alfaiates. Para os íntimos era a Revolta dos Búzios, um código de identificação dos participantes, que levavam um pequeno búzio amarrado no pulso.

Movimento independentista fomentado em Salvador em 1798, tinha um grande diferencial em relação à Inconfidência Mineira, ocorrida poucos anos antes (1792): a grande participação de negros e mulatos. O grande valor dado a Tiradentes e seus colegas, e o desprezo histórico aos quatro mártires baianos (Lucas Dantas, Manoel Faustino, Luís Gonzaga e João de Deus) diz algo sobre o racismo vigente em nosso país. Todos foram enforcados e esquartejados, mas só o mineiro virou “santo”, sendo idealizado como uma espécie de Cristo nas representações gráficas (todas absurdas, aliás).

A Conjuração Baiana, além de querer a independência de Portugal, pregava o fim da escravatura. Chegavam por aqui as notícias da primeira revolta bem sucedida de escravos, no Haiti, contra o domínio francês (1794). Folhetos colocados nas igrejas de Salvador pelos conspiradores anunciavam: “Animai-vos, povo bahiense! Está para chegar o tempo feliz de nossa liberdade, o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais!”.

Os mineiros não chegaram a tal ousadia. A questão deles era a cobrança de impostos, de modo que todos pudessem continuar mantendo seus escravos numa boa. Eram liberais, digamos. Isso facilitou com que fossem cantados em prosa e verso, tornando-se símbolos pátrios. E, no campo literário, poucas homenagens foram tão bem sucedidas quanto o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles.

Pois o baiano-carioca Luís Pimentel resolveu abordar a Revolta dos Alfaiates, criando uma obra híbrida Esconjuro!, que utiliza várias linguagens. Alinha fatos históricos com personagens ficcionais, propõe um belo diálogo com as ilustrações de Daniel Viana e cria situações mescladas com teatro e poesia, mais próxima das raízes nordestinas do que da erudição mimética de Cecília. Não à toa o subtítulo do livro é “a corda e o cordel”, uma referência à forca e à forma popular de expressão poética.

O grande ideólogo da Revolta, Cipriano Barata, era um fervoroso adepto dos ideais da Revolução Francesa. Doutor em Cirurgia, Filosofia e Matemática pela Universidade de Coimbra, maçom, foi um grande propagandista da independência, fundando jornais de oposição, trocando ideias com Frei Caneca em Pernambuco, passando por várias prisões em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Mas era branco e doutor, para ele sobrou o cordel. Para seus companheiros negros, a corda.

Pimentel traça com habilidade o perfil deste e outros personagens, inventa mais alguns, ressalta a participação das mulheres do movimento e produz uma obra original que estimula principalmente os jovens (a quem o livro é destinado) a conhecer mais sobre a história. Mais que isso: cruza referências poéticas atemporais (Gregório de Matos, Dorival Caymmi), alterna vozes narrativas e cria uma narrativa cativante, onde o prazer da leitura se mistura à revolta íntima contra as injustiças do mundo.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


Luís Pimentel. Esconjuro!: a corda e o cordel na Revolta dos Alfaiates. Prefácio: Chico Alencar. Rio de Janeiro, Editora Pallas, 2021, 88 págs.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Salem Nasser Flávio Aguiar Anselm Jappe Bento Prado Jr. Ladislau Dowbor Luciano Nascimento Alexandre de Freitas Barbosa João Carlos Loebens Gilberto Maringoni Ricardo Fabbrini Alexandre de Lima Castro Tranjan Boaventura de Sousa Santos Anderson Alves Esteves Marilena Chauí Valerio Arcary Luiz Bernardo Pericás Bruno Machado Luis Felipe Miguel Paulo Capel Narvai Luiz Carlos Bresser-Pereira Caio Bugiato Celso Favaretto Dênis de Moraes André Singer Andrés del Río Airton Paschoa Manchetômetro João Feres Júnior Francisco Pereira de Farias Ricardo Abramovay Carlos Tautz Ronald Rocha Lucas Fiaschetti Estevez Eugênio Trivinho José Costa Júnior Vinício Carrilho Martinez Andrew Korybko Fernão Pessoa Ramos Dennis Oliveira Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Luís Fiori Luiz Roberto Alves Marcos Aurélio da Silva Vladimir Safatle Maria Rita Kehl Remy José Fontana Igor Felippe Santos Marjorie C. Marona Celso Frederico Érico Andrade Paulo Fernandes Silveira João Sette Whitaker Ferreira Everaldo de Oliveira Andrade Ronaldo Tadeu de Souza Leonardo Sacramento Rafael R. Ioris Leonardo Avritzer Yuri Martins-Fontes Sergio Amadeu da Silveira Manuel Domingos Neto Marcus Ianoni Henry Burnett Denilson Cordeiro Marilia Pacheco Fiorillo Mário Maestri Samuel Kilsztajn João Adolfo Hansen Eleonora Albano Afrânio Catani Paulo Martins Daniel Brazil Priscila Figueiredo Leonardo Boff Luiz Eduardo Soares João Carlos Salles Jean Pierre Chauvin Luiz Marques José Machado Moita Neto Leda Maria Paulani Sandra Bitencourt Daniel Afonso da Silva Antônio Sales Rios Neto Atilio A. Boron Antonino Infranca João Lanari Bo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Juarez Guimarães Renato Dagnino Jorge Luiz Souto Maior Liszt Vieira José Dirceu Marcos Silva Flávio R. Kothe Elias Jabbour Armando Boito Eduardo Borges Tadeu Valadares José Geraldo Couto João Paulo Ayub Fonseca Chico Whitaker Carla Teixeira Berenice Bento Rubens Pinto Lyra Rodrigo de Faria José Micaelson Lacerda Morais Bernardo Ricupero Thomas Piketty Benicio Viero Schmidt Luiz Renato Martins Eugênio Bucci Vanderlei Tenório Mariarosaria Fabris Fernando Nogueira da Costa Michel Goulart da Silva Eliziário Andrade Walnice Nogueira Galvão Lorenzo Vitral Milton Pinheiro Paulo Sérgio Pinheiro Gabriel Cohn Tales Ab'Sáber Heraldo Campos Kátia Gerab Baggio Lincoln Secco Luiz Werneck Vianna Osvaldo Coggiola Michael Löwy Tarso Genro Michael Roberts Jean Marc Von Der Weid Paulo Nogueira Batista Jr Gilberto Lopes Francisco Fernandes Ladeira Chico Alencar Francisco de Oliveira Barros Júnior Eleutério F. S. Prado José Raimundo Trindade Claudio Katz Henri Acselrad Fábio Konder Comparato Annateresa Fabris Marcelo Guimarães Lima Alysson Leandro Mascaro Ricardo Musse Gerson Almeida Julian Rodrigues André Márcio Neves Soares Antonio Martins Slavoj Žižek Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jorge Branco Daniel Costa Ari Marcelo Solon Marcelo Módolo Matheus Silveira de Souza Luís Fernando Vitagliano Ricardo Antunes Alexandre Aragão de Albuquerque Otaviano Helene Ronald León Núñez

NOVAS PUBLICAÇÕES