Vozes da seca

Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze), [sem título], c.1937-50.
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

O ente financeiro travestido de algumas notas de reais veste o dia a dia dos humilhados e ofendidos do Brasil por meio de distintas significações

Luiz Gonzaga e Zé Dantas entenderam bem os avatares econômicos do populismo na canção Vozes da Seca, em que se lê: “[…] uma esmola a um homem que é são/Ou lhe mata de vergonha/Ou vicia o cidadão”. Os autores sabem mover as linguagens da política, entre o subterfúgio do adjutório, a esmola e a garantia da vida comunitária e social, também presente sob a forma de grandes projetos de atividade perene diante das secas e do desequilíbrio regional, seja o açude, seja o manejo dos instrumentos econômicos adequados e, portanto, garantidores da “comida a bom preço”.

Sabem trabalhar com o ou e o e, bem como a adversativa mas. Enquanto o ou faz acumular dois males psicossociais, a vergonha e o vício, a conjunção aditiva é suposta na lista de ações permanentes e transformadoras. A esmola é revertida pela governança competente, operadora e justa, quase uma utopia na história administrativa do Brasil.

Tais avatares não são o que se entendeu por renda mínima, jamais levada a sério. De fato, se definem pelas ajudas circunstanciais dos governos aos que se aproximam ou avançam na miséria resultante das próprias políticas dos governos em que a miséria cresce. No fundo, o adjutório, que cabe muito bem no conceito de esmola em Gonzaga, jamais considerou quais são as “máquinas trituradores dos pobres”. Ao não fazê-lo, concordou com elas e tomou o chá da tarde com seus fabricantes, os donos e atravessadores dos capitais e sua mais-valia crescente.

O ente financeiro travestido de algumas notas de reais veste o dia a dia dos humilhados e ofendidos do Brasil por meio de distintas significações: a compensação no jogo desigual do capitalismo, o direito do grupo familiar à comida mais de uma vez ao dia, o apoio no interregno dos desajustes na empregabilidade, o ato circunstancial de favorecer a frequência à escola, a apropriação do apoio eleitoral das milhões de famílias e sua provável lealdade partidária, o desaguadouro orçamentário na penúria ou na ausência de efetivas políticas e mesmo a emulação comparativa entre governantes e legisladores, cada qual oferecendo valores-avatares com alguma distinção relativa a outros que já haviam oferecido tais esmolas.

Nenhum dos trajes vestidos na ação doadora é digno. São trapos-avatares que, no máximo, satisfazem a consciência, feliz ou infeliz, dos doadores. Mas sinalizam, sempre, o fracasso das políticas que fortaleceriam todo o tecido social e garantiriam a massa crítica em face de revezes futuros das políticas perenes. Um governo que não é capaz de garantir alguma perenidade nas interações sociais do futuro e na garantia da dignidade fundamental da res publica só pode ser considerado fraco e incompetente. Como ocorre com a educação e o ensino. Se o trabalho dos supostos educadores não garante a formação de movimentos estudantis a favor da ciência, da justiça social, das boas políticas, da independência do pensamento e do exercício pleno da cidadania, com certeza não foram educadores ou educadoras. Uma educação de avatares, fogos-fátuos.

A leitura do Gonzagão e seu parceiro vem aqui disposta como dado radical no contexto da campanha eleitoral de 2022, já iniciada. E ela está na rua porque o advento das redes sociais, a multidão de avatares providos pela inteligência artificial, a competência técnica a serviço da bipolaridade política e, enfim, as repetições entranhadas nos neurónios humanos fermentam de dia e de noite. Já não há mais o descanso dos guerreiros, nem a parada da maquinação das linguagens. Tudo se faz todo o tempo, porque há muitas extensões do humano que se reciclam na passagem do tempo e comercializam dados e informações. Já não há mais qualquer razão para o TSE indicar um início e um fim da campanha eleitoral. Ou este órgão máximo do sistema eleitoral cria um novo entendimento e uma nova gramática para o fazer publicitário e propagandístico das candidaturas ou ficará a ver navios no horizonte e boiadas nas nuvens enquanto o processo eleitoral corre solto.

Dado que o plantonista do Planalto nos levou ao último desvão da desgraça político-econômico-social e ambiental, as vozes do trio mal chamado de esquerda, direita e centro terão de partir da lama, que se realiza, no momento, como linguagem comum. Por isso, o adjutório de hoje, 400 reais aos miseráveis, é intenso objeto de desejo. Capaz de conectar o trio e fazer da campanha eleitoral a mais asquerosa da história republicana. Isso não significa que cada qual proporá um adjutório maior para os empobrecidos (que não empobreceram por acaso, nem por culpa pessoal), mas sim que a campanha não será feita por políticas públicas possíveis e sim por berros de palavras-de-ordem.

Se o símbolo do adjutório penetrar na consciência dos candidatos como patamar opositivo ao atual plantonista do Planalto e seu Centrão, o número de miserabilizados do país será contado como tão grande que a fala eleitoral será necessariamente rebaixada. Qualquer um que quiser erguer a estrutura discursiva do processo eleitoral terá que fazer um trabalho hercúleo de desmontagens da linguagem construída há cinco anos, desde o golpe programático bolsonarista que derrubou Dilma Roussef. Seria como hienas sobre a carne e os ossos que restaram, postas aqui como alegoria. Quais linguagens mais enriquecidas virão das gargantas das hienas diante do que lhes foi deixado, entendido como algo de grande valor e, no fundo, um adjutório fornecido pelos leões fartos?

Que país desgraçado (aquele que perdeu toda a Graça) é esse em que o adjutório que humilhou Gonzagão e Zé Dantas se tornou algo essencial, disputado e capaz de mover os discursos eleitorais deste momento da República?

Pode ser que não haja centro-esquerda-direita definidas. Poderá haver blocos, grupos, bandas, gangues e legiões, armadas tecnologicamente até os dentes a disparar robotagens (apoiadas por artigos polidos de jornais como contrapartes) para, ao fim e ao cabo, ver-se quem restou e em que posição restou. Nem mesmo será possível, porque temerário, à campanha do ex-presidente Lula apresentar a palavra de ordem do retorno à sua antiga administração. O jogo das palavras de ordem vai aturdir e trombetear a fim de criar cizânias e desconfianças. Será fácil minar um possível governo do retorno na sociedade fartamente tecnológica, repetitiva à exaustão e que não tem compromisso com a razão. Ocorre, também, que é completamente fora da ordem política da sociedade democrática desejar ter todo um governo nas mãos para que o povo coma três vezes ao dia. Isso é pouco demais em face das novas necessidades radicais dos homens e mulheres, crianças e jovens do século XXI e do planeta ameaçado. Uma barriga cheia consumista não é um projeto de vida frente a tantos novos desafios. Tal discurso será, somente, mais uma palavra de ordem em processo de desmonte no vale-tudo da campanha.

Se os discursos começarem como palavras-de-ordem, assim terminarão em setembro de 2022. Ocorre que o jargão político trabalhado como panaceia jamais chega a constituir políticas e se basta na lista de coisas feitas e a fazer. Isso significa que a eleição de 2022 poderá ser um jogo viciado e as escolhas obedecerão, independentemente dos ganhadores no primeiro turno, a um perfil nitidamente conservador de sociedade. Será uma operação realizada “por baixo”, sem qualquer grandeza. Mais uma derrota histórica do país movido por uma democracia débil e sem rumo há tanto tempo! Se assim não fora, não haveria a miséria que se vê. A miséria se impõe ao discurso culturalista das elites, capazes de ver uma sociedade democrática e estável, com multidões de miseráveis e incontáveis meninos e meninas mortas diariamente sob o látego das diversas violências. Entre essas violências se pode listar a conversa fiada da sociedade de “estruturas democráticas firmes”.

Haveria tempo de fazer uma campanha que desmontasse ao mesmo tempo o aparato perverso, mas significativo do bolsonarismo e a intrusão, a qualquer custo, daqueles que se colocam como tertius, cada qual munido de suas legiões a vociferar palavras de ordem, isto é, discursos estranhos a efetivas políticas públicas de governança? Ou, noutra formulação, seria possível que a população brasileira reconhecesse um conjunto limitado de candidatos com força agregadora suficiente para uma campanha republicana?

Sim, se os partidos se reorganizassem por novas instâncias de operação e formulassem políticas de governança a partir de uma leitura ecológica da realidade brasileira e latino-americana, ao menos com base no Mercosul e, de modo geral, no eixo sul do mundo. E se os partidos acordassem um novo comportamento e uma nova linguagem junto aos tribunais eleitorais.

Seriam suficientes algumas políticas públicas de governança (a partir do binômio ecologia/cultura), trabalhadas de cabo a rabo nas instâncias partidárias e postas à luz no primeiro dia de campanha. O ecológico e o cultural engendram as demais políticas, isto é, cria-se uma cultura ecológica de campanha para o Brasil. Seriam elas comprometidas na concepção, formulação, organização estratégica e avaliação pelos seus formuladores e não somente por grupinhos de poder. Tais políticas seriam trabalhadas por todos os equipamentos midiáticos e redes sociais, sob a supervisão das instituições e organizações da sociedade civil e das várias instâncias do poder judiciário, bem como por todo o sistema de informação e comunicação. Obviamente muitos meios de comunicação serão absorvidos por instâncias partidárias, o que não é um mal em si, pois a clareza metodológica da campanha política sempre disporá de instrumentos críticos e punições aos males pontuais. A despeito de vários níveis de linguagem e várias gramáticas em funcionamento no imenso território nacional, a definição de método e de responsabilidade cívica pode criar e implementar distintas formas e níveis de comunicação, o que criará um direito novo na cidadania brasileira, o direito de recepcionar e entender a mensagem política, preparatória para tomadas de decisão nas urnas (certamente eletrônicas).

O que de fato ocorre costumeiramente nas campanhas brasileiras é que os tribunais e demais instâncias mediadoras da sociedade fazem cara de paisagem enquanto “o pau come” nas refregas e intrigas. Criados os embrolhos de toda ordem, aliás desejados e incentivados, as saídas são o vale-tudo, bem a gosto do subdesenvolvimento político. Aí, todo o círculo vicioso pensado anteriormente se realiza e a “sociedade democrática e bem estruturada” pare (ou vai parindo) os novos rebentos do poder, frutos da confusão ideológica e da pragmática conservadora.

As campanhas eleitorais do Brasil não são lugares de memória e sim de esquecimento. São fronteiras da irracionalidade. Mas esses não são necessariamente o fado e o destino delas. A história é possibilidade, para repetir, com agrado, Paulo Freire.

A ver. A constatar.

Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

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