Por ELIAS JABBOUR*
As premissas do arcabouço intelectual necessário para compreender a formação econômico-social chinesa
Desde que abandonei teorias consolidadas, e datadas, do desenvolvimento econômico em prol do conceito de formação econômico-social passei a usufruir de liberdade indescritível. Teorias datadas engessam análise e só podem entregar o “particular no geral”. Os economistas hoje, como acreditam que as teorias já estão aí e que o importante é aplicá-las bem estão esbarrando nos limites de acreditarem que ao estudarem as relações entre Estado e mercado conseguem entregar algo capaz de entender processos complexos. Eis o limite da heterodoxia econômica e que a faz se aproximar, no método, da ortodoxia.
Explico. Neste tipo de análise a totalidade é amplamente deslocada com a quase negação da política e da história. Entre os marxistas acadêmicos não e percebe que mudanças institucionais não somente têm garantido o desatamento cíclico de pontos de estrangulamento na economia; mas também o surgimento de novas relações de produção via novos aportes sob forma de mais e melhor regulação do trabalho quanto aumentos salariais médios de 280% nos últimos dez anos.
Não impede a China de se tornar, ainda, uma sociedade menos desigual, mas demonstra que o Estado chinês tem respondido às demandas dos trabalhadores com assertividade. Caso fosse um país capitalista a China poderia elevar a competitividade de seus produtos criando um desemprego artificial de ao menos 10%…
Retornando. Como toda teoria este tipo de abordagem perde sentido quando surgem mudanças qualitativas, como ocorrem na China hoje. Daí a pobreza de reduzir as reformas pelas quais estão passando a economia chinesa como “onda regulatória”, “novas fronteiras de acumulação de capital”. Nada mais estático e microeconômico. Na verdade, o que existe é um movimento real gerando novos conceitos. E acredito que decifrar o conteúdo desses novos conceitos seja o maior desafio presente às ciências sociais, pois a China suscita uma engenharia social de patamar superior comprovada pela vitória inconteste contra a pandemia – expondo as mazelas do capitalismo ocidental.
A percepção de que a estava emergindo na China uma nova classe de formações sociais me livrou das camisas de força das teorias estruturalistas e de Estado desenvolvimentista / empreendedor de desenvolvimento. A universalidade do marxismo de Vladimir Lênin e Inácio Rangel aplicado a uma realidade particular nos abriu possibilidades ainda a serem amplamente exploradas. Não fomos pegos de surpresa com a atual onda de inovações institucionais.
Rapidamente percebemos a natureza qualitativa e diferente do que estava acorrendo. A contradição entre forças produtivas e relações de produção chegou a outro patamar. Luta de classes. Uma visão de “bloco de poder” deverá ser desafio diante do que significa a força de mais de 130 milhões de trabalhadores urbanos, ontem camponeses no processo de pressão sobre o Partido Comunista, garantindo a manutenção de uma estratégia socializante ao país.
A “Nova economia do projetamento” derivada da dinâmica do “desenvolvimento desequilibrado” mediado por ondas de inovações institucionais têm sido uma descoberta fascinante. A criação do computador quântico mais rápido do mundo é passo decisivo na construção da liberdade humana. Nova economia do projetamento é sinônimo de ampliação da capacidade de planificar, de elevar o domínio humano sobre a natureza e entregar ao ser humano a possibilidade de ser o senhor do seu destino.
Confesso que seria mais fácil e prestigioso me apreender a alguns conceitos abstratos e aprioristas como valor, dinheiro, fetiche, mercado e alienação e utilizá-los arbitrariamente. Isso é zona de conforto intelectual. Não combina comigo. Prefiro outro caminho, talvez herético. Observar uma totalidade entre formação econômico-social, modo de produção, o meta modo de produção (quem ler China: o socialismo do século XXI irá entender esse conceito) e a lei do valor como uma totalidade.
Observando em conjunto esta totalidade é algo que ao se movimentar vai rearranjando as lógicas de funcionamento da sociedade, gerando formação econômico-social a partir de novos modos de produção a partir de combinações entre diferentes formas/relações de produção e troca. Os resultados até aqui têm sido promissores. Muito ceticismo de nossos interlocutores, mas muita gente já utilizando do arcabouço intelectual por nós construído para construírem suas próprias hipóteses sobre a China. Estamos apenas no começo.
*Elias Jabbour é professor dos Programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ. Autor, entre outros livros, de China hoje – Projeto nacional de desenvolvimento e socialismo de mercado (Anita Garibaldi).