Sobre ódios e medos sociais

Cildo Meireles, Inserções em circuitos ideológicos Projeto Coca-Cola 7 x exemplares de exposição (detalhe), 1970
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Por VALERIO ARCARY*

A ideia de que a vida política possa existir sem o impulso das paixões é superficial, arrogante e errada

“Quem o inimigo poupa, às mãos lhe morre” (Sabedoria popular portuguesa).

O que ensina a história sobre o lugar do ódio na luta contra a opressão e a exploração? Escrever ou ler sobre história não tem maior importância, se não se procura retirar lições. A ideia de que a vida política possa existir sem o impulso das paixões é superficial, arrogante e errada. As massas populares são pessoas. Os seres humanos se movem por interesses, ideias, mas, também, sentimentos.

A consciência de classe é indivisível dos afetos que definem a condição humana. O ódio contra a injustiça não diminui a legitimidade das lutas sociais, ao contrário. O medo é que desumaniza. Não é possível mudar o mundo sem mobilizar o desgosto e o rancor, a raiva e ira no coração de milhões. São esses sentimentos, quando se unem à esperança que alimentam a indignação e a coragem.

Os ódios sociais são incompreensíveis quando não os relacionamos com os medos. Vivemos em sociedades, irremediavelmente, fraturadas. A luta de classes não é somente o confronto de interesses econômico-sociais, mas da percepção condensada na consciência de milhões de um choque inevitável de aspirações e perspectivas.

As privações, os sacrifícios, os sofrimentos materiais e emocionais das massas em cada sociedade podem diminuir ou aumentar, variar e oscilar, mas são constantes. A disposição de luta é que é variável. O medo inibe a revolta. O ódio incendeia a rebelião.

São poderosas as pressões de inércia cultural e ideológica que aprisionam as amplas massas trabalhadoras, urbanas ou rurais, na resignação ou na submissão. Mas em situações limites em que a paciência acabou, situações revolucionárias, precisam medir forças com pressões ainda mais fortes. Não há força social mais poderosa na história do que a revolta popular, quando se organiza e mobiliza contra a ordem existente.

O medo de que as mudanças não cheguem nunca – que, entre os trabalhadores, é desencorajado pelo temor às represálias – precisa encarar medos ainda maiores: o desespero das classes proprietárias de perder tudo. As hesitações dos trabalhadores em suas próprias forças, a incredulidade em seus sonhos igualitaristas, a descrença na possibilidade da vitória, em algumas situações, são superados pela esperança de justiça e liberdade, um anseio político mais elevado que a mesquinhez reacionária pequeno-burguesa e a avareza capitalista. O ódio de classe contra a exploração, ou os ressentimentos dos oprimidos – negros ou mulheres, LGBT’s ou indígenas – são sentimentos superiores, moralmente, à presunção, soberba e arrogâncias burguesas.

A dimensão utópica da ideia socialista – a promessa de uma sociedade sem classes, ou seja, a aposta na liberdade humana – tem seu lugar na exaltação ideológica. Que o vocabulário desta exaltação tenha sido, tantas vezes, emaranhado em anseios místicos é compreensível. Os sonhos alimentam a luta por um mundo melhor. Igualdade social e liberdade humana permanecem sendo as aspirações civilizatórias mais elevadas da época que nos tocou viver.

Na luta contra a exploração as massas populares, mais de uma vez, deixaram-se seduzir por discursos milenaristas – a escatologia de futurismos que preveem um esgotamento “natural” da ordem do mundo – ou messiânicos – a redenção de uma vida de sofrimento por um agente salvador -, que ressoam suas aspirações de justiça. São ilusões de que o mundo poderia mudar para melhor sem luta, ou sem maiores riscos. A forma religiosa da linguagem, porém, não deveria desviar nossa atenção.

A vida material dos trabalhadores ao longo da história remete à imagem do vale de lágrimas. Quem vive sob a exploração precisa acreditar que é possível transformar o mundo ou que, pelo menos, o seu sacrifício tem um sentido. Esta expectativa moral de que deve haver recompensa e punição corresponde à sede de justiça. Acreditar que será em outra vida pode ajudar ou dificultar a continuar a luta nesta vida. Depende de outras camadas de sentido que são assimiladas pela consciência, politicamente, a partir da experiência de luta.

A esperança em uma mudança iminente, ou a fé na força de uma liderança salvadora responde a uma intensa necessidade subjetiva – os céticos condenariam como um consolo – mas também a uma experiência. Os que vivem do trabalho sempre foram a maioria. Os explorados sabem que sempre serão a maioria, enquanto houver exploração. É dessa experiência que se renova a esperança de que podem mudar suas vidas.

A dimensão utópica de um projeto igualitarista nunca poderia der minimizada, já que a aposta política sempre dependerá de um engajamento que exige o enfrentamento de dúvidas e riscos, para não esquecer dos perigos e das derrotas. Todas as fórmulas que depositam “na história” a esperança de definição de uma luta que exige empenho e vontade só podem ajudar a semear ilusões deterministas ou pessimismos fatalistas. A “história” não pode decidir nada porque não é sujeito, mas processo.

O socialismo sempre foi entendido pelo marxismo como um projeto que depende da capacidade de mobilização e organização de forças sociais com interesses anti-capitalistas, e da presença de sujeitos políticos capazes de traduzir esses interesses numa perspectiva de poder.

Mas sem a “fé” na possibilidade desses sujeitos sociais serem vitoriosos, o que poderíamos chamar uma consciência de classe, seria muito difícil sustentar de forma continuada uma militância que é emancipadora, libertadora, mas exige sacrifícios e abnegação.

Esse sentimento que já foi denominado, no passado, de “robusto otimismo” na disposição revolucionária dos trabalhadores é indispensável para alimentar um projeto político, e tem uma evidente dimensão utópica. Porque lutamos pelo futuro, pelo que ainda está por vir.

Mas há um problema. A fórmula “paradigma utópico” tem sido utilizada como uma alternativa a socialismo, e freqüentemente, como uma alternativa nebulosa à necessidade mesma de uma perspectiva estratégica anti-capitalista. Em uma situação como a que vivemos, de crise do capitalismo, mas, também, de crise e reorganização do movimento operário e da esquerda, portanto, de grandes incertezas, não é estranho que as inseguranças ideológicas ganhem terreno.

Boa parte da esquerda mundial se sente incômoda até com o conceito de socialismo, e treme diante do conceito de comunismo. A nova “respeitabilidade” do conceito de paradigma utópico se explica porque, confortavelmente, promete dizer muito sem se comprometer com nada. È a força da fraqueza.

Por um lado, ele remete a um esforço meio constrangido de superação do esquematismo das correntes estalinistas que se dedicaram, incansavelmente, durante décadas, à defesa incondicional das “realizações” da construção do socialismo na URSS, mas foram surpreendidas porque a restauração capitalista veio pelas mãos dos dirigentes dos partidos comunistas.

Por outro lado, ele expressa as tremendas pressões que se abateram na última década sobre as organizações de massas do movimento operário com o colapso da ex-URSS, e a ofensiva do neoliberalismo: traduz, nesse sentido, um movimento teórico confuso de adaptação ao discurso anti-socialista predominante, uma reciclagem da socialdemocracia européia, explicitamente, não socialista.

Mas é também usado por socialistas sinceros como uma fórmula que busca ir além das certezas ideológicas do que foi por muito tempo identificado pelos ex-partidos comunistas como os dogmas do “socialismo científico”. De qualquer maneira, é desconcertante como tantos socialistas a aceitem, com ligeireza, no lugar ou como sinônimo de socialismo. Essa, evidentemente, não é uma escolha inocente. E confessa mais sobre as atuais dificuldades de crítica, de boa parte da esquerda mundial, diante das virtudes da democracia “republicana” (o “mantra” dos valores absolutos), do que explica sobre o que se pensa como um projeto de sociedade igualitária e libertária. Pós-marxista ou mesmo pós-socialista, crítica da ideia de projeto, e elogio da ideia de processo tem sido uma das coqueluches teóricas dos últimos trinta anos.

Mas é verdade que precisamos de ideias inspiradoras. Todas as classes dominantes foram hostis a doutrinas utópicas que previam a subversão da ordem, e combateram sem hesitação movimentos de massas que abraçaram o prognóstico – ou a profecia – de um iminente desmoronamento do poder constituído.

Acontece que o povo expressa-se no vocabulário que tem disponível. E crenças revolucionárias, quando conquistam as vozes das ruas, podem expressar com dicção religiosa um discurso político que legitima a luta pelo poder.

São os despossuídos, os visionários e os radicais políticos que se comovem com a perspectiva de que é possível mudar o mundo. Nada se transforma sem luta feroz e implacável. Os reacionários de todos os tempos sempre insistiram em desqualificar as utopias como teorias perigosas e projetos desvairados inspirados por apaixonados.

Mas o nome deles é “revolucionários”.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

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