O conflito na Ucrânia

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Por BINOY KAMPMARK*

O roteiro para a invasão já parece ter sido escrito, e não necessariamente pela caneta do líder russo

O presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, nunca teve muito tempo para a paz, tendo em vista que sua atenção para ela sempre foi consideravelmente menor que aquela que dedicou à guerra. Apesar de seu amor pelo conflito militar e seus supostos benefícios, acabou premiado com o Nobel da Paz, por seu papel na mediação do fim da guerra russo-japonesa. Mas para o velho Teddy, os pacifistas não eram mais que uns maricas, degenerados e até mesmo sexualmente duvidosos.

O inebriante da guerra é que ela tende a enlouquecer seus promotores, por mais equilibrados que afirmem ser. Em 21 de fevereiro, a ABC, a emissora pública australiana, parecia abraçar uma mensagem subliminar em sua programação, especialmente no que respeita à guerra. As referências padrão? A eclosão da Segunda Guerra Mundial; setembro de 1939; a pobre Polônia; e o ignorante primeiro-ministro do Reino Unido, Neville Chamberlain.

O cego, o idiota e o telespectador de reality shows podem ter perdido o fio da meada da programação, mas outros não. As forças russas estão posicionadas nas fronteiras da Ucrânia. Nos jornais da Austrália, Europa e Estados Unidos, fala-se mais de guerra do que de diplomacia. Aventa-se a perspectiva de muitas mortes e muitos sacos de cadáveres. Em vez de exibir documentários, declarações ou mensagens sobre como a guerra pode ser evitada, cedendo a palavra à diplomacia, a mensagem a favor do conflito tornou-se inexoravelmente clara.

Esta é talvez a característica mais visivelmente repugnante dessa onda. É um lembrete de que a guerra tem um poder de sedução, atua como um agente paralisante e entorpece a sensibilidade, enquanto desperta outros sentidos. O oposto nunca é tão inspirador porque é sempre construtivamente monótono: negociações, paz, evitar a morte e quebrar crânios. É melhor encorajar os poderes a destruir algumas pessoas, massacrar os moradores de uma ou duas aldeias e cantar sobre os males do inimigo. Acrescente-se alguns enfeites políticos: eles morreram em nome da democracia; foram mortos porque precisavam ser redimidos pela “ordem baseada em regras”.

A mensagem da guerra foi promovida com consistência inabalável quando foi a vez da invasão comprovadamente criminosa do Iraque em 2003 pelas forças lideradas pelos Estados Unidos. Estava inteiramente consoante à “ordem baseada em regras”, conforme defenderam o presidente George W. Bush, o primeiro-ministro britânico Tony Blair e o australiano John Howard. A guerra aconteceria, quaisquer que fossem as evidências da capacidade das armas de Saddam Hussein.

Tendo decidido que invadir o Iraque seria uma boa manchete, o império Murdoch de mídia passou a trabalhar para domesticar as mentes, incrementando viagra ao aventureirismo bélico. Do curral de jornais dirigido por Rupert Murdoch, apenas um dos 175 ― o Hobart Mercurynão apoiou a guerra. Essa movida seguramente rendeu dividendos no que se tratou de comover a opinião. Os resultados de uma pesquisa da Gallup International divulgados em 4 de fevereiro de 2003 revelaram que 68% dos australianos apoiariam a ação militar contra o Iraque. Dos australianos pesquisados, 89% esperavam que a guerra fosse iminente. Isso foi, pura e simplesmente, uma incitação ao conflito, o endurecimento de uma deliberação prévia.

Ainda que não seja a OTAN ou os Estados Unidos que estejam considerando uma invasão da Ucrânia, um país emaranhado à história e à influência russas, a linguagem da previsibilidade, da inevitabilidade da guerra, chegou para obscurecer decididamente o funcionamento da diplomacia. Em Londres, Washington e Canberra já é visível a disposição de que a guerra é inevitável.

Falando à CBS, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, estava convencido de que “temos visto que, com provocações criadas pelas forças russas ou separatistas no fim de semana, com operações de falsa bandeira”, já sugeriam um estado avançado de preparação para a invasão.

Em seu discurso na Conferência de Segurança de Munique, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, reconheceu não saber exatamente “o que o presidente [Vladimir] Putin pretende, mas os presságios são sombrios e é por isso que devemos permanecer fortes juntos”. Se a Rússia invadir ― prometeu Johnson ―, indivíduos russos serão sancionados, juntamente com “empresas de importância estratégica para o Estado russo”. Levantar capital na city de Londres seria praticamente impossível “e abriremos as bonecas matryoshka das empresas e outras entidades de propriedade russa, até encontrar os beneficiários finais”.

Os meios de comunicação ocidentais também estão colaborando, fazendo amplo uso de imagens de tanques e de pessoal em movimento fornecidas pelo próprio Ministério da Defesa russo. Mesmo as opiniões zombeteiras expressadas pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy sobre a “data da invasão” foram avalizadas como provas tangíveis de uma guerra iminente.

Como registrou o New Lines Magazine, “o Ocidente está fazendo um trabalho absolutamente eloquente de transmitir a realidade do poderio militar russo”, em favor do governo Putin. Em uma conversa com um dos autores da revista, o editor de um “tabloide de médio porte” britânico aventou que “essa coisa de invasão provavelmente é uma bobagem”. Mas não importa. “Boris precisa disso para se movimentar”.

As manchetes e títulos de vários jornais lembram muito tristemente 2003. “Podemos estar a apenas algumas horas da guerra na Europa”, bradou Mark Almond em 15 de fevereiro no Daily Mail. Muitas horas se passaram desde então, mas não há sinal de que o jornalista tenha sido responsabilizado por essa efusão histérica descarada.

O Scottish Sun estava ainda mais confiante, com sede de sangue, na sua edição de 13 de fevereiro, alardeando que teríamos “48 horas para a guerra”. A “blitz de bombardeios de Moscou pode acontecer na terça-feira, após o presidente dos Estados Unidos falar sobre o impasse”. Naquele mesmo dia, o Sunday Telegraph insistiu que a Rússia estava planejando um iminente “ataque de falsa bandeira para provocar a guerra”.

Em suma, o roteiro para a invasão já parece ter sido escrito, e não necessariamente pela caneta do líder russo. As peças estão todas no lugar: a suposição da invasão, a prometida implementação de sanções e limites na obtenção de financiamento, além de uma forte condenação. Uma febre tomou conta, e promete levar muita vida e sensibilidade.

*Binoy Kampmark é professor no Royal Melbourne Institute of Technology (RMIT).

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente no International Policy Digest.

 

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