Crime ambiental no neoliberalismo

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GERSON ALMEIDA*

O empenho do governo Bolsonaro em destruir o meio ambiente em favor do setor econômico

As iniciativas do governo federal de desmonte generalizado dos órgãos de fiscalização e proteção do patrimônio nacional, e a ação cada vez mais desavergonhada das redes de exploração ilegal de todos os tipos, indicam uma forte correlação de colaboração.

Em razão desta colaboração entre o governo Bolsonaro e várias redes criminosas, que a mídia corporativa insiste em chamar de “empresários” é que devemos a aceleração da exploração dos recursos naturais, a invasão das áreas protegidas e das terras demarcadas para os povos indígenas e o desmatamento desenfreado da Amazônia.

Ainda na condição de candidato à presidência, Bolsonaro já anunciava que iria agir para desmontar os órgãos de fiscalização e controle, especialmente na área ambiental. Suas declarações tinham o objetivo explícito de construir uma aliança com os grupos de interesses espúrios, sempre à margem da legalidade. Todos eles perceberam a sua eleição como uma oportunidade de dar fim à barragem de proteção que, apesar de todas as dificuldades, representava o “Sistema Nacional de Proteção Ambiental” (SISNAMA), construído ao longo de muitos anos de lutas.

A pressa predadora é grande. Já nos primeiros dias de governo começaram as exonerações dos superintendentes estaduais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sendo que foi apenas uma questão de tempo a substituição em todas as 27 superintendências existentes; a Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas foi extinta e o Serviço Florestal Brasileiro foi transferido para o Ministério da Agricultura. Esses são apenas alguns exemplos de uma imensa lista de iniciativas meticulosamente pensadas para um desmonte geral.

O curioso é que para executar o enfraquecimento dos órgãos de controle e fiscalização ambiental, a gestão foi amplamente militarizada e a representação da sociedade civil nas instâncias de controle drasticamente diminuída. Segundo o Transparência Brasil, em outubro de 2020, eram 99 os militares em cargos comissionados nos órgãos responsáveis pelas políticas ambientais. Um único exemplo ilustra o trabalho em curso: Walter Mendes Magalhães Júnior, ex-comandante da conhecida e violenta ROTA, da polícia militar paulista, foi nomeado para a coordenador-geral de fiscalização do Ibama. Em inquérito realizado pela PF, pouco tempo depois da sua nomeação, é atribuído a ele – assim como a outros pares – a emissão de certidões que atestariam a regularidade das exportações de madeiras apreendidas por autoridades americanas e europeias, realizadas pela empresa Tradelink Madeiras Ltda.

Claramente, o projeto em curso é, a partir da gestão do Estado, agir fortemente contra as funções estatais de regulação da ação do mercado e atuar diligentemente para o benefício dos setores mais predadores do capital. O discurso que tenta dar legitimidade para a mais pura rapinagem é o da completa desregulamentação e a exigência de total liberdade às “forças do mercado”, eufemismo utilizado para mascarar a determinação dos governos neoliberais de transferir renda e patrimônio público para o controle privado.

Como todos tem a consciência de que este governo está assentado em bases frágeis e democraticamente ilegítimas, há uma ansiedade em não “perder tempo” e consumar o mais rápido tudo aquilo que for possível, criando situações de difícil reversão posterior. Há uma nítida determinação destes setores de que este governo pode passar, mas a sua obra destrutiva deve permanecer como uma situação de fato.

Deste projeto resultará uma nação ainda mais empobrecida, mas alguns se tornarão “empresários milionários”, que é, por exemplo, a forma quase reverente que a mídia corporativa está se referindo à Aparecido Naves Júnior, preso pela PF sob acusação de ter mandado incendiar dois helicópteros do Ibama, um crime típico das milícias mais poderosas da América Latina. O “empresário” ficou “milionário” com o garimpo ilegal nas terras Yanomami.

Diferente dos filmes da sessão da tarde, nos governos neoliberais como o de Bolsonaro, não há uma fronteira bem definida a separar os representantes do Estado, responsáveis por fazer cumprir as leis (os mocinhos), e os interesses daqueles interessados em burlá-las (os bandidos). O esmaecimento desta fronteira gerou na gestão ambiental brasileira autorizações para exportação de madeira sem licença, a defesa de licenciamento automático para o agronegócio, punições e constrangimentos sistemáticos aos servidores do Ibama por exercerem as suas obrigações de fiscalização.

Resta lembrar do caso emblemático do servidor Júlio Cezar Dutra Grillo, superintendente do Ibama em Minas Gerais, que “ousou” registrar que barragens como a de Brumadinho, caso não fossem diligentemente cuidadas poderiam ser um grave risco. Nas suas palavras “em uma negligência qualquer de quem está à frente de um sistema de gestão de risco, aquilo rompe”. Esta afirmação lhe custou a sua exoneração e a incúria redundou num dos maiores crimes ambientais da nossa história. O nome adequado é crime, pois como era possível prevenir e agir, o ocorrido não pode ser classificado como desastre.

O retrocesso nas políticas de proteção ambiental no país, cujo símbolo são os sucessivos recordes de desmatamento da Amazônia devem ser vistos como objetivos cumpridos por um governo que age ativamente contra a lei e deixa caminho livre para as ações predadoras. O governo Bolsonaro instituiu uma espécie de “estado de bem-estar” para os criminosos ambientais.

Mas isto não é um ponto fora da curva, por mais chocante que seja. Ao falar sobre a questão moral na atualidade, o sociólogo Bauman, chama a atenção sobre a sua inerente característica de “ambivalência”, e ela não seria moral sem uma escolha entre o bem e o mal” e é por esta razão que a moral precisa de uma base ética capaz de orientá-la. Ética, ainda segundo Bauman, seria “um código de leis que prescreve o comportamento ‘universalmente’ correto isto é, para todas as pessoas em todos os momentos”.

A lógica do neoliberalismo não comporta nenhum compromisso com a noção de “universalidade”, de um padrão comum que sejam ao menos idealmente aceito como necessário à todos. Ao compreender a “liberdade individual” de forma fundamentalista, todo o regramento da vida social passa a ser visto como limitação da liberdade do indivíduo – a guerra contra as vacinas e a exigência de passaporte vacinal demonstram bem isto. Desta forma, a racionalidade neoliberal não pode comportar a ideia de bem comum, de interesse coletivo.

A aceleração obscena da desigualdade demonstra este divórcio dos neoliberais com a noção de bem comum, que faz concentrar nas mãos de apenas 2.153 bilionários tenham uma riqueza equivalente à de 4,6 bilhões de pessoas, cerca de 60% da população mundial, conforme relatório da Oxfam, de janeiro de 2020.

Sendo assim, o empenho do governo Bolsonaro em desmontar os órgãos de regulação, controle e fiscalização não deve ser entendido como uma anomalia política. Os esforços em benefício do chamado “setor econômico” expressa uma lógica social e econômica mais ampla, que dissociou os “interesses de mercado” de qualquer vínculo com a noção de “interesse geral”, fundadora da modernidade. Os neoliberais, portanto, atuam como verdadeiros missionários da desigualdade e não perdem oportunidade de glorificar todo o tipo de abuso e privação como se desenvolvimento fossem.

Resta à consciência crítica rearticular escolhas morais à um padrão ético de sociedade que não normalize a exclusão, os preconceitos e a obscena desigualdade, o que passa por conceber o indivíduo e a sociedade como projetos não excludentes. Muitas coisas são necessárias para que isto aconteça e, entre elas, precisamos deixar de tratar as quadrilhas que incendeiam helicópteros à serviço da proteção dos bens naturais e das populações mais vulneráveis, com deferência, como “milionário” e, sim, como bandido que é.

*Gerson Almeida é mestre em sociologia pela UFRGS e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Gerson Almeida Yuri Martins-Fontes Anselm Jappe Lorenzo Vitral Ladislau Dowbor Michael Löwy José Micaelson Lacerda Morais Paulo Nogueira Batista Jr Leonardo Boff Everaldo de Oliveira Andrade Elias Jabbour Eugênio Trivinho Annateresa Fabris João Paulo Ayub Fonseca Dênis de Moraes Marilena Chauí Anderson Alves Esteves Remy José Fontana Fernando Nogueira da Costa Luiz Eduardo Soares André Singer Denilson Cordeiro Manchetômetro Henri Acselrad Alysson Leandro Mascaro Bruno Machado Paulo Fernandes Silveira Gabriel Cohn Otaviano Helene Paulo Sérgio Pinheiro Marcos Silva Antonino Infranca Francisco Fernandes Ladeira Tarso Genro Vinício Carrilho Martinez Luiz Bernardo Pericás Kátia Gerab Baggio Manuel Domingos Neto Maria Rita Kehl Eleonora Albano Sergio Amadeu da Silveira Rubens Pinto Lyra Mariarosaria Fabris Eleutério F. S. Prado Carla Teixeira Ricardo Musse Dennis Oliveira Matheus Silveira de Souza Marcelo Módolo João Lanari Bo Chico Alencar Slavoj Žižek Julian Rodrigues Heraldo Campos José Machado Moita Neto Flávio Aguiar Luiz Werneck Vianna Leonardo Avritzer Atilio A. Boron Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Renato Dagnino Caio Bugiato Walnice Nogueira Galvão André Márcio Neves Soares Ronaldo Tadeu de Souza Juarez Guimarães Luis Felipe Miguel Marjorie C. Marona João Carlos Loebens João Feres Júnior Salem Nasser Osvaldo Coggiola Luiz Roberto Alves Benicio Viero Schmidt Sandra Bitencourt Vladimir Safatle Leda Maria Paulani Liszt Vieira João Adolfo Hansen Jean Marc Von Der Weid José Luís Fiori Paulo Martins João Sette Whitaker Ferreira Francisco de Oliveira Barros Júnior Luiz Renato Martins Bernardo Ricupero Luiz Carlos Bresser-Pereira Gilberto Lopes Alexandre Aragão de Albuquerque Antonio Martins Igor Felippe Santos Fernão Pessoa Ramos Paulo Capel Narvai Francisco Pereira de Farias Daniel Afonso da Silva Bento Prado Jr. Priscila Figueiredo Flávio R. Kothe Ari Marcelo Solon Afrânio Catani Andrés del Río Daniel Costa Celso Favaretto João Carlos Salles Valerio Arcary Plínio de Arruda Sampaio Jr. Thomas Piketty José Dirceu Jorge Branco Armando Boito Daniel Brazil Lincoln Secco Ricardo Abramovay Eduardo Borges Antônio Sales Rios Neto Luiz Marques Marcelo Guimarães Lima Berenice Bento Ronald León Núñez Alexandre de Lima Castro Tranjan José Geraldo Couto Ricardo Antunes Marilia Pacheco Fiorillo Mário Maestri Alexandre de Freitas Barbosa Rafael R. Ioris Leonardo Sacramento Airton Paschoa Michel Goulart da Silva José Raimundo Trindade Andrew Korybko Gilberto Maringoni Chico Whitaker Marcos Aurélio da Silva Luís Fernando Vitagliano José Costa Júnior Bruno Fabricio Alcebino da Silva Milton Pinheiro Samuel Kilsztajn Michael Roberts Henry Burnett Ronald Rocha Luciano Nascimento Ricardo Fabbrini Lucas Fiaschetti Estevez Celso Frederico Claudio Katz Eliziário Andrade Marcus Ianoni Érico Andrade Rodrigo de Faria Jorge Luiz Souto Maior Carlos Tautz Tales Ab'Sáber Boaventura de Sousa Santos Vanderlei Tenório Fábio Konder Comparato Tadeu Valadares Eugênio Bucci Jean Pierre Chauvin

NOVAS PUBLICAÇÕES