Por LUIZ RENATO MARTINS*
O poder de negatividade da consciência diante do que está posto
A constância admirável da obra de Giorgio Morandi (1890-1964) escapa aos laços da arte moderna com a vanguarda. Também parece alheia à história dilacerada da Itália na primeira metade do século XX. Como explicar tal distanciamento? Apenas a incomum concentração moral em si e o corte racional no modo de atuar podem sustentar tal constância. Logo, trata-se de uma coerência que resulta do poder de negatividade da consciência diante do que está posto, bem como da perspectiva universalizadora dos seus atos.
Mas como se liga o fazer da arte, por si lúdico, a tal rigor ético extremo? A obra de Morandi nasce do diálogo crítico com as correntes da arte italiana de 1910 a 1920. Criteriosamente, Morandi aceita o partido moderno do futurismo, mas nega a apologia aética do dinamismo, o seu ativismo irrefletido. Toma a tensão especulativa da metafísica (de Giorgio de Chirico [1888-1978]), hostil ao mundo da ação, mas recusa desta tanto o teor pré-cézanniano da concepção pictórica como o tema das praças italianas, que evoca uma grandiosidade eternizante. Analogamente, acolhe a remissão do grupo pictórico aglutinado em torno da revista Valori Plastici (1918-21) aos achados tardo-medievais de Giotto (1267-1337) e Masaccio (1401-1428), porém, diferentemente – sem tomá-los como modelo de um classicismo atemporal e nacionalista.
De fato, o eixo do trabalho de Morandi define-se a seguir nos anos 1920. Empresta do Quattrocento o horizonte baixo, que atribuía ao olhar o viés de protagonista, a ideia de agir sobre as coisas: em suma, adota o foco da razão, o da visão que domina o espaço.
Com efeito, na Florença paradigmática do Quattrocento (da manufatura têxtil e das primeiras lutas operárias dos Ciompi), que aperfeiçoou a representação do espaço natural via a invenção da perspectiva geométrica, o otimismo histórico inerente à ambição de impor medidas humanas ao mundo ecoava numa ordem plástica equilibrada e simples. Morandi retoma tais elementos em nova chave. Horizonte baixo, equilíbrio e simplicidade atestam, também agora no trabalho de Morandi, a fundação explícita do ato plástico.
Entretanto, a diferença ante os antigos é dada pela não-transparência do mundo – vale dizer, por um sujeito sem otimismo. Assim, se outrora cabia geometrizar o espaço natural e afirmar o poder humano em geral, já Morandi em seu tempo se atém ao primado da razão e à sua noção de espaço. Logo, não à tradução do espaço natural, mas à exposição da ideia de espaço gerado pela espontaneidade da razão.
Tal reviravolta equivale na arte ao que Giulio Carlo Argan (1909-1992) resumiu como postulado de Cézanne (1839-1906): “A identidade entre pintura e consciência”. Nesse sentido, Argan sintetizou a premissa do período aberto por Cézanne: “O espaço é a realidade como vem colocada e experimentada pela consciência, e a consciência, se não abarcar e unificar o objeto e o sujeito, não é total”.[1]
Desse modo, é pela lição prévia impressionista, a da afirmação do plano bem como dos volumes e da luminosidade como relações de cores – lição reelaborada e reestabelecida criticamente por Cézanne –, que Morandi refuta o classicismo e se insere num ponto da história moderna.
Nessa “perspectiva da consciência” – comum (apesar das diferenças aparentes) a Pablo Picasso (1881-1973), Piet Mondrian (1872-1944) e Paul Klee (1879-1940), entre outros –, o que distinguiria Morandi? A meu ver, a consciência dialógica, o respeito intransigente à alteridade, que – ao contrário de todo unilateralismo – pede o diálogo com o outro, o desdobrar-se da consciência numa alteridade opaca, que o objeto encarna. Assim, na arte existencialista e fenomenológica de Morandi, dramatiza-se a imanência da consciência diante da opacidade irredutível da matéria.
Num prisma, digamos, estóico, inscrito na tradição italiana, a arte de Morandi aparece como dramática. A repetição dos seus motivos acentua a incerteza essencial quanto ao próprio desfecho, que faz de cada trabalho expiação da liberdade no plano da consciência, e, de cada obra, resultado irredutível, sem sinal de método.
A relação não repetível de tons e formas, que distingue cada peça, denota a via problemática que leva a consciência ao embate vão e incerto, quixotesco até, com a matéria. Com efeito, como ordenar o novo espaço plástico, partindo da perspectiva moderna da consciência? Nesta, sabe-se, não cabem antigas premissas pictóricas dicotômicas, inerentes ao dogmatismo e ao dualismo do senso comum: aquelas em que o espaço vige como recipiente da luz, a matéria precede à forma, bem como, o objeto, por sua vez, ao juízo do sujeito…
A Morandi, não lhe resta, pois, senão pintar “ao revés”, invertendo assim os termos da determinação das qualidades na pintura da tradição europeia pós-Caravaggio (1571-1610), em que se cristalizou o uso da luz como juízo de valor. Logo, Morandi parte da consciência – análoga no trabalho à imediatez do fundo ou do suporte – em busca da opacidade da matéria; noutras palavras, estabelece a alteridade da garrafa, no meio do caminho… As formas e cores das figuras surgirão como que cingidas pelo que está ao redor; sob pressão do fundo, do suporte – ou da consciência: enfim, como eclipses ou sinais de resistência à luz.
A opacidade dos objetos e da matéria à consciência vem realçada por um quê de sombrio ou por um branco espectral, sem arrefecer a tensão própria à consciência. Se objetos e matéria – enquanto avessos à consciência – não se rendem; por outro lado, as variações de luz, os restos da vã reflexão fazem-se imediatos e consistentes ao nosso olhar, obtendo as qualidades físicas requeridas à sua tradução em massas e volumes. Vêm estruturar assim a determinação recíproca entre espaço e luz, segundo a sincronia moderna de pensamento e espaço.
Logo, o volume, o limite das coisas, as variações de luz surgem como relações concretas. Nota-se a fabricação da luz e a produção do espaço – a ocorrência do pensamento na consciência – mediante manobras claras e distintas: nas telas, o vaivém do pincel, os limites desfeitos, o drama dos tons; nas gravuras, o variar da malha regular dos traços; nos desenhos, a incorporação do suporte etc.
*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Haymarket/ HMBS).
Revisão: Gustavo Motta.
Editado a partir do original publicado sob o título “A perspectiva da consciência”, em Jornal de Resenhas/ Folha de São Paulo, n°. 25, 11 de abril de 1997.
Nota
[1]. Cf. G. C. Argan. Arte Moderna: do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos. Prefácio: Rodrigo Naves. Tradução: Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo, Companhia. das Letras, 1993, p. 375, 504.