Por ALEXANDRE DE FREITAS BARBOSA*
Introdução do autor ao livro recém-lançado
À maneira de crônicas, contos e novelas
A primeira coisa que pensamos quando nos pomos a escrever um livro é o título. À medida que vamos labutando e a coisa vai assumindo forma, o título se adapta. Mas o título também dá o tom que queremos imprimir à obra. Neste caso, como o livro é uma reunião de textos de vários tipos escritos em diferentes momentos, mal sabendo que um dia fariam companhia entre si, o título cumpre um papel especial. Serve como solda a conferir-lhes sentido e unidade.
Por isso, cada palavra do título tem uma razão para estar ali. Vamos lá então. Comecemos pelo subtítulo. Por que “reflexões”? Porque a maioria dos artigos foi escrita no calor da hora, para participar do debate ou para lançar hipóteses a serem aprofundadas adiante, de modo a adquirirem maior envergadura. As reflexões remetem, portanto, a algo provisório. Mas o que na vida fica e o que é provisório? Quem decide? Ou melhor, o que seria do que vem depois se as reflexões não lhe preparassem o terreno? Em certos casos, pode ocorrer que as reflexões valham por si mesmas. Permitem organizar as ideias e não nos deixam afundar no caos cotidiano.
Mas que reflexões são estas? A maioria dos textos do livro discute economia e política. Talvez seja mais preciso dizer que versam sobre “economia política”, que significa mais do que a junção de dois substantivos. É um dos casos em que a soma de dois mais dois dá cinco. Porque não se trata de soma, mas de interação, subvertendo assim as leis da aritmética.
A economia política pertence a uma tradição que vem de Smith, passa por Marx, e no século XX abre vários caminhos com as contribuições de Keynes e Schumpeter, Celso Furtado e Albert Hirschman, e tantos outros. Trata-se de pensar a sociedade a partir da economia, e vice-versa, conferindo relevo às tensões que se manifestam nos planos da política e da ideologia. Quis o destino da minha prática intelectual que eu estivesse desde o início filiado a essa tradição.
Já o título traz à cena o sujeito que produz as reflexões, revelando o seu lugar e as suas convicções. Pois não existe pensamento neutro. No caso específico, o professor universitário que escreveu o presente livro é um espécime extemporâneo. Isso fica patente no “nacionalista” e no “reformista”.
O nacionalismo parece coisa do passado e revela o diálogo do autor com os pensadores brasileiros e latino-americanos que escreveram entre os anos 1940 e 1970, no intuito de atualizar a sua perspectiva. Ser nacionalista no Brasil do século XXI significa o quê? Essa pergunta vale mais do que qualquer possível resposta. Revela uma resistência em abrir mão de um substantivo cujo sentido pode e deve ser ressignificado na nossa contemporaneidade.
Já o “reformista” parece bem atual. Mas aqui a tradição a que me vinculo é a da esquerda, seduzida pelo debate entre reforma ou revolução, cuja origem remonta ao século XIX. Ou, mais próximo de nós, remete ao debate acerca da necessidade de reformas de base, ou estruturais, como requisitos para ancorar o desenvolvimento econômico na sociedade, na política e no território nacional. O objetivo era assegurar, ao Brasil dos anos 1950 e 1960, uma economia dotada de centros de decisão minimamente autônomos e uma sociedade mais justa e menos desigual. No Brasil de qualquer período, isso é quase uma revolução.
Portanto, nada a ver com as reformas de base ao avesso, propugnadas pelos economistas liberais e ortodoxos, alheios a qualquer interpretação de como funciona o capitalismo no Brasil. Recorrem a um desfile ininterrupto de reformas – trabalhista, previdenciária, administrativa, tributária, do Estado – que num passe de mágica inaugurariam a quimera de uma economia “moderna” e “competitiva”. Não partem do real, mas enchem a boca de frases feitas tiradas dos manuais estrangeiros, não aplicados sequer onde foram escritos. Inexiste a noção de processo, que exige a compreensão do passado para forjar alternativas de futuro. Vivem num eterno presente ostentando as suas fantasias de autômatos colonizados.
“Periferia do sistema”? Sim, porque o sistema se chama capitalismo, não à maneira de um monolito abstrato e demoníaco a ser sacrificado no altar da revolução generalizada de todos contra uns poucos, mas como uma totalidade concreta que precisa ser destrinchada nas suas diversas manifestações no espaço.
Escrevo, portanto, da periferia deste sistema, procurando flagrar a sua totalidade cambiante e a sua manifestação particular em um território específico, onde se movimenta uma sociedade capitalista e desigual e a história sempre se refaz de maneira peculiar. Pregando-nos suas peças ou quem sabe à espreita de novas potencialidades utópicas e dialéticas.
Faço aqui uma confissão. Já nos acréscimos do segundo tempo realizei uma inversão, com o objetivo de reforçar o sujeito que fala, a partir de seu lugar e visão de mundo, que aparecem em primeiro plano, jogando a temática abordada para o subtítulo. Não que o sujeito seja mais importante do que aquilo que diz, mas para frisar que o dito sempre pressupõe uma posição na sociedade.
Mas e esta introdução algo insólita: “à maneira de crônicas, contos e novelas”? Será que a pretensão se sustenta? Caberá ao leitor e à leitora dizê-lo.
Forneço abaixo o meu ensaio de justificativa. Primeiro, trata-se de uma brincadeira. Mas como todo chiste, tem o seu quê de sério. Informo apenas que antes de embarcar nesse jogo de palavras, consultei Fernando Paixão, professor de literatura brasileira no IEB. Uma das disciplinas que o dileto amigo, além de poeta, ministra é justamente “A arte do conto e da crônica no Brasil”. Pus-me a assistir às suas aulas para ver se fazia algum sentido. Revelo inclusive que, depois de lhe comunicar o meu intuito, meu querido amigo se mostrou reticente quanto à minha empreitada. Portanto, ele não tem culpa de nada.
Conforme depreendi dos seus ensinamentos, o conto é uma forma literária breve em que tudo converge para uma ideia central, que se resolve quando do seu desfecho. Trata-se de estabelecer uma trama, que apenas se sustenta se o narrador cuidadoso atuar como operador central da sua dinâmica interna. O princípio da economia textual é um elemento característico do conto, pautado pela tensão e pelo suspense.
Já a crônica é uma forma mais despretensiosa, onde avulta o elemento subjetivo e cotidiano do cronista, guiado por um acontecimento singular – por mais fortuito que seja – na sua ânsia de comunicação com os leitores da imprensa escrita, ao menos no contexto do século XX. O olhar do cronista predomina na trama, que não precisa de suspense e tampouco exige uma história. O roteiro assume a feição de uma conversa, daí o seu tom informal, de quem estabelece uma relação de cumplicidade com o mundo ao seu redor. É isso que confere a essa forma breve a sua função sociocultural.
Em linhas gerais, foi isso que eu extraí da crônica e do conto como gêneros literários a partir das aulas com Fernando Paixão. Alguém poderá dizer que a única semelhança com as crônicas e os contos aqui organizados seja o fato de o seu autor – um professor de história econômica e economia política, além de nacionalista reformista escrevendo da periferia do sistema – ser um literato frustrado.
É bem possível. Mas ainda assim julgo apropriado usar essas formas breves para classificar os artigos que vêm em seguida. Eu também ministro cursos de graduação e de pós, realizo pesquisas e participo de seminários em Caruaru, Xangai, La Paz e Nova York. Porém, estou cansado do convívio com tantos heróis acadêmicos que ostentam seus Lattes e Google scholars e participam de redes internacionais de pesquisa onde o Brasil aparece como mais um case. Sou um intelectual, almejo mudar o mundo e a nação, seja ela o que for, pois este é o meu espaço de atuação.
Conheço as minhas limitações, mas não entrego os pontos. Escrever artigos para intervenção no debate público é constitutivo do meu trabalho, e não me importa se ganho ou não para isso, como já ouvi dizerem por aí. Procuro compreender os dilemas do Brasil contemporâneo e o faço com entusiasmo e sentido de militância.
Aproveito para dizer que todos os artigos agrupados nestes dois grandes grupos – crônicas e contos – foram publicados em jornais, revistas, sites, revistas acadêmicas ou livros.
As crônicas foram escritas num período que cobre quase vinte anos e se encontram organizadas em ordem cronológica. Todas elas tratam de situar um episódio singular, por meio do qual forneço uma interpretação mais ou menos livre, voltada para um público mais amplo de não economistas. Procurei revelar camadas ocultas de certos fenômenos com o intuito de sacudir agentes sociais e políticos para além da universidade. Elas possuem uma lógica mais argumentativa e cumprem o papel de realizar uma crítica política sobre temas da vida nacional e internacional que por vezes parecem distantes do cotidiano dos leitores. Se as crônicas têm algum valor, esse reside na relação de tensão com o contexto histórico em que foram escritas.
O que me move é o desejo de compartilhar ideias sobre o Brasil e o mundo da forma mais direta possível, prendendo a atenção do público. Neste sentido, o uso da retórica e do linguajar coloquial são recursos para travar uma relação de cumplicidade com quem lê os artigos, não importando se são muitos ou poucos. Um leitor ou uma leitora já basta, por mais que trabalhemos hipoteticamente com uma comunidade imaginária de leitores.
Não estão aqui publicados todos os artigos curtos escritos para a imprensa na categoria de crônicas durante o período coberto, de 2004 a 2021. Fiz uma seleção criteriosa. Nestes artigos, julgo ter logrado articular a minha visão do momento com a história em fluxo, independentemente do desenlace posterior dos eventos.
Os temas abordados cobrem um grande arco em que o Brasil figura no centro da cena, seja por meio da dinâmica social, das relações complexas entre Estado e economia, da sua posição no sistema internacional em transformação, das tensões políticas conjunturais analisadas a partir do seu conteúdo de classe, dos conceitos manejados pelos intelectuais e pela mídia com forte viés ideológico. Aqui vale um lembrete: a ideologia nunca é o problema, ao menos quando explicitada e confrontada com a realidade que se pretende transformar.
Está presente também a preocupação de resgatar certas coordenadas do processo histórico para investigar as estruturas econômicas e sociais resistentes à mudança, ou que a ela se amoldam de maneira adaptativa. Sem deixar de lado uma perspectiva de transformação estrutural a partir da ação de determinados setores da sociedade, posicionados à esquerda do espectro político ou potencialmente mobilizados no sentido de um projeto nacional de desenvolvimento no longo prazo.
Tal resgate não me exime de fazer uma autocrítica da esquerda justamente por me colocar como um “cronista” de esquerda. Que escreve a partir dela e para além dela, e que se pergunta o que é ser de esquerda nos tempos que correm.
Ao compilar estas crônicas, algumas mudanças no escriba se tornaram perceptíveis, não apenas de estilo e idade, pois era preciso aprofundar algumas temáticas e interpretações para flagrar o movimento da sociedade brasileira no período pós-golpe de 2016. O quadro histórico sofreu uma ruptura, exigindo do analista um olhar mais apurado, buscando mesmo certo distanciamento da cena, para não se contaminar pelo sentimento de horror em face do contexto político. Nos momentos de crise, não adianta lançar impropérios, pois para superar o real, precisamos compreendê-lo: enfim, por que chegamos a este ponto?
Dei-me conta também de que as 36 crônicas compõem um pensamento razoavelmente coerente. Afinal, chega um momento da vida em que nos percebemos formadores de quadros, e quem sabe fonte de inspiração para os que vêm depois construírem reflexões ousadas para além das caixinhas disciplinares.
Outras mudanças também podem ser observadas ao longo dos últimos vinte anos, e que afetaram tanto o cronista político quanto a imprensa brasileira em geral. Vale notar que o último artigo publicado na grande imprensa escrita data de 2014, momento a partir do qual os jornalões partem para a aposta arriscada de desestabilizar o governo Dilma e, depois, apoiar de maneira mais ou menos explícita o golpe. A partir de então, existem duas alternativas para um economista de esquerda que almeja publicar um artigo na grande imprensa: ou ele deve ser um colunista selecionado para fornecer a “credencial” de falsa pluralidade; ou o seu artigo, na melhor das hipóteses, é publicado em data ingrata depois de uma espera de mais de mês.
Como nenhuma destas alternativas me satisfazia, de 2015 em diante, todos os artigos sem exceção foram publicados em veículos da imprensa alternativa, a grande maioria na modalidade online, algo que acabei me acostumando depois de certa relutância. Isso porque escrever para a imprensa sempre exerceu uma espécie de fascínio para o jovem “socializado” pela leitura dos jornalistas e escritores do período pré-1964, quando a crônica literária e também a política atingiu seu auge no Brasil.
Se não tive a experiência das redações, com o tique-taque das máquinas de escrever e o ar enfumaçado, logo cedo me deparei com a experiência de ter que escrever, por ofício, textos curtos e diretos, na maior parte das vezes como ghost-writer, para entidades do movimento sindical, ONGs, consultorias e poder público na condição de assessor técnico. Era movido pela ilusão de que o que eu escrevia poderia interferir nos destinos da nação. Ilusão? Talvez. Muito provavelmente a crença na figura do intelectual público e do jornalista engajado, figuras que se retiravam da cena histórica.
Quanto aos contos, apresento aqui quatro artigos de maior envergadura em que hipóteses são levantadas e depois verificadas a partir de uma perspectiva globalizante, no intento de capturar o drama histórico a partir dos cenários contrastantes. Trato de investigar dilemas e contradições e apontar determinado sentido da ação sobre um aspecto do real, mas sem perder de vista outros condicionantes.
Dois destes textos foram escritos em parceria com colegas. Alguns contêm gráficos de fácil leitura e citações bibliográficas que auxiliam no esforço de situar e transcender o objeto de análise. Referem-se aos governos Lula e Dilma, traçando tendências macroestruturais e colocando o Brasil em perspectiva global e comparada.
Aqui, se o formato acadêmico predomina, por vezes tornando a leitura mais monótona, existe um foco temático e a aposta na maior profundidade analítica. Tal como no conto, apesar de a forma não ser literária, existe a enunciação de um conflito, sem a pretensão de sua resolução. Para além das múltiplas tensões e perspectivas que a problemática dissecada suscita, o personagem coletivo pode quem sabe encontrar uma luz no fim do túnel.
As duas novelas destacam-se por sua filiação ao tempo histórico em ritmo acelerado. O objetivo é compor uma trama com suas várias nuances, já que a narrativa é mais importante do que o desfecho. Ela deve permitir a apreensão de uma experiência. Reuni aqui os dois textos que mais gosto de ter escrito e jamais publicados na sua íntegra.
A primeira novela conta a história de como Rômulo Almeida e Jesus Soares Pereira pensaram e criaram a Petrobras no segundo governo Vargas. A narrativa se concentra no momento de concepção da empresa e na longa negociação do projeto de lei no Congresso. Rememora uma história que precisa ser conhecida num momento em que a empresa corre o risco de completa descaracterização, perdendo a sua razão de ser.
A segunda novela fornece um amplo e detalhado panorama sobre as várias concepções acerca do “setor informal”. Relata como uma contribuição teórica inovadora, realizada a partir da realidade concreta do mundo do trabalho nos países da periferia, se transforma num conceito genérico e anódino que serve ao gosto de qualquer freguês, geralmente trajando um figurino importado.
À exceção das novelas, inéditas e reescritas para integrarem esse livro, todos os demais textos estão publicados na sua íntegra, com pequenas edições que não alteram o essencial. Mesmo quando havia mudado a maneira de pensar – o que me deixou tentado a reescrever determinadas passagens –, preferi deixar que as ideias mantivessem a pátina do tempo sem a qual não teriam visto a luz do mundo. Aproveito para agradecer à revisora Cláudia Rajão que corrigiu o texto com afinco e profissionalismo, adequando-o ao sistema ortográfico vigente.
Dos 42 artigos aqui coligidos, seis foram escritos em parceria com colegas, que autorizaram a sua publicação em forma de livro. Caso estes textos sejam citados, peço gentilmente que sejam mencionados os textos com todos os seus autores, tal como o livro do qual eles fazem parte.
Confesso que foi um prazer e uma diversão escrever esta introdução. Se ao leitor e à leitora a analogia com as formas literárias não agrada, peço que encare esta coletânea de textos curtos, não tão curtos e mais longos como a minha humilde contribuição para se pensar o Brasil com ousadia, militância e uma pitada de humor. Que afinal de contas não faz mal a ninguém.
*Alexandre de Freitas Barbosa é professor de economia no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Autor, entre outros livros, de O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida: projeto, interpretação e utopia (Alameda).
Referência
Alexandre de Freitas Barbosa. Um nacionalista reformista na periferia do sistema: reflexões de economia política. Belo Horizonte, Fino Traço /IEB-USP, 2021, 408 págs.
Disponível para download completo em:
https://www.finotracoeditora.com.br/livros/000663/9788580544480/um-nacionalista-reformista-na-periferia-do-sistema-reflexoes-de-economia-politica.html