Por VALÉRIA DOS SANTOS GUIMARÃES*
Capítulo do livro recém-lançado “Imprensa, história e literatura: o jornalista-escritor”, organizado por Isabel Lustosa e Rita Olivieri-Godet
O jornal foi referência onipresente durante o século XIX para qualquer escritor. A partir da metade desse século em diante, as notícias do cotidiano passaram a encher as páginas dos mais variados veículos de comunicação e ganharam espaço cada vez maior com o avançar dos anos. A imprensa periódica brasileira do início do século XX ecoou essa tendência, a despeito de suas tiragens modestas quando comparadas às de países com maior tradição na atividade impressora. Em Paris, onde a dinâmica da imprensa era notável, em todos os níveis, inclusive com uma prolífica imprensa popular recheada de casos escandalosos, o diálogo que se estabeleceu entre cultura midiática e arte erudita alcançou em cheio os variados espectros dos movimentos modernistas. De forma singular, mas como parte de um mesmo inevitável contexto, a intelectualidade brasileira também não estava ilesa à linguagem, ao ritmo, ao formato que o jornal impunha à escrita.
Este artigo trata de um exemplo marcante do modernismo paulista em que a linguagem do jornal, sobretudo aquela das notas de variedades e de seções policiais, contaminou a linguagem literária: o caso de Oswald de Andrade. Oswald mostrava-se em dia com procedimentos artísticos adotados pela vanguarda do modernismo europeu, entre eles esse intenso diálogo entre referências do cotidiano presentes nos periódicos e a arte erudita, o que nem sempre caiu bem para o gosto conservador local. Tem-se como objetivo, igualmente, mostrar como ele pode ser considerado um passeur culturel ao atuar como intermediário entre as tendências estrangeiras, sobretudo do meio intelectual francês com o qual estabeleceu sólidos contatos, e os debates em torno da questão da identidade e da nacionalidade na nossa literatura.
Seguramente foi ele um intelectual múltiplo e exemplo acabado de escritor-jornalista ao transitar com facilidade por essas instâncias da escrita. Literato, ele usou a tribuna para publicar literatura, crítica e opinião engajada, homem entre culturas, capaz de atuar como mediador entre mundos e códigos diversos. O aspecto que se destacou nesse artigo é, todavia, aquele do intelectual cujo texto literário deixou-se assumidamente contaminar-se pela linguagem do jornal. O momento mais emblemático, talvez inaugural, dessa marcha do autor em direção à experimentação e à absorção assumida e proposital da escrita do jornal em sua obra literária encontrou sua melhor expressão em Os Condenados, mal recebida pela crítica e tida como obra menor justamente pela distância que tomou do cânone literário.
A extensa fortuna crítica que trata do modernismo brasileiro em geral e do legado literário de Oswald de Andrade em particular não estabelece tais relações, não diretamente ao menos. A obra de Vera Chalmers[1] aborda seu trabalho no jornalismo, o que fundamentou alguns dos argumentos aqui defendidos, mas não explora a contaminação entre a escrita do jornal e a artística na obra aqui referida. Clássicos sobre o modernismo paulista referenciados no decorrer deste texto tratarão da questão da aparente contradição entre o internacionalismo e a busca da nacionalidade, mas não passam diretamente pela problematização desse aspecto em Os Condenados.
Alguns anos depois de termos apresentado este artigo na forma de uma comunicação no colóquio “Imprensa, história e literatura: o jornalista escritor”,[2] uma exposição em Paris intitulada “Oswald de Andrade: Passeur Anthropophage” destacou o papel que este autor exerceu como mediador cultural entre Brasil e França sem, contudo, mencionar o livro aqui posto em relevo, livro este que, como defendemos, não só se inspira na linguagem do jornal como também atesta a renitente presença da francofilia nos movimentos artísticos brasileiros, mesmo no seio do modernismo cuja busca da “cor local”[3] poderia fazer supor a recusa da herança estrangeira, incluindo aí o referencial cultural francês.
A proposta, assim, é analisar o contexto em que o livro Os Condenados foi escrito, sua repercussão na crítica especializada, a atmosfera estética da qual foi fruto, incluindo as trocas culturais estabelecidas com os grupos europeus, principalmente franceses, e como a escrita do jornal foi decisiva no estilo ali adotado, principalmente a escrita (e leitura) de faits divers por uma geração da qual Oswald é um dos exemplos.
Os Condenados
1922. Teatro Municipal de São Paulo. No palco, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Mário de Andrade, Sérgio Milliet entre outros. O pano sobe, Menotti apresenta os “novos escritores” à plateia repleta e Oswald começa a leitura das primeiras páginas de seu romance inédito Os Condenados. Nem abriu a boca e vaias e mais vaias. Enfim, após minutos, o silêncio volta a reinar. Tenta recomeçar e as vaias estrugiam novamente. Na terceira tentativa ele conseguiu ler o trecho em que a prostituta Alma “mostra ao espelho do seu quarto os alvos seios manchados de apertos”,[4] imersa em sensações de amor e ódio por seu amante e cafetão Mauro Glade. Em artigo intitulado “O Modernismo”, de 1954, Oswald conta suas memórias daquele dia quando se viu exposto às vaias selvagens: “Devia ter lido baixo e comovido. O que me interessava era representar meu papel, acabar depressa, sair, se possível. No fim, quando me sentei e me sucedeu Mário de Andrade, a vaia estrondou de novo”.
Oswald lera, na verdade, um trecho da primeira parte da Trilogia do Exílio, subintitulada Alma e que “nada tinha de excessivamente moderno ou revolucionário”,[5] como o próprio autor testemunha. Alma foi escrita entre 1917 e 1921 e, finalmente, junto às duas outras partes, Estrela de Absinto, de 1927, e A escada, de 1934, formou o romance Os Condenados relançado em edição completa em 1941.
A primeira publicação da trilogia data de 1922, após a leitura descrita acima no Teatro Municipal, no evento considerado pelos paulistas como fundador do movimento modernista no Brasil, a Semana de Arte Moderna. A recepção da crítica ao livro foi, em geral, péssima.[6] Paulo de Freitas[7] escreveu que Oswald: “foi meticuloso na tecnologia do lupanar, e mestre, mestre consumado, na propriedade do calão da meia-noite”,[8] que tinha “talento no manejar da gíria dos lugares escusos, com que os garatujadores da rua cobrem as paredes das cloacas”. Ainda nas palavras de Freitas, seu uso do “argot” (gíria), sua exploração da “cancerosidade das torpezas humanas” e do “borbotear purulento do veio da prostituição” é inadmissível como arte, e o crítico brada: “se nisto é que reside a arte, abram-se de par em par as portas do meretrício, e sejam às claras as torpezas que lá se fazem, para que se apurem na estética das sentinas os prosélitos da arte nova”.
A indignação do crítico é tão infrene quanto as vaias do Municipal e vem recheada de palavras duras contra os “novos” – os autoproclamados modernistas – a quem chama de “vândalos do mau gosto e da depravação literária e social!”, “cabotinos cínicos, deslavados cabotinos, (…) detratores da moralidade” para finalizar, em tom agônico “para trás que nós; (…) nós, os passadistas; nós os retrógrados em arte, aqui estaremos, em defesa da sociedade paulista (…)!”. O crítico referido acima não disfarçou: ele representava a conservadora sociedade paulista contra o romance Os Condenados, que considerava imoral.
Termos como “escandaloso”, “imprevisto” e “comburente” serviram para adjetivar o romance que se passa nas noites de boêmia paulistana, entre prostitutas, cáftens e tipos comuns dos bas-fonds da pauliceia. Oswald mostrava o lado obscuro daquela sociedade que tanto se afirmava como bela, limpa, higienizada, saudável, rica, alva, branca, que se via como superior, enfim, regenerada.
Em Os Condenados encontramos, sim, uma história paulistana, repleta de seus tipos típicos, com temas do mundanismo, mas também da pobreza, das ruas mal frequentadas, dos bêbados, dos velhos sobrados de rótulas, do carnaval, do circo e das procissões, ao lado dos bondes, dos carros, das fábricas, das locomotivas, dos modernos viadutos, do cinema e de tudo o que dita o ritmo da caótica cidade em expansão. Seus principais personagens, porém, personificam o que era visto, então, como a “escória”, a começar pela protagonista, Alma, prostituta apaixonada pelo cafetão Mauro Glade. Mulher linda a despertar paixão em homens como o telegrafista João do Carmo ou em seu primo escultor, Jorge d’Alvelos que aparece já ao fim do primeiro volume, mas só ganha espaço na última parte da trilogia.
O que causou tal alarido, supomos, foi a presença incômoda desses personagens e situações que pareciam ter saído das seções de faits divers dos jornais. Mas não era apenas uma questão moral. O que incomodava na linguagem chula não era somente o rebaixamento provocado pelo emprego do realismo, o fato de estampar nas “nobres” páginas de um livro aquela gente que não deveria ter existência senão nas páginas de um “reles” jornal ou nos processos policiais e que em nada personificava os anseios de um brasileiro civilizado. O desconforto veio também pela inovação estética a que Oswald se lançara em seu romance de estreia: o intenso emprego da gíria, como destacado por seu crítico detrator, mas sobretudo a ação descontínua com muitos cortes, a escrita telegráfica sugerindo ações simultâneas que traduziam o compasso frenético da metrópole. Tais recursos maculavam os conceitos do que era considerado boa literatura, para irromper o campo da arte com aquela linguagem tão desprezada que era a linguagem dos jornais, fenômeno que não era exclusivo do Brasil.[9]
Se a experiência oswaldiana não foi tão radical como em outras obras que ele escreve concomitantemente à Trilogia do Exílio – Memórias Sentimentais de João Miramar (1919), Manifesto Pau-Brasil (publicado no Correio da Manhã em 1924) ou Serafim Ponte Grande (1932) – ela foi, sem dúvida, definitiva. E não por seu apuro técnico ou estético, que pode mesmo ser posto à prova, mas pela utilização ousada da linguagem do jornal por este que foi, de fato, um verdadeiro escritor-jornalista “comprometido com os novos tempos”.[10]
Alguns de seus contemporâneos perceberam essa manobra como algo positivo, ainda que fossem menos numerosos que seus críticos. Oswald foi considerado ultrafuturista por Carlos Drummond de Andrade: “um grito de novidade”, dizia ele já em 1922. Monteiro Lobato foi simpático à sua tentativa de reproduzir em linguagem o “processo cinematográfico”.[11]
Mas a tônica da reação à obra foi o escândalo e desagrado. E, sem dúvida, foi a ingerência dos rodapés das folhas cotidianas na sagrada linguagem literária que abalou os primeiros pilares da erudição canônica tupiniquim. Isso rompia com a linearidade da prosa da literatura local, mesmo naquela dita moderna, que caracterizara a ambiguidade dos primórdios do modernismo paulista, entre regionalismo e nacionalismo[12].
Como os dadaístas, a experiência de Os Condenados é colagem, sobreposição, assemblage que notamos em sua escrita sincopada. A referência ao jornal, ao automóvel e ao cinema é consequência dessa busca pela incorporação do realismo e da exaltação da tecnologia tão típica do futurismo[13], entre outros “ismos” do momento. A busca do “elemento nativo” se dava no índio e no negro, mas também na “reabilitação do nosso falar cotidiano que o pedantismo dos gramáticos tem querido eliminar de nossa língua escrita”, como afirmava Paulo Prado em prefácio à Poesia Pau Brasil.[14]
Forma e conceito apresentavam-se, assim, como questões para Oswald,[15] uma elaboração ainda em curso que em Os Condenados aplicou-se no diálogo deliberado com o leitor – uma provocação da sensibilidade da época, que soava agressivo a alguns leitores, como se vê por certas reações. Em sua expressão plástica, a primeira fase do modernismo brasileiro apresentou a singularidade de articular o discurso estético incipiente e a cultura midiática, segundo tese de Annateresa Fabris que se encaixa nos propósitos aqui defendidos. Oswald traduziu na sua literatura uma reflexão moderna, que enfrentou o conceito tradicional de arte, mas não podia abandonar a forma e o tema da nacionalidade, da cor local. Essa aparente contradição entre a dissolução da identidade, proposta pelas vanguardas europeias, e a afirmação da brasilidade, é o que distingue um modernismo desprovido de modernidade, segundo a autora.
A caricatura – a que os tipos sociais retratados de Os Condenados remetem – os temas cotidianos, mundanos, a escrita sincopada são elementos que em tudo referenciam essa fase precursora do modernismo brasileiro. O jornal foi, como sabemos, suporte privilegiado de expressão de toda uma geração. Em suas páginas, ganhava-se o apoio do público, quer através do fomento da polêmica aberta, quer usando o espaço para explicação didática das propostas vanguardistas.[16] Em Os Condenados a opção pela polêmica e o uso da linguagem do jornal se unem em atitude deliberada e de tal modo impetuosa que soou provocativa a uma crítica de arte desatualizada.
Pouco importa nessa lógica que as obras apresentadas fossem imaturas ou aproximadamente modernas. O que importava era desafiar um gosto consolidado, anunciar o porvir a partir de um presente inquieto e interrogador, estratégia que, sem dúvida, incomoda, como demonstram a vaia reservada aos escritores no segundo festival e a polêmica que toma conta dos jornais durante o evento e, em alguns casos, ainda um mês mais tarde. O que deve ser sublinhado é que tais manifestações, embora não modernas em termos puristas, são percebidas como modernas pelo ambiente ao qual se dirigem.[17]
O grupo paulista
O grupo paulista buscava a atualização do “discurso nacionalista de oposição”[18] vinculado ao naturalismo e realismo. Em que pese as limitações, a busca era por libertar-se do realismo sem abdicar de pintar os tipos populares, captar a luz do interior, se insurgir contra os temas burgueses e da Escola Nacional[19], o que por si só já constituía uma ruptura, ainda que muito diversa daquela promovida pelos modernistas europeus. Foi uma “remodelação” mais que uma superação ou negação.
Olhando para o entorno, não podiam nossos modernos ao mesmo tempo romper com a “representação da realidade exterior”,[20] do estrangeiro. Mas enquanto alguns negavam os movimentos radicais como fez Mário de Andrade em relação ao cubismo, outros, como Oswald, viam nessa referência do exterior o único sentido possível. O jogo nacional versus estrangeiro ainda estava incipiente em Os Condenados, embora seja possível notar a tentativa de captar as cenas do real, em seus aspectos físicos e sociais, “trazendo em seu interior substratos realistas/naturalistas do século XIX”,[21] ao lado do experimentalismo da forma, do ritmo ditado pela realidade técnica das rotativas, dos carros, dos fluxos de pessoas, veículos e mercadorias da cidade.
Cedo, nutrido pela poesia dos jornais, Oswald pintou um quadro vigoroso da nossa sociedade exposta às contradições de uma modernidade claudicante. Assim como na pintura de Tarsila do Amaral, Almeida Junior ou Di Cavalcanti, os personagens de Os Condenados são realistas, ainda que de um realismo estilizado, “modernizado”.
Experiência semelhante fora feita por Alcântara Machado em seu Brás, Bexiga e Barra Funda e Pathé Baby[22] com seu retrato, segundo Mário Guastini, de “alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e cotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. (…) Mas ao fixar esses aspectos, o autor (…) foi apanhar seus tipos muito ao rés-do-chão. Mergulhou, talvez, na maioria.”[23]
Ou, como Mário de Andrade disse, respondendo às críticas contra o Brás, Bexiga e Barra Funda: “Andam falando que o livro é regionalista, e eu enquizilo com certas críticas fáceis. O livro são contos passados em São Paulo, trata dum fenômeno étnico que está se dando também em São Paulo e aproveita o patuá peculiar a certa gente de São Paulo, não tem dúvida. Porém, a fonte inspiradora, a força de comoção (do) livro está na luta racial, no contar a fusão étnica fatal proveniente dos fatores que provocam e fatalizam a adaptação, luta e fusão que não se peculiarizam a São Paulo, porém coisa de muitas terras e todas as terras vivas”.[24]
Não por acaso, Alcântara Machado abre seu livro com o prólogo “Este livro não nasceu livro: nasceu jornal”. Poderíamos ainda citar muitos outros exemplos desta relação promíscua entre jornal e literatura, de Machado de Assis a João do Rio, muito admirados por Oswald (passando por tantos outros autores aqui citados). Sem falar em Sylvio Floreal ou Nelson Rodrigues, um rechaçando e outro assumindo deslavadamente e com orgulho essas conexões estéticas. Mas fora como ato de precursor e, sobretudo, de consciente modernismo que Oswald, tal qual Alcântara Machado, precipitou-se nos rodapés dos jornais para traduzir a brasilidade em sua trama. Não é nem a piedade de Dostoievski, nem o pitoresco de Aluísio Azevedo, é o “elemento nacional” sob a ótica modernista.
Anos depois da primeira experiência com Alma, em A Escada, última parte da trilogia publicada em 1934, o suicídio do escultor Jorge d’Alvelos em seu ateliê no Palácio das Indústrias, personagem inspirado em Victor Brecheret, aparece no livro protagonizando uma notícia de jornal. Era terça-feira de carnaval. Jorge, pequeno-burguês, boêmio, viajado pela Europa, apaixonado por Alma (que vira morrer vítima de uma surra do cafetão), enfim, incompreendido em sua arte vanguardista pela tacanha sociedade paulistana, fantasiou-se de Pierrot e matou-se. No dia seguinte, seu amigo músico Torresvedras lia no jornal seu suicídio: “Torresvedras acordou quarta-feira, às quatro horas da tarde. (…) Um vendedor de jornais passou, gritando. Comprou uma folha vespertina. Desdobrou-o à janela e leu de repente: “Madrugada de cinzas – Um estranho suicídio” (…) Fora no Palácio das Indústrias. “Na antemanhã, circundado de lâmpadas esguias, o portento Florentino envolvia-se num grande manteau”… “pierrot de seda e alvaiade” [Torresvedras] … queria saber o nome… “em decúbito dorsal, os pés voltados para uma estátua quebrada”… Era ele… desespera-se o amigo músico na sua leitura sôfrega do jornal. Quis rasgar o jornal (…) E leu no fim: “Pierrot que ora repousava tranquilo no mármore do necrotério não era mais que um escultor brasileiro, de nome Jorge D’Alvelos, com trinta e dois anos de idade, recém-chegado de Roma. O motivo do trágico destino foram amores contrariados”.[25]
E o narrador (Oswald) continua: “O folhetim policial da gazeta paulista não dissera a verdade lancinante que foi para [os amigos] Carlos Bairão e Bruno de Alfenas encontrarem (…) o corpo hirto de Jorge”.[26]
Exemplos como esse são inúmeros em todo livro, da primeira à terceira parte. A citação a jornais é recorrente. Muitos personagens leem jornais, principalmente a seção de faits divers, em uma retroalimentação metalinguística. Escrita vista como repugnante, banida pela boa gente literata, condenada em relatórios judiciários como contagiosa por seus maus exemplos,[27] descrevendo um submundo rejeitado pelo bom gosto, o fait divers parece ter sido o que inspirava o jovem moderno Oswald em busca do “tipo” nacional. Em meio à tentativa de definição de identidade dominada pela retórica racista e pela estética parnasiana, Oswald vai buscar o “primitivo e o puro”[28] da nossa identidade no realismo mais genuíno, que a linguagem dos jornais cotidianos tão bem traduzia.
Oswald jornalista
Oswald, antes de escrever Os Condenados, já havia trabalhado com jornalismo. Nascido em 1890, em 1909, com apenas 19 anos, mesmo ano em que ingressou na prestigiosa Faculdade de Direito do Largo São Francisco, escrevia no jornal paulista Diário Popular[29], na seção “Teatros e Salões”, deixando a atividade em 1912, para fazer o tour pela Europa.
Antes, porém, conhecera a experiência de editor com o periódico O Pirralho que fundou em 1911. Jornal hebdomadário, satírico, era voltado às camadas mais abastadas, acolhendo colaboração da literatura parnasiana[30] ao lado de nomes que despontavam como importantes na consolidação do movimento moderno[31]. De volta do estrangeiro, trouxe a tiracolo uma francesa, Henriette Boufleur, a Kamiá (com quem teria seu primeiro filho) e o Manifesto Futurista de Marinetti. Dessa viagem, ele extrai o que seria a experiência fundadora de seu modernismo: o contato com as vanguardas, sobretudo francesas.[32]
As trocas culturais com a França davam a tônica na intelectualidade sul-americana, ou até mundial, e não era de surpreender que, mesmo em um movimento marcado pela busca do “primitivo”, pelo “elemento nacional”, predominasse o francês – língua daquela que era capital cultural do planeta desde o século XIX. A francofonia no Brasil, notável durante o século XIX, ainda se pronunciava com vigor nesse início de século em uma série de manifestações que iam da abundância de galicismos na prosa ou poesia até a intensa circulação de impressos em francês, de livros a revistas especializadas em todos os campos do saber, veículos privilegiados igualmente do influxo das novas ideias. São vários exemplos de artistas sul-americanos que escolheram esta língua ou pátria para suas investidas vanguardistas, como o poeta chileno Vicente Huidobro ou o peruano César Moro.[33]
Disse, a esse respeito, Paulo Prado: “Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia.”[34] E o próprio Oswald admitia que ser modernista “Era para homens que haviam sofrido Paris na pele como eu”.[35] Ele voltou a Paris em 1923, quando viajou também à África com Tarsila, conheceu Blaise Cendrars e escreveu sobre o panorama intelectual europeu para o jornal Correio Paulistano.
Assim, a ruptura radical com os padrões colonialistas proposta pela Semana de Arte Moderna é facilmente contestada. E isso vai bem além da adoção da língua francesa na expressão artística nacional, o que foi notado – e ironizado – por Blaise Cendrars, uma das célebres amizades estrangeiras de Oswald e que rendera bons frutos nestes diálogos transnacionais. “Foi Oswald de Andrade o profeta do modernismo em São Paulo, quem veio me buscar em Paris… (…). Aqueles jovens modernistas tinham um talento louco, espírito, graça, um vocabulário popular, cheio de gíria, negro, e um senso apurado de provocação e polêmica, da atualidade. Mas o que sobraria depois de duas, três décadas? Nada (…). Assim como era praticado, todo esse Modernismo não passava de um vasto mal-entendido.”[36] Conforme amadureciam as propostas vanguardistas e os modernistas brasileiros refinavam as questões conceituais que dariam condições para a ruptura estética aqui só completada nos anos de 1950, mais se distanciavam da busca de uma brasilidade de padrões realistas. O que era um equívoco para Blaise Cendrars era, na verdade, a característica do modernismo local, mesmo que pareça paradoxal.
Independente da excessiva reverência cultural ao estrangeiro, Oswald destacou-se como verdadeiro passeur culturel. Ele sintetizava a figura de um tradutor cultural, que estabelece uma conexão entre dois polos distintos, criando pontos em comum e possibilitando sua comunicação efetiva. Contrapunha-se à literatura ainda dominante, aglutinava pessoas, servia de centro irradiador e incentivador de novidades e, sobretudo, tentava imprimir as conquistas das vanguardas europeias em solo brasileiro de maneira pioneira, sendo ele próprio inovador em grande medida,[37] contrariando a versão de que o modernismo brasileiro tenha sido mera cópia. Não sendo a ruptura radical que se queria fazer crer, também não foi mera papagaiada.
Essa ambiguidade entre a busca de uma escrita com a cor local e a abertura para o estrangeiro, portanto, nada tem de errado e seria bem justificada no movimento antropofágico (1928 e 1929, 1a e 2a dentições, respectivamente – com a publicação da revista de Antropofagia, com Raul Bopp e Alcântara Machado). Data desta época uma tentativa de levar a experiência artística brasileira para os palcos parisienses, em uma típica operação de aller-retour. Nosso futuro líder modernista escreveu em 1916 duas peças inteiras em francês em parceira com outro ícone moderno, Guilherme de Almeida, Mon Cœur Balance e Leur Âme. Mas como bem observou Jorge Schwartz “Num período em que ainda não existia o que hoje se conhece como mercado editorial, imprimir livros latino-americanos em Paris ou mesmo escrever em francês não é motivo para considerarmos isso um efeito de ausência de nacionalismo, como inclusive chegou a ser apontado na época”[38]. As peças não foram encenadas em Paris, mas tiveram publicações em revistas mundanas brasileiras como A Cigarra e chegaram ao palco discretamente em São Paulo.[39]
É neste turbilhão de acontecimentos e idas-e-vindas da vida artística nacional, entre as referências eruditas, experiências radicais da vanguarda e predominância na intelligentsia brasileira do tradicionalismo na sua mais lata acepção, que Oswald escreveu a primeira parte d’Os Condenados, o que ocorreu após seu retorno da Europa, um ano depois da parceria com Guilherme de Almeida nas duas primeiras peças escritas em francês, quando já era redator de outro importante cotidiano brasileiro, o Jornal do Comércio[40]. O trabalho neste jornal, bem como no Diário Popular e no Pirralho, sem dúvida exerceu influência no estilo oswaldiano. De leitor assíduo de jornais – como, de resto, era toda esta geração de escritores – torna-se ele mesmo um escritor-jornalista.
E suas experiências no jornalismo se multiplicavam. Ainda em 1916, ele passou a escrever na revista mundana A Vida Moderna. Em 1917, quando retomou o curso na Faculdade de Direito, instalou-se numa garçonnière no Centro de São Paulo que se tornou local de discussão das novas tendências estéticas e ponto boêmio dos moços chics. Era frequentada por Guilherme de Almeida (com quem vai editar a revista Papel e Tinta nos anos 20), Menotti del Picchia, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e outros[41]. Em fevereiro de 1918, O Pirralho fechou as portas, depois de ter perdido sua força satírica, não sem antes ter trechos do novo romance de Oswald publicado, Memórias Sentimentais de João Miramar. Seu senso de modernismo estava à toda. Ele reagiu às duras críticas de Monteiro Lobato feitas à sua colega, a pintora Anita Malfatti em episódio bem conhecido. E ainda, publicou na revista Klaxon a partir de 1922.
E foi neste mesmo ano que começou a colaboração no jornal A Gazeta, que durou apenas um ano, quando passou o cargo para um amigo desempregado. Esse vespertino que começou a ser publicado em 1906, era o jornal mais sensacionalista de São Paulo na época, a despeito dos esforços do novo editor, Cásper Líbero, em reformá-lo a partir de 1918, quando entra no jornal[42].
Fundado por Adolpho de Campos Araújo, implantou um ar moderno com sua diagramação ousada, manchetes garrafais que atravessavam colunas. Começou com seis páginas. Atravessou várias crises, o que se refletiu em uma sequência de mudanças de proprietários e colaboradores. Seus faits divers eram longos e muito dramáticos, com o uso de manchetes, nariz de cera, muitos subtítulos e, precocemente, fotografias.
Tinha Voltolino como caricaturista, com produção quase diária, sempre fazendo trocadilhos com os temas que estavam em destaque no jornal. Lida por mais de quinze mil pessoas[43] entrou em crise após a mudança de proprietários em fins de 1916 e sob a nova administração tomou vários processos por calúnia, acabando 1917 com tiragens de dois mil exemplares. Durante todos estes anos o sensacionalismo era intenso em suas colunas. Em 1918, entrou Cásper Líbero[44] com uma política de modernização do jornal.
É neste contexto que Oswald passou a ser repórter – seria Oswald autor dos sensacionais faits divers deste jornal? Difícil saber, uma vez que não eram artigos assinados e não há referência a isso em sua autobiografia, na qual, por sinal, cita a experiência com a Gazeta de forma sucinta. Independente de escrever ou não as notas do cotidiano, sempre mais numerosas em vários veículos da época, era essa a atmosfera que também nutria os ávidos leitores de jornais que foram os modernistas, dentre os quais Oswald. Esse fenômeno editorial certamente afetou o jovem modernista e a linguagem de seu romance de estreia inspirado em seções como Scenas de Sangue, Últimas, Última Hora, Os crimes sensacionais, As tragédias passionais[45], Os crimes passionais[46] e outras.
Cabe observar que os jornais da tarde, em geral, traziam mais faits divers que os matutinos, onde saíam as notícias “sérias” do dia. Não à toa, Oswald destaca o fato de ser um vespertino que noticia o suicídio de Jorge d’Alvelos. Nos anos seguintes são vários os periódicos da grande imprensa em que vai escrever, como o Correio Paulistano, Correio da Manhã, o qual também dava grande espaço ao sensacionalismo, entre outros jornais e revistas em que publicou e editou, engajando-se, inclusive, na imprensa comunista após 1930, quando filiou-se ao PC e publicou, com Pagu, o jornal O homem do Povo. Embora não tendo sido “um jornalista de carreira. (…) Esta escritura de circunstância tem uma importância nem sempre apenas de segundo plano no conjunto de sua obra”, como nota Vera Chalmers.[47]
No momento mesmo em que escrevia Os Condenados, Oswald foi ele próprio tema de um escândalo, fartamente noticiado nos jornais que lia e em que escrevia. Era o “caso” Carmem Lydia, estampado em letras garrafais em primeiras páginas e seções de escândalos policiais. A moça era uma jovem bailarina que conheceu na viagem à Europa (de onde trouxe Kamiá) e que era tutelada pela avó e Amadeu Amaral. Com técnicas modernistas aprendidas em seus estudos em Londres e Itália, Carmem Lydia logo deixou Oswald apaixonado, segundo consta[48], mas que se saiba nada jamais foi consumado. Fato é que ele promoveu a moça e suas técnicas inovadoras para a época no provinciano meio artístico paulistano e acusou sua avó de explorá-la, o que rendeu processo e expôs seu nome e sua foto pelos jornais.[49]
O fait divers estampou A Gazeta dia 20 de janeiro de 1917 (entre outras folhas) que trouxe a foto de Oswald em destaque (Fig. 01). Os ecos desse affair podem ser sentidos no decorrer do Condenados, como a sublimar a intrometida, incômoda e barulhenta escrita do fait divers com sua prosa libertária. Em que medida esses elementos tiveram papel na obra aqui destacada, é difícil precisar. Mas é possível perceber que a constelação temática não era alheia, menos ainda o tom melodramático de um jornalismo ainda em vias de se profissionalizar.
Fig. 01. O caso da dançarina – Carmen Lydia. No detalhe, foto de Oswald de Andrade
A Gazeta, São Paulo, 20/01/1917.
As experiências de Oswald em veículos da imprensa brasileira, somadas à sua função de mediador cultural, foram fatores essenciais para sua estética e para o papel central que ocupou no modernismo brasileiro. Naquele momento fundador, a linguagem do jornal, inclusive aquela do faits divers, é a que melhor parecia traduzir os anseios de renovação literária de toda uma geração e ele deixou, sem medo, que sua escrita fosse por ela contaminada.
*Valéria dos Santos Guimarães é professora de história na Unesp. Autora, entre outros livros, de Notícias diversas: suicídios por amor, leituras contagiosas e cultura popular em São Paulo dos anos 1910 (Mercado de Letras).
Referência
Isabel Lustosa e Rita Olivieri-Godet (orgs). Imprensa, história e literatura: o jornalista-escritor, vol. 2, Ser ou não ser jornalista: o fim da era romântica. Rio de Janeiro, 7 Letras / Fundação Casa de Rui Barbosa, 2021.
Notas
[1] CHALMERS, Vera. Três linhas e quarto verdades – o jornalismo de Oswald de Andrade. São Paulo: Livraria Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976.
[2] Realizado na Fundação Casa de Rui Barbosa em princípios de agosto de 2014.
[3] Oswald de Andrade: Passeur Anthropophage. Curadoria: José Leonardo Tonus e Mathilde Bartier. Centre Georges Pompidou, Paris, janeiro/2016.
[4] ANDRADE, Oswald (1927 [1970]). Os condenados. São Paulo: Círculo do Livro, 1970, p. 39.
[5] ANDRADE, Oswald. “O Modernismo”. Revista Anhembi, São Paulo. n. 49, 1954.
[6] “Mas quando do aparecimento do seu primeiro volume, a crítica tradicional – ou os que emitiam opiniões sobre livros pelos jornais e revistas – ficou perplexa, aturdida mesmo. Praticamente só a compreenderam companheiros de geração e uns poucos espíritos mais abertos, entre a intelectualidade detentora do poder literário e cultural”. BRITO, Mário da Silva, Prefácio ao livro Os Condenados: “O aluno de romance Oswald de Andrade”, in ANDRADE, Op. Cit., 1970, pp. 9-10.
[7] Talvez pseudônimo de Moacyr Chagas, jornalista conceituado na época. BRITO, Idem, p. 11.
[8] Apud Brito, Idem, Ibidem.
[9] THÉRENTY, M.E., VALLAINT, Alain (dir.). Presse et plumes – journalisme et littérature au XIXe siècle. Paris : Nouveau Monde éditions, 2004.
[10] COSTA, Cristina. Pena de aluguel – escritores jornalistas no Brasil (1904-2004). São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 92.
[11] Para um resumo das críticas, ver Brito, Op. Cit., p. 18.
[12] PINTO, Maria Inês Machado Borges. Urbes industrializada: o modernismo e a pauliceia como ícone da brasilidade. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, nº 42, 2001, p. 440.
[13] HUMPHREYS, Richard. Futurismo. São Paulo: Cosac & Naify edições, 2001.
[14] Cujo texto antecessor fora publicado no jornal Correio da Manhã em 18 de março de 1924. PRADO, Paulo. Prefácio à Poesia Pau-Brasil, Edição fac-similar, Paris: Sans Pareil, 1925, p. 10.
[15] Annateresa Fabris observa como desde o Impressionismo a reflexão conceitual se sobrepõe à forma, processo que só amadurece com Marcel Duchamp: “É pensando na arte como um processo de autoanálise e no impressionismo como uma exploração de possibilidades pictóricas muito além da verossimilhança que tal antecedência pode ser postulada. Este processo de autoidentificação, ainda tímido e ambíguo, nos dizeres de Joseph Kosuth, é questionado por Duchamp, que mostra a necessidade de se construir ‘uma outra língua’ para a arte moderna.”, FABRIS, Annateresa, “Modernidade e Vanguarda: o caso brasileiro” In FABRIS, A. (org.), Modernidade e modernismo no Brasil. 2a ed., Porto Alegre, RS: Zouk, 2010, p. 11.
[16] Idem, p. 21.
[17] Idem, p. 23.
[18] CHIARELLI, Tadeu. “Entre Almeida Jr. E Picasso” In: FABRIS, A. (org.), Modernidade e modernismo no Brasil. 2a ed., Porto Alegre, RS: Zouk, 2010, p. 55.
[19] Antiga Academia Imperial de Belas Artes.
[20] Idem, Ibidem.
[21] Idem, Ibidem.
[22] MACHADO, António de Alcântara. Pathé-Baby, São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo, edição fac-similar, 1982 [1926] e Brás, Bixiga e Barra Funda – notícias de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/ Arquivo do Estado, edição fac-similar, 1982 [1927].
[23] GUASTINI, Mário (Stiunirio Gama). Crítica ao livro de Antônio de Alcântara Machado in MACHADO, 1982, Op. Cit., p. 89.
[24] ANDRADE, Mário de (1927 [1982]). Crítica ao livro de Antônio de Alcântara Machado. Brás, Bixiga e Barra Funda – notícias de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/ Arquivo do Estado, edição fac-similar, p. 105.
[25] ANDRADE, O. Os Condenados, Op. Cit, p. 205.
[26] Idem, ibidem.
[27] Ver: RUBIÃO JR., José Alvares (1895). Relatório da Secretaria de Justiça apresentado ao Presidente de Estado pelo Secretário Interino dos Negócios da Justiça de São Paulo em 31/12/1894 . São Paulo: Tipografia
a vapor Espíndola. Siqueira & C. In: GUIMARÃES, Valéria. Notícias diversas: suicídios por amor, leituras contagiosas e cultura popular em São Paulo dos anos dez. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2013.
[28] HARRISON, Charles. O primitivo e o puro. São Paulo: Cosac & Naify edições, 1998.
[29] Foi fundado em 1884 por José Maria Lisboa (ex-gerente de A Província de S. Paulo antecessor do Estado de S. Paulo) e Américo de Campos (Sodré 1999, p. 228). Segundo Affonso A. de Freitas, o Diário Popular, era um órgão republicano e era tido como “o mais popular de todos os periódicos da capital, principalmente entre as classes menos favorecidas” (Freitas 1915). O “velho Dipo”[29], como era conhecido, ficou em circulação por mais de cem anos. Manteve-se com uma apresentação sóbria durante as primeiras décadas do século XX, mesmo quando outros jornais já ousavam tanto na diagramação, quanto na linguagem. Tinha uma seção Noticiário com manchetes como Crime e Assassinato – Uma punhalada (DP, 29/01/1910) mas são temas sobre política, artes e espetáculos, notas oficiais, tudo sem muito critério, que dominam o jornal que não pode ser considerado sensacionalista.
[30] CHALMERS, Vera. Op. cit.
[31] Além de colunas literárias e coluna social, tem colunas satíricas, sendo que a revista pode ser considerada “irrevente” sem ultrapassar “o limite do decoro” (CHALMERS, Op. cit., 1976, p. 45). Nela, Oswald cria uma seção de cartas em português macarrônico “que imitam a fala dos imigrantes italianos” sob o pseudônimo de Annibale Scipione, que serão continuadas por Juó Banannere (João Bananeiro). As paródias ainda incluem a imitação dos “dialetos” caipira, dos imigrantes portugueses ou alemães. As simpatias anarquistas de Oswald já se faziam notórias, mas seu “socialismo era mais de sentimento e de ideias, não de ação” (CHALMERS, Op. cit., 1976, p. 49) como desta geração saída das arcadas de S. Francisco.
[32] Ainda que o manifesto tenha saído em italiano, foi publicado em Paris, ville-carrefour para onde convergiam as vanguardas.
[33] SCHWARTZ, Jorge. Prefácio. ANDRADE, Oswald e ALMEIDA, Guilherme. Mon Couer Balance/ Leur âme e ANDRADE, Oswald. Histoire de la Fille du Roi. São Paulo: Globo, 2003, p. 9.
[34] PRADO, Paulo. Prefácio à Poesia Pau-Brasil, Op. cit., p. 5.
[35] ANDRADE, O. “O Modernismo”, Op. cit.
[36] CENDRAS, Blaise. Etc…, Etc…(Um livro 100% brasileiro). São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976, p. 98.
[37] Antecipando a escrita de contraponto de Aldous Huxley ou diretrizes do Manifesto Surrealista, com seu Manifesto Pau-Brasil.
[38] SCHWARTZ, Op. cit, p. 9.
[39] Nova tentativa é feita em 1924 com La fille du Roi – Ballet Brésilien (cenários de Tarsila do Amaral e música de Villa-Lobos) feita com a intenção de ser encenada nos palcos da cidade-luz pelo líder dos Ballets Suédois, Rolf de Maré. Seguramente a intenção de Oswald tenha sido impactada pela passagem fulgurante de Nijinsky e os Ballets Russes pelo Rio de Janeiro em 1917, e em São Paulo (onde ele o recebera, segundo seu diário) que inspirara, por sua vez, Paul Claudel a escrever l’Homme et son désir “obra temática brasileira para ser dançada pelo próprio Nijinsky” (SCHWARTZ, Op. cit, p. 10) que estreara em Paris anos mais tarde “Mas sem o lendário bailarino russo, que já se encontrava doente”.
[40] No qual fica até 1922. Diário carioca muito tradicional, fundado pelo francês Pierre Plancher em 1827, abrigou nomes importantes da intelectualidade nacional. Embora sóbrio, foi o primeiro a adotar o folhetim. Não fez concessões ao fait divers apesar de ter colunas como Várias Notícias (1890) ou rubrica Variedades (1880, 1890), que se consolida como espaço do folhetim. Um ou outro caso era contado com mais detalhes, mas com linguagem sempre bem objetiva, descritiva, sem floreios. Na época em que Oswald torna-se seu redator, em 1916, este jornal permanece sem grandes modificações editoriais.
[41] ANDRADE, Oswald. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. São Paulo: Civilização Brasileira, 1974.
[42] Ver: HIME, Gisely. A hora e a vez do progresso: Cásper Líbero e o exercício do jornalismo nas páginas d’A Gazeta. Dissertacao de Mestrado. São Paulo: ECA, USP, 1997.
[43] A Gazeta, São Paulo, 12/11/1916.
[44] A Gazeta, 16/05/1918.
[45] A Gazeta, 12/10/1916.
[46] A Gazeta, 15/01/1920.
[47] CHALMERS, Op. Cit., p. 18.
[48] Ela é que o inspira a escrever Mon Cœur Balance. Ver: “Cronologia” In: ANDRADE, Oswald. Serafim Ponte-Grande. Com dois estudos de Saul Borges Carneiro e Haroldo de Campos, p. 217
[49] AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Ed. 34, Edusp, 2003, p. 76. Ver em especial a nota 19.