Por DÉBORA DIAS*
Comentário sobre o livro organizado por Adelaide Gonçalves, Paula Godinho e Maria de Lourdes Vicente da Silva
Como mensurar o interesse e a utilidade de um livro? Não somente de um texto, de um relato ou de uma história, mas do todo que constitui o objeto? Um caminho certamente é pensar naquilo que tal encontro desperta nos sentidos e traz como potencial de transformação ou elaboração. No quanto está em sincronia com as questões do próprio tempo, mas vai além e, por vezes intuitivamente, destila o que permanece, oferece o que não se esvai. Ou mesmo se traz mais do que seria suposto, não apenas porque se renova a cada leitura, mas pelo intangível que não controla, nem prevê, masno qual seu todo participa. Seja por que caminho for, essas são balizas que podem guiar a leitura de Entre o impossível e o necessário: esperança e rebeldia nos trajetos de mulheres sem-terra no Ceará (Expressão Popular).
Composto por estudos e relatos correlacionados, mas que mantém independência entre si, tem a qualidade de que cada parte é mais do que se propõe a ser. Isto é, não seria incorreto dizer que o livro se centra em 15 relatos vida de 16 mulheres sem-terra do Estado do Ceará a partir de entrevistas realizadas pela antropóloga portuguesa Paula Godinho, autora da introdução e do epílogo. É também organizado pela historiadora brasileira Adelaide Gonçalves e a pedagoga Lourdes Vicente, ambas professoras e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que também assinam o estudo “Essencial é a travessia”, como em Guimarães Rosa, à guisa de prefácio. Mas, depois de lido, dizer isso torna-se insuficiente ou inexato.
Ao longo da leitura percebe-se que a despretensão desde a síntese e mesmo a simplicidade dos elementos gráficos (como as fotos caseiras, amadoras no melhor sentido da palavra) não revelam de imediato a sofisticação da proposta, os imbricamentos que foram se construindo, os modos como a autoria individual cede à uma construção coletiva, as transformações de papéis do que escuta e do que fala ao longo do processo, ou mesmo de como uma bibliografia faz-se em simultâneo documento sobre uma história e uma sociedade. Se o princípio da esperança percorre os relatos, se as “realidades são sempre inacabadas, e a história não demonstra estar completa” (p.23), também se reflete na potência do documento construído.
O livro não explicita todas as suas estratégias, nem precisaria. Mas é fácil perceber que há uma característica que o atravessa: as mulheres dão o tom no coro de vozes. Num esforço por evitar idealizações, a narrativa traz mulheres que reivindicam outras possibilidades de existência enquanto parecem fazer o que sempre fizeram: cuidam da vida, cuidam da morte, cultivam a terra, cultivam-se na terra e, à modo de metalinguagem, estão em diálogo também na feitura do próprio livro, cuja artesania traz singularidades a serem valorizadas.
A Introdução e o texto “Essencial é a travessia” são dois estudos, em certa medida complementares, que ultrapassam a função de introdução e apresentação, por exemplo. São reflexões que, embora partam de uma perspectiva acadêmica, miram em “leitoras e leitores de feitio variado” (p. 45) e querem desfazer dicotomias artificiais (nós e eles, intelectuais e povo, pesquisadores e objeto de pesquisa), buscando compreender complexidades sem desfazer do sensível, numa aproximação que chega ao ponto de uma das autoras, Lourdes Vicente, ter se tornado também entrevistada em outra seção.
Seguindo caminhos autônomos, ambos os textos aceitam o desafio de materializar vias rigorosas de construção de conhecimento, sem escamotear a defesa de posições claras. Assumidamente, não usam “luvas de borracha na voz e na escrita” (p.21) ao construírem uma interpretação situada e crítica, ao contrário, convencem de que não poderiam chegar onde chegaram com dissimulado distanciamento.
Para quem está mais familiarizado com os termos, episódios e geografias assinalados, há sempre a desconfiança com o olhar brasilianista. Não é o caso da estratégia usada na Introdução. Não se trata da pose de especialista em Brasil, mas sim de valorizar a frescura do olhar que se espanta, da mirada estrangeira que revela o extraordinário no que aparentemente não é estranho, é habitual, daí por vezes olhado, mas não visto, correlacionado, refletido.
A autora não ameniza a profunda “necrose do tecido social” brasileiro, enquanto se nega a fortalecer as narrativas do medo, do inevitável, da derrota sem trégua. Ao apontar para outras e novas leituras que se entrecruzam, o texto fisga quem pensa que já conhece do que se fala e chama para a urgência de se conhecer mais. Há a reflexão da dor em grande escala como controle, chave de compreensão de um tempo (p. 19). Dos triunfos, nem sempre retumbantes ou reconhecíveis facilmente, que abrem caminhos (p. 22). Ou ainda interpretações dos últimos acontecimentos, correlacionando-os com narrativas do livro, que demonstram a grande atualidade dos temas e potência da reflexão.
Já o texto “Essencial é a travessia…” é um estudo que tanto demonstra as virtudes do livro-documento, no seu ineditismo e densidade, quanto o localiza e o põe em diálogo com uma vasta produção bibliográfica. Ao oferecer uma leitura das entrevistas articulada com bibliografia de referências de alguns dos temas tratados – as notas de rodapé são um estudo dentro do estudo – as autoras constroem conhecimento e sugerem possibilidades metodológicas. Assim é no enquadramento, a partir das narrativas, de categorias como “memória” – apontada pelas entrevistadas como “poço” a ser cavoucado, “seiva e raiz” (p. 47), aquilo que move a luta –, “história” – construída como patrimônio da luta social –, “espaço e tempo”. Anunciam como um inventário das múltiplas chaves de compreensão do livro, das geografias, das palavras, dos sabores, das músicas, dos modos de comer, de sonhar, de viver e de morrer.
Assim como as possibilidades para os estudos da fome, da fartura e da pobreza, do sertão e da seca, dos movimentos sociais, das migrações, das múltiplas relações com a Igreja (a que oprime e a que liberta), da violência no campo, da infância, da alfabetização. E aos seus muitos subtemas, como a degradação ambiental, a mortalidade infantil, as brincadeiras, a alimentação, a dimensão sensorial, a festa, as relações com o território presente, passado e futuro.
Numa diversidade de narrativas, que passa por paisagens tão variadas como possível no imaginário do sertão, da serra, do litoral, da fome e da abundância, passeando em retrospectiva por territórios da infância e da maturidade, evidente que o protagonismo é das narradoras: Maria Genoveva, Maria Isaltina, Francisca Alexandrina, Maria Paz, Maria de Socorro, Virgínia Pereira, Chiquinha Louvado, Dona Chaguinha Maria de Jesus, Maria Moura, Maria das Graças, Cacique Pequena, Cleomar Ribeiro, Maria Ana e Lourdes Vicente. Nelas há o desejo (às vezes mesmo premente) de fixar as histórias, de as recontar para que existam ou para que não morram. Ou mesmo, que consigam ultrapassar fronteiras e, assim, que elas próprias cheguem longe, por meio do livro. É o desejo de se contar em livro. Assim como a necessidade do alimento, da terra e da educação, cuja combinação cria uma cultura em comum.
Dessas singularidades, é fácil compreender que não se trata somente do MST e de sua formação (mesmo sendo uma forte vertente do livro), mas dos processos de enfrentamento e resistência que surgem pela urgência dos atos, de suas relações que constituem e extrapolam o próprio Movimento Sem Terra. Com corpos e memória, elas agem sobre as próprias vidas e do seu entorno, mesmo quando são os homens que ocupam os cargos de liderança, como na presidência de sindicatos, por exemplo. Trata-se de uma luta que se faz também por dentro e que está permeada também de contradições e de permanente aprendizado, incluindo os conflitos internos, as relações com o machismo e as resistências dentro dos movimentos.
Antecedendo cada relato, a antropóloga conta, mais do que contextualiza, cada conversa e cada entrevistada, a quem segue numa escuta sensível. Também agrada, na edição das entrevistas, o respeito à oralidade e aos ritmos da fala. No todo, o livro é costurado por uma estratégia que percorre o bom caminho: é o visível e o invisível na tradição roseana, revelando a complexidade para além daquilo que parece ser; é o singular, na valorização do que é único e irrepetível, mas que tem seu sentido maior no coletivo, nas vivências compartilhadas; é quando o concreto e o abstrato se encontram, se reconhecem e se interrogam, quer seja barro, comida, cerca, sonho, esperança, fome ou fartura. Numa síntese, a leitura é atravessada pela tensão entre a experiência (como “passado atual”) e a expectativa(“futuro presente”, que engloba, mas é maior que a esperança) como na lição de Reinhart Koselleck no livro Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. As mulheres, no pulsar de suas narrativas, entrelaçam passado e futuro, e mostram a história possível por poder ser imaginada, por suscitar novas soluções.
Do que já se tornou o futuro do livro, em 2021, a menção aos momentos em que “o presente sufoca” (p. 273) ganhou uma atualidade inimaginada então. E, diferente de outros períodos autoritários, o epíteto “Brasil, país do futuro” não é mais sequer mobilizado, explícita ou implicitamente, pela divulgação oficial. Ao contrário, num plano afirmado de destruição, nas ações de terra arrasada, está o projeto de esmagar sensibilidades e imaginários de futuros possíveis. As mulheres do livro, as que contam e escrevem, as que pensam e as que se movem para cortar cercas ou fazer entrevistas, contrariam e teimam em mostrar o que está em gesta, que já existe e ao mesmo tempo luta para germinar em força. E só isso bastaria para a utilidade maior do livro.
*Débora Dias é doutora em história contemporânea pela Universidade de Coimbra (Portugal) e pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa.
Referência
Entre o impossível e o necessário: esperança e rebeldia nos trajetos de mulheres sem-terra no Ceará. Recolha e organização: Paula Godinho com Adelaide Gonçalves e Lourdes Vicente. São Paulo, Expressão Popular, 2020, 276 págs.