Por LUIZ ROBERTO ALVES*
O Estadão e sua crítica puída, repetitiva e preconceituosa
A linguagem nos recepciona no nascimento, circula na totalidade de nossas relações de mundo e palavra, cria fundamentos para a inteligibilidade da vida complexa e nos acomoda no silêncio da vida já cansada. Nem na morte perde sentidos, pois cria memória do que realmente importa. Esse dom forjado na especificidade do sapiens, com o devido respeito à linguagem de todos os agentes da vida natural, construiu pensamentos enriquecidos de modo a conhecer, categorizar, transcender, definir, julgar, criar. Fez-se cultura.
As culturas humanas em circulação no processo de comunicação das civilizações fazem conhecer o tempo-espaço e suas distinções inteligentes e refinadas. Embora possa vir a estagnar, é natural nesse dom discursivo e criador a contínua curiosidade indutora de ciência e arte, de ética e estética. E fundamental é que esse dom sapiente forjou competências para compreender totalidades dinâmicas, como os modos de organização das organizações e instituições em sua historicidade e seus espaços de ação. Crescem por aí as ciências e tantos outros saberes.
Repita-se: é possível estagnar, fazer da linguagem um pântano sem saídas em que podem submergir não somente os pronunciadores da palavra quanto seus receptores mais caridosos ou incautos. Tanto pela complexidade do viver e da nomenclatura do viver, como ensina o sábio Edgar Morin quanto pela dinâmica dos aprendizados nos confrontos da história, a palavra pública deveria existir como procura, pesquisa, revelações de fenômenos e descoberta de interrelações ainda pouco conhecidas.
É isso que não existe nos editoriais do grande jornal O Estado de São Paulo quando trata de Lula e do PT. E o terreno pantanoso que cria para si mesmo e para muitos de seus leitores ao tratar do tema obsessivo quase sugere que não mais se leia a receita escriturada a partir do título ou do primeiro período oracional. À guisa de relembrança, ou de paranoia acerca dos males do chamado lulopetismo, o que produz é o contrário de qualquer criação científica ou estética. É Nonada. Especialmente por ser um diário com brilhantes especialistas em distintos campos do fazer social e larga história, tais editoriais se tornam o cantinho débil do discurso no contexto da criação jornalística, uma espécie de valhacouto em que se homiziam ressentimentos e preguiça analítica. Não é justo ou inteligente considerar que o pior governante do planeta, em todos os sentidos, por desgraça agora no poder federal, seja plenamente poupado em face dos males do PT e do Lula para a democracia brasileira. Mas no acúmulo discursivo repetitivo e pantanoso pode chegar lá nos próximos meses. A ver.
O último editorial, de 23 de janeiro de 2022 cheira a papeis, ou papiros, jamais cuidados pelo arejamento, pela curiosidade, pelo desejo de pensar. E lá vai repeteco. De tal forma se avoluma o vício reprodutivo que de repente não existe mais um Lula ou um PT nos textos, nos éditos, pois o seu grau quase zero de escritura criativa involucra as personagens obsessoras no recôndito do próprio emissor. O Lula e o PT se revelam uma face necrosada do escrevinhador. De fato, para milhões de pessoas desta terra bela, diversa, desigual e injusta, tais personagens já entraram no mundo dos sonhos, delírios e vontades que não mais articula comunicações. Talvez se mantenha na cartilha de Sérgio Moro com vista garantir a condição difícil de tertius do processo eleitoral deste ano.
Parece também que esses vastos grupos e indivíduos simpáticos ao PT e Lula, ou curiosos, ou aficionados são irracionais, gente que não pensa, que não confronta diariamente a dinâmica complexa do viver e que se encontra apalermada e abestalhada diante dos males reiterados pela enfadonha escritura.
Parecendo, pois, que o Estadão não mudará e alguns candidatos carentes de programa de governança o acompanharão, carece-se de dialogar e argumentar diante do povo brasileiro pensado por Darcy Ribeiro, mesclado, algumas vezes guerreiro, encharcado de culturas ininteligíveis pelas elites econômico-culturais e francamente dedicado ao trabalho e à garantia da vida, que só não faz muito mais porque o modo de organização da sociedade, com base na colônia, no império e nos sonhos desenvolvimentistas liberais privilegia, pragmaticamente, o abismo entre classes, desatina direitos, afrouxa sentidos históricos de cidadania, oprime desejos de mudança e corta contínua e seletivamente o direito fundamental de participar com liberdade responsável.
Este colunista tem clara preferência aos documentos do Partido dos Trabalhadores criados antes da Carta aos Brasileiros e sabe que foram tais documentos os grandes motivadores dos núcleos de base, dos grupos de trabalho, da paciência no colocar lado a lado intelectuais, trabalhadores do eito e das montagens, da chegada de jovens em processo de discernimento político, muitas vezes incompreendidos, da presença de pessoas de fé e de esperançamento no país, comunidades oriundas do fazer científico, da educação, das culturas populares, do ambientalismo, dos direitos humanos e do confronto necessário entre a sociedade pérfida, máquina de miséria, fome e repressão cultural e a construção de uma sociedade que efetivamente simbolize e represente sua grandeza territorial, sua diversidade étnico-cultural e de gênero, seus agrupamentos distintivos, suas dignas formas de trabalho na plenitude do território e sua responsabilidade ecoambiental diante do mundo, agora urgentíssima.
Certamente o editorial do Estadão não deve se dirigir a petistas e simpatizantes, que não estão representados na sigla PT do editorial, corruptela da anti-democracia. Estão representados, sim, na complexidade partidária assumida em tempos sombrios, nos textos que ajudaram a escrever, no preenchimento comunitário de lajes, nas críticas que sempre souberam fazer às autoridades do partido, nas assembleias em que tomaram decisões participativas, nos bons projetos de governos locais, estaduais e federal e no direito de continuar a criticar os erros, equívocos e tergiversações da agremiação partidária, que não está sozinha nesses fatos e misteres. Com certeza, não existiu nenhum outro partido republicano capaz de se construir de modo tão complexo, difícil, trabalhado a cada passo e educativo. Entenda-se educativo o processo de confrontos, que não parou ou morreu em alguns anos de poder sobre o estado brasileiro, ainda que corra o risco de estagnação na onda de seus próprios erros. Onde está, pois, a sigla representativa de gente só obediente, só seguidora dos “quadros partidários” ou somente simplória e massa de manobra, como supõem os editoriais do importante jornal?
É obvio que a figura linguística que dá causa à sigla escriturada continuamente nos editoriais deseja precisamente estigmatizar e desmoralizar, tornar simplória uma gente orgulhosa do seu pensamento e de suas decisões, gente que já volta às ruas e praças e que está presente em novos movimentos, especialmente no trabalho de redenção educacional e de garantia da vida na biosfera terrestre. Ora, essa gente jamais evaporou. Ou será que editoriais de baixo grau de curiosidade, pesquisa e análise vão mudar a cabeça de pessoas que estão a exigir a condição de cidadania num país que está longe disso para as maiorias? Discursos planos e insossos nunca revertem posições de vidas determinadas a mudar injustiças sociais encalacradas e defendidas por tais discursos. E reconheça-se que a média dessa determinação de indivíduos, grupos e multidões costuma estar sempre à frente de direções partidárias e não o contrário, como julga a vã escrituração editorial.
Ainda mais: aqueles documentos construídos por pessoas comuns, curtidos nos erros gramaticais e, por isso mesmo, úteis como valor de aprendizado linguístico e político, num processo difícil de inteligibilidade e legibilidade da palavra política, eles continuam na memória e no discurso familiar e comunitário após os governos e o poder. E no tempo dos governos, em que se exerceu o direito de executar políticas e desenvolver projetos e programas, eles foram representados por um segundo escalão de profissionais de ministérios que deu seu sangue, o melhor de sua inteligência e de suas competências para o cumprimento das ideias, desejos, acordos, decisões coletivas. E o fizeram buscando harmonia com os funcionários de carreira. Isso em todas as políticas, planos e programas. Evidentemente, não sem confrontos. Para Paulo Freire, o confronto no mundo e na vida é fator central do aprendizado e faz superar nosso inacabamento pela educação, irmã da cultura humana.
Ora, a renitente sigla e o homem Lula dos editoriais do Estadão botaram tudo isso a perder? Ou foram ela e ele agentes que também tiveram de aprender e sofrer nas condições brasileiras de fazer política, gente e partido inacabados em sua natureza e parte de um complexo de movimentos populares em busca de valores e propósitos? Provavelmente, a boa representação partidária, o apoio a Lula e ao PT que espanta e enfurece tais editoriais reside nesse aprendizado comum, que não acabou, pois nunca acaba. Transforma-se.
Quanto aos decantados problemas de corrupção – por desgraça o tema central da história brasileira – essa democracia que pudemos construir, embora frágil e às vezes cambaleante, tem instrumentos jurídicos que precisam ser levados a sério, o que, aliás, não ocorreu desde primeiro de janeiro de 2019 e o inominável não foi enxotado do poder. Mesmo assim, nem de longe cabe dizer que seus 57.797.847 votos derivam do abestalhamento popular, pois o povo não pode ser tutelado por discursos carentes de pesquisa científica de fundo.
O discurso editorial favorece a aventura de Moro, seus acólitos e o sistema de justiça possível do Brasil. Porventura o pensamento jurídico débil, a volúpia de poder de Moro, seus desejos e instintos mais obscuros e seus acordos empresariais é que determinariam o diapasão da justiça brasileira?
Os diferentes escaninhos e plataformas do poder jurídico têm decidido – sobre Lula, membros do Partido e o próprio PT – de modo distinto ao que exigiria o editorialista do Estadão e isso o enfurece no interior do discurso pantanoso. Estranho para tal nível intelectual das redações. Nós, da classe dos educadores, que sistematicamente temos comido o pão que o diabo amassou nesta república, nesta democracia, nem por isso fechamos os olhos aos fenômenos, aos fatos dinâmicos ou às coisas que devem ser pesadas, comparadas, organizadas, analisadas e julgadas no tempo concreto em que se vive. Por acaso tivemos apoio no poder popular da época para derrubar dos palácios paulistas os quase inomináveis governadores que afirmavam para todo mundo ouvir que nossas colegas professoras tinham pouco dinheiro porque eram mal casadas? Florestan ensinou que interações sociais também são confrontos e não podem ser medidos somente por vitórias ou pela submissão do outro, da outra. Há muito mais coisa entre o céu e a terra.
Este colunista pesquisou em instituições universitárias italianas na primeira década do século e leu e se entusiasmou com a ação denominada mani pulite, mãos limpas, notadamente com os juízes que chegaram ao sacrifício. Viu, também, o desnorteio que se deu nos confrontos empresariais, muitas vezes mafiosos. Chegou a acreditar que poderíamos fazer algo melhor no Brasil, mas no próprio campo do direito e da justiça muitas mãos sequer estavam lavadas. O corpo judiciário de uma nação, pensado como totalidade a ser escrutinada, pode ser a linguagem que mais chega ao grau zero de transparência, visto que possui um discurso histórico legitimado pelo peso das doutrinas e das nuances e trilhas que, afinal, ficam ocultas das maiorias das populações. Nossos grandes escritores, quer do Realismo, quer do Modernismo, entenderam isso muito bem.
A urdidura jurídica pode ser vil. E visto que uma análise de totalidade institucional não deve descuidar do seu sentido estrutural, a vileza de parte compromete o todo. No entanto, há marchas e contramarchas no pensar jurídico e não se pode impor uma ordem unida no tratamento dos fenômenos. Nessa dinâmica esteve Lula, preso e apoiado por muita gente da população que intuiu e de fato pensou diferentemente de Moro e alguns lugares do poder judiciário. Também não se creia que todo mundo neste país acredita que Sergio Moro e sua gente tenham estraçalhado o capital empresarial do país, constituído de significativo grupo parasita de todos os governos, que exige toda a sorte de subsídios para ganhar dinheiro e oferecer alguns empregos. De fato, a relação capital-trabalho no Brasil chegou ao fundo do poço mais fundo. E inverteu todos os direitos. É também isso que um governo digno terá de enfrentar e dar novas soluções. Se não ocorrer é porque somos incapazes de aprendizado político. O editorialista não deve gostar desta premissa.
Por que tais editoriais não estudam a complexa ação da pessoa que se inscreve num partido para empreender uma luta? E caberia ainda estudar sucessivamente o conjunto mais complexo do que se dá nele, sem chance, pois, de resumir a ação de uma pessoa pública e um partido num pedacinho de papel movido a ressentimento e pobreza analítica.
Certamente, nenhuma liderança deve se orgulhar do seu poder, de que decorreria a própria falsidade. Muito menos imaginar-se o dono da goiabada. Tais fatos vão além do que dizem os editoriais e, de fato, são da essência do que é são em política, do que não se corrompeu. No entanto, não se pode negar o sentido maior da representação que o partido e a pessoa obtêm em razão de suas mensagens e práticas, pensamento e ação. É evidente que a história original do migrante, operário, dirigente sindical e construtor da própria redemocratização, depois presidente Lula, tenha sido o motor desse longo domínio partidário e da força de seus argumentos e propostas. A memória humana se conecta sempre ao que importa, ao que é vital num tempo histórico experimentado e que continua a fluir, produzindo a representação e as eleições de valores realizados na vida. Ora, os governos de Lula e Dilma tanto não comprometeram a estrutura democrática como criaram confrontos objetivos que produziram resultados de grande importância na relação entre as maiorias sofridas e seus direitos cívicos e humanos.
A memória e a historicidade continuam, a despeito de os editoriais aqui pensados tentarem determinar que a única memória cabível teria de ser a dos males cometidos por Lula e pelo PT. Mas não é assim que pensam milhões e esses milhões precisam ser respeitados e compreendidos. Ademais, o problema da autocrítica partidária no Brasil poderia ser resultado de amplo consenso e feita regularmente, como a educação avalia interna e externamente os estudantes e a escola. Ou como sugere a ciência, que reconheçamos os erros de nossa instrumentação e de nossos métodos. Tais valores já compõem uma ética universal, aclamada e desejada, a despeito de pouco seguida.
O que é do campo da justiça é sua competência, ainda que de pés-de-barro. Lula tem sido julgado nela, como ela é ou pode ser. O campo advocatício que esteve a seu lado fez seu trabalho de modo a alterar procedimentos anteriores. Cumpriu seu desiderato. Lula também é julgado no seio do povo, pois é uma pessoa profundamente pública. Qual outro julgamento querem os editoriais do antigo e influente diário? Seu próprio julgamento, representação de seus ressentimentos históricos, da condução das coisas que não batem com seus propósitos de instituição empresarial e mediática de poder na sociedade?
Ora, no mínimo isso não lhe cabe, nem é do seu direito, exceto quando esse pensar editorial já nada significa senão um local linguisticamente empobrecido que reflete os rincões da contradição entre povo e poder mediador. Tais editoriais, ademais, nada mais têm de mediadores, porque não cumprem a tarefa básico do escrever publicamente, ou da natureza da linguagem bafejada de ciência: compulsar dados, analisar sua complexidade, estabelecer códigos analíticos, fazer o estudo e apresentar, equilibradamente, a verdade. Possível, mas verdade.
No livro I miei occhi hanno visto (Os meus olhos viram) de Agnes Heller, a pensadora húngara morta em 2019 narra a experiência de amizade, influência filosófica e bem-querer pessoal para com György Lukács, cujas obras nos foram fundamentais para o entendimento da literatura e da arte no Ocidente. Mas essa relação forte não impossibilitou a Heller a abertura de olhos diante da negativa de Lukács sobre toda a arte que fosse Modernista ou parecesse ser. O pensamento estético – quem sabe a inteligência criativa – teria estacionado em Proust, Joyce e Kafka. Além deles, ou depois deles, os outros não seriam de fato escritores. Pior: poucos meses antes de morrer, o extraordinário intelectual disse aos amigos: Sou uma existência falida (p. 68).
Entre nós, o também extraordinário Monteiro Lobato se ressente da aparentemente estranha obra de Anita Malfatti e, em 1917, joga sobre aquilo que viu exposto a pecha de paranoia ou mistificação, o que fez a jovem pintora sofrer por longo tempo. Felizmente, o difícil e intrincado tempo modernista, aqui e noutras partes do mundo, vigorou e deu seus frutos, abertos sempre à boa crítica. E melhor, capazes de engajar toda uma juventude inteligente em novos projetos, inclusive nas diversas searas da comunicação, da ciência e da educação.
Pena que Lukács não tenha acreditado na inteligência dos que chegam e conquistam alguma representação. Idem para Lobato, que, no entanto, tem grande crédito pela obra literária e política. Tanto ele quanto Lukács, que continuamos a ler e deles aprender, independem dos discursos ideológicos rasteiros e bipolares tão comuns na atualidade. Mas a lembrança de suas posições nos ensina e alerta.
Não sugiro qualquer conexão política entre as ilustrações oferecidas pelo texto de Heller e o partido e o político julgados pelos editoriais do jornal.
Trata-se, outra vez, das leituras possíveis da complexidade, às vezes simplificadas sem o devido juízo sobre a dinâmica histórica e os movimentos da inteligência criadora no mundo. Ou do respeito aos grupos, pessoas e multidões que constituem o povo e instituem seus projetos e vontades. Muito cedo, os editoriais do Estadão sobre Lula e o PT não passarão de piadas. O pensar publicizado precisa ganhar alguma transcendência para percorrer as etapas necessárias em direção à verdade sinceramente admitida.
E isso pode não ocorrer, mormente por opções ideológicas, na sucessão do nosso pensamento e da nossa escritura, o que provoca sofrimento e dilacera relações. Quando o editor pensa estar fazendo sucesso e expondo verdades, de fato está a enterrar sua inteligência de escritor e submergindo no pântano de suas reproduções obsessivas. A liberdade de editor poderia ou deveria considerar limites para não sugerir libertinagem da escritura eivada de poder.
Para aqueles e aquelas que têm responsabilidade social ampla e disseminada, como é o caso das mídias, convém nunca esquecer a curiosidade da pesquisa e da análise com um toque de humanidade diante do outro, da outra, de outrem, de algum modo componentes do “eu” no mundo.
Será que novamente a eleição que se aproxima será outra mixórdia? Não se aprende nesta latitude planetária? Talvez seja por isso que a educação, entendida como construção sensível e valorativa dos seres incompletos (não somente crianças!) jamais tenha sido prioridade brasileira, na qual os governos investissem ou devessem investir o próprio sentido de sua existência e razão de governar.
*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.