Por MARILIA PACHECO FIORILLO*
Estamos tão desacostumados com lindas notícias que quase precisamos nos reprogramar para metabolizar a vitória do bem
Tive o privilégio, em 1988, de fazer a cobertura jornalística do plebiscito sobre a permanência ou não do ditador Pinochet no Chile, publicada na revista Isto é de então. A crônica do cotidiano dessa reportagem-batalha é uma história à parte para contar outra vez. Basta dizer que nós, jornalistas do mundo todo, fomos recebidos inicialmente a pão de ló pela ditadura que reservou uma ampla e sofisticada sala de imprensa no melhor hotel da capital, e dava passe-livre a quem usava crachá.
Claro que os apagões e bombas de lacrimógeno eram diários, constantes. Os ambulantes em Santiago ofereciam com sua sapiência ancestral (aquela idéia de que culturas que comerciam abominam confrontos que só dão prejuízo) anunciavam em voz alta “linternas para los apagones!” e“limones para lacrimógenos”, calmos e diretos! Os mais prudentes de nós estocamos essa artilharia brancaleônica, até que o resultado saísse. O autoengano e a megalomania de Pinochet só tinham rival em sua crueldade, e ele e a junta nos adulavam. Mas na vida como ela é, os comícios do No eram supervisionados por tanques. Dava medo, mas íamos, pois maior era a gana de ver uma sanguinolenta tirania se esboroar.
O No levou. De lavada. Foi magnífica a campanha na TV, tão bem retratada e verossimilhante no filme com Gabriel Garcia Bernal (e sua briga interna na oposição para convencer que uma publicidade calcada no chamado à felicidade, e em balés, cavaleiros pampeiros, humor, cantoria, seria mais eficaz que uma campanha justamente ressentida de acerto de contas).
Muita gente, em Santiago, manifestava encabulada o seu desprezo a Pinochet acionando o para-brisas sem que chovesse, o gesto do não na vidraça do carro. Padres e freiras (a Igreja chilena não era a argentina…) se sentavam nas praças e ruas, numa resistência pacífica recebida a jatos de gás. Horas antes do resultado, passeando pela periferia, presenciei a cena mais comovente de todas minhas reportagens: num ônibus quase vazio, uma senhora de idade, ao ver meu crachá no pescoço, encostou a mão na janela e fez não, várias vezes, com o dedo. Frágil, sozinha, idosa, vulnerável, vítima. Mãe (avó) Coragem.
Isso foi antes do resultado. Quando o No ganhou, de lavada, e não tinha jeito de ser fraudado; nós, jornalistas e observadores internacionais, um minuto atrás intocáveis, apanhamos para valer. E como apanhamos! Então nos abrigamos no roof do hotel antes hospitaleiro, e a cena era tragicômica: parecia um PS de Cruz Vermelha, muitos de nós de braço quebrado, hematomas, muleta e esparadrapo a dar com pau. Lembro do discurso veemente, e aplaudido, do enviado sênior da BBC. Enquanto isso, nas ruas, a população saia de casa, se avolumava epulava em uníssono (é, os chilenos tem essa manha de pular sincronizados) cantando “Chi, chi, chi, lê, lê, lê, que se vaya Pinochet”.
Amarcord, faço eu, com a escusa de falar em primeira pessoa, pois a vitória de Gabriel Boric nas eleições de ontem está longe de ser apenas a vitória da esquerda contra a extrema-direita. É um susto e júbilo. É mais do que parece. É, mesmo que só agora, uma vitória do planeta inteiro.
Soube dela pelo noticiário internacional, pois a mídia convencional brasileira mal tocou no assunto, ocupada com Temer e acadêmicos longilíneos. Soube dela após ter assistido, com pesar a angústia, uma filmagem exclusiva das atrocidades que os militares de Myanmar estão cometendo em vilarejos ao norte, torturando a esmo camponeses durante o dia inteiro e matando dezenas de pessoas, com requintes de crueldade cuja abominação só se compara á fala do porta-voz desse décimo círculo do Inferno (que Dante esqueceu), General Zaw Min Tun. Ele não negou a carnificina, e até a recomendou (filmado). No vídeo, os gritos da netinha pedindo clemência enquanto torturam e assassinam seu avô, que não havia fugido, pois achou que seria poupado jáque mal podia caminhar, são insuportáveis. Embora não sejam exceção: mais uma das centenas e milhares de desvarios, teratologias com que nos anestesiamos todos os dias.
Mesmo sendo eu resiliente por dever de ofício, pois trato do tema direitos humanos em uma coluna de rádio, e acompanho diligentemente Myanmar, Yemen, Siria, Bielorrussia e todo canto dessa transmutação fácil, fácil, de homens em monstros mais horrendos que os de Goya, achei que não aguentaria mais, e mergulharia na acídia, aquele pecado vituperado por Tomás de Aquino.
O intrigante, porém, foi eu tive a reação contrária. Fiquei mais chocada e desnorteada com a notícia seguinte. Atarantada, mesmo, com a eleição de Gariel Boric. Meu corpo e mente estavam tão habituados à barbárie nossa de cada dia que demorou um tantinho para metabolizar a civilização. Estou, estamos tão desacostumados com lindas notícias que quase precisamos nos reprogramar para metabolizar a vitória do bem. Assim, maniqueísta, se preferirem.
Que Boric vai enfrentar dificuldades, ponto pacífico. Que ele representa uma nova esquerda, livre dos chavões cripto-stalinistas que prosperam partout, idem. Que ele é jovem, de outra geração, e isso pode ser tanto um empecilho como uma experiencia inédita, de outra democracia e outra Constituição e outro modo de fazer política que tanto precisamos, idem.
Mas por enquanto quero apenas saborear o sentido recalcado da celebração, do contentamento, da esperança. Por enquanto, sei que a vitória de Boric é um fato de ressonâncias não apenas latino-americanas, mas mundiais. Por tudo que há de excêntrico. Por demonstrar que, assim como a história não acabou, como foi moda há tempos atrás, o novo normal pode morrer de morte natural logo.
Obrigada, Chile.
A alegria já veio.
*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). Autora, entre outros livros, de O Deus exilado: breve história de uma heresia (Civilização Brasileira).