Por RENATO ORTIZ*
O luxo deve ser inacessível no sentido figurado e próprio do termo
Seria “ostentação” um termo adequado para se apreender o mundo do luxo? A pergunta é sugestiva, de certa forma faz parte de nosso senso comum, dizemos que muitas pessoas têm um comportamento “ostentatório”, “esnobe”, ao consumirem objetos caros e sofisticados. O vínculo entre ostentação e luxo seria assim algo natural.
A noção de “consumo conspícuo”, elaborada por Thorstein Veblen (1857–1929), é certamente a referência principal para o debate. Em seu livro A teoria da classe ociosa (1899), ele estabelece uma distinção entre consumo conspícuo e “emulação pecuniária”; seu intuito é demarcar as diferenças entre as classes sociais. Haveria uma elite que se contentaria em exibir uma vida luxuosa, e os outros, membros das classes inferiores, que através da emulação (imitação) procurariam se aproximar dos estratos superiores. Enquanto alguns afirmariam seu status pelo consumo seletivo de itens específicos, outros buscariam na “imitação” uma forma de atingir uma posição de prestígio que lhes é denegada.
As teses de Veblen foram discutidas por inúmeros autores, porém não é minha intenção retomar esse debate. Quero trabalhar um aspecto específico da noção de consumo conspícuo: a visibilidade. Chamo antes a atenção para a noção em si: a palavra conspícuo existe em inglês, português, italiano, espanhol, mas não em francês (neste idioma, a ideia foi traduzida por consommation ostentatoire). Em espanhol, apesar da palavra existir, o conceito foi também traduzido como consumo ostensible, o que reforça sua aproximação com a ideia de ostentação.
Conspícuo é o que “salta à vista”, “é claramente visível”, “atrai a atenção”; daí sua associação com as coisas “ilustres”, “nobres”, “notáveis”. Para Veblen, este tipo de comportamento refere-se à exibição da riqueza com o intuito de manifestar o status e o prestígio de quem a desfruta. Pressupõe-se assim uma dimensão pública (da exibição) na qual os indivíduos se “medem” uns aos outros, sendo capazes de orientar suas condutas na direção de maximizar ou minimizar suas expectativas de classe. Para isso o consumo deve necessariamente ser visível: ao se expor “à vista de todos”, ele se realiza enquanto afirmação de superioridade; a visibilidade é a materialização de sua existência (o verbo ostentar deriva do latim ostentare, que significa “mostrar”).
Ostentação, luxo, visibilidade. Avanço um pouco mais no cerne de minha argumentação. Não é difícil perceber que a modernidade clássica do século XIX traz com ela a emergência de uma esfera pública, esse é o momento em que surge uma opinião pública. Entretanto, o surgimento deste espaço específico não se restringe à dimensão política, ele possui um significado mais amplo; é a própria noção de espaço que se transforma com a modernidade. O advento do transporte coletivo nas cidades, a invenção do trem e do automóvel (que impulsionam as viagens), têm uma implicação imediata na circulação de pessoas, mercadorias e objetos no seio desse lugar público.
A condição de ser visível torna-se generalizada. Por isso a fotografia é vista como uma espécie de marco inicial desta modernidade, ela é o prenúncio de uma era na qual, através de um mecanismo técnico, a imagem faz a mediação da presença do original em sua ausência. Esta dimensão de ubiquidade irá se acentuar ao longo dos séculos com o desenvolvimento do cinema, televisão, internet. No espaço da modernidade-mundo, a visibilidade dos objetos de luxo ocupa agora uma posição de destaque. Dentro deste quadro, impulsionada pelo mercado global e a expansão desta espacialidade transnacional, a dimensão conspícua do luxo, em princípio, teria se reforçado.
Entretanto, é possível duvidar deste senso comum. Sua verdade não encerra a solidez que aparenta. Retomo, para tanto, algumas questões que desenvolvi em O universo do luxo. Antes de mais nada, esclareço o que entendo por universo: trata-se de um território no interior do qual habita um modo de ser e de estar no mundo, ele é constituído por indivíduos, instituições, práticas e objetos. Uma bolsa Prada ou um frasco de perfume Dior não existem apenas em si; eles adquirem sentido quando articulados a outros objetos (cristais Lalique), outras instituições (Hermès, Louis Vuitton), outras práticas (frequências a hotéis palácios, viagens em iates). É o conjunto desses elementos discretos que configura um universo.
Consideremos o mapa do mercado dos bens pessoais (vestidos, acessórios, bolsas) vendidos nas butiques de luxo. Em termos globais, é possível discernir algumas regiões do mundo no qual ele se concentra: Europa, América, Ásia. No interior desse espaço amplo, observa-se uma concentração por países: Estados Unidos, China, França, Itália etc. E no interior dos países, o que à primeira vista é homogêneo se decompõe em cidades: Paris concentra 76% do mercado; Londres, 83%; Moscou, 94%. Mas, ao nos aproximarmos dessas cidades, percebemos que as lojas de luxo não se situam em qualquer lugar, estando instaladas nos bairros nobres da malha urbana; e dentro deles ocupam poucos quarteirões ou até mesmo algumas ruas (Bond Street em Londres; Rue Saint Honoré em Paris; Quadrilátero Mágico em Milão). O espaço de bens de luxo é formado por pontos descontínuos afastados uns dos outros, mas que se encontram articulados pelo mesmo código. Dito de outra maneira: ele é simultaneamente global e hiper-restrito.
Portanto, não pode existir sem as fronteiras, é preciso deixar claro que as coisas de luxo são “excepcionais”, “únicas”, “perfeitas”, qualidades que as diferenciam do “vulgar”, “banal”. A superioridade dos objetos e das práticas de luxo deve ser realçada e separada do que se encontra ao seu redor (os infinitos objetos da sociedade de consumo). Cultiva-se assim duas virtudes fundamentais: raridade e inacessibilidade. As empresas utilizam a estratégia de produzir a escassez controlada dos objetos para manter uma distância prudente em relação à banalidade das coisas. Evita-se desta forma uma eventual confusão entre o raro e o ordinário, domínios que devem se manter separados. Por exemplo, as séries limitadas de determinados produtos, como o perfume L’Instant de Guerlain: disponível em 750 exemplares, frasco polido à mão e tampa envolvida em ouro fino. O luxo deve ser inacessível no sentido figurado e próprio do termo.
*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda).
Publicado originalmente na revista Suplemento Pernambuco.