Por ESTER GAMMARDELLA RIZZI*
Considerações sobre os antecedentes da Convenção Constitucional
É difícil encontrar uma narrativa consensual sobre a maioria dos pontos em discussão na Convenção Constitucional chilena. Limites da validade do acordo de 15 de novembro de 2019, quórum de 2/3 para aprovação do texto, quais direitos devem ou não entrar no texto final, Congresso unicameral ou bicameral. Tudo parece estar em discussão: desde os diagnósticos sobre a sociedade, sobre o sistema político e sobre todas as insatisfações que levaram ao desejo de mudança até as propostas sobre a forma de Estado que surgirá a partir da Convenção Constitucional.
Um dos poucos pontos consensuais nesta história recente parece ser o seguinte: a Convenção Constitucional instalada em julho de 2021 só existe porque existiu o estallido social de outubro e novembro de 2019.
Que há um nexo causal entre as duas coisas, ninguém discorda. Mas… há controvérsias sobre o significado da convocação da Convenção Constitucional para a sociedade chilena. Há quem defenda que a Convenção Constitucional foi a grande vitória obtida pelo estallido social. Há outros que identificam no “Acuerdo Por la Paz Social y la Nueva Constitución” do dia 15 de novembro de 2019 uma grande astúcia dos membros do sistema político tradicional para amortecer e interromper uma revolta social que poderia obter transformações sociais muito mais profundas se continuasse.
O que aconteceu exatamente em outubro de 2019? Não é muito fácil explicar. Não é fácil porque o que aconteceu parece ter sido, ao mesmo tempo, um movimento muito unido, apontando em um mesmo sentido em todo o território do Chile e, por outro lado, um caleidoscópio de pautas e reivindicações diversas. Há unidade e há pluralismo ao mesmo tempo. Parecido com a nova Constituição que está sendo elaborada.
“No son 30 pesos, son 30 años”
A gota d´água que levou as pessoas a se manifestarem no que ficou conhecida como zona zero (zona cero) – antiga Praça Itália, hoje Praça Dignidade, estação de metrô Baquedano – foi um aumento da passagem do metrô em outubro de 2019. Vou tentar elaborar uma narrativa aproximada do que li e ouvi até aqui. Mas… é importante registrar: a minha será mais uma entre as muitas narrativas daqueles dias tão intensos.
Em primeiro lugar, é importante dizer que a insatisfação social chilena vem de muito antes de outubro de 2019. Desde ao menos 2006, com a chamada “revolta dos pinguins”, estudantes, mulheres, aposentados, e outros grupos sociais não tão organizados foram às ruas para protestar. Os protestos foram de diferentes tamanhos e com diferentes impactos em suas pautas específicas. O fato objetivo é que a sociedade chilena parecia mobilizada em suas diversas pautas.
Em 1 de outubro de 2019, por meio da Resolução 42.470/2019, o governo do Presidente Piñera anunciou um aumento de 30 pesos nas tarifas de transporte público em Santiago, nos horários de pico (o equivalente a 20 centavos de Real). Desde o anúncio do aumento, alguns jovens passaram a ser vistos “saltando el torniquete”, ou pulando as catracas do metrô. A ação era uma forma de protesto político, organizada descentralizadamente. A semana do dia 14 de outubro teve início com esta ação política sendo praticada de forma mais intensa. Só na sexta-feira, porém, 18 de outubro de 2019, que a manifestação tomou maiores proporções. “No son 30 pesos, son 30 años” tornou-se um lema daqueles dias. Os 30 anos do lema coincidem com os então 39 anos de vigência da Constituição de 1980, fato que não parece ser mera coincidência. Centenas de jovens começaram a “saltar el torniquete” das estações de metrô.
Como reação, o governo chileno fechou no meio da tarde todas as estações de metrô, todo o sistema de transporte sobre trilhos da cidade. Considerando que este é um meio utilizado por aproximadamente 2,6 milhões de pessoas em dias úteis e considerando que a população de Santiago é de aproximadamente 6 milhões, é possível vislumbrar o que significou para o deslocamento na cidade esse fechamento completo.
Em meu período no Chile, realizei entrevistas longas com 21 pessoas (de mais de meia hora, consentidas e gravadas). Dois convencionales (membros eleitos da Convenção Constitucional); quatro assessores de convencionales; seis professores universitários; dois pesquisadores com trabalhos ligados à Convenção; três administradores ou empresários; dois militantes ligados a ONGs e/ou pautas específicas; um funcionário público e um garçom. O texto está todo no masculino para tornar a lista mais fácil, mas entrevistei mais ou menos o mesmo número de mulheres e homens. Além disso, essas ocupações dizem respeito ao momento da entrevista. As/os assessores e convencionales. por exemplo, são também professores e militantes de movimentos sociais e outras ocupações. Mas como os entrevistei como convencionales e assessores, preferi classificá-los assim.
Cesia Arredondo, administradora de uma livraria em Santiago, ofereceu-me um relato detalhado sobre os eventos de outubro e novembro de 2019 dos quais participou dia a dia. A entrevista aconteceu na zona cero, epicentro das manifestações, o que tornou todas as memórias e narrativas vívidas, em diálogo com os lugares. Ela afirma que uma parte dos manifestantes de 18 de outubro de 2019 podem ter sido mais ou menos involuntários. Milhares de trabalhadores saindo de seus trabalhos na sexta-feira fim de tarde. Milhares de trabalhadores sem metrô para se deslocar de volta para suas casas. Uma das principais avenidas de Santiago já tomada por uma manifestação crescente. Santiago é uma cidade plana, as pessoas começaram a se deslocar a pé. Há algo, porém, que estes elementos objetivos não explicam completamente. Seria possível esperar – chamam a atenção Cesia e também Sérgio Grez, professor universitário também entrevistado – que as pessoas ficassem contra o movimento dos jovens, se irritassem com o protesto dos “pula-catracas” que levou ao fechamento do metrô, logo em uma sexta-feira à noite.
Não foi o que aconteceu. Ao contrário, em vez de irritação e descontentamento com o protesto, a maior parte das pessoas achou que a manifestação política dos jovens que pularam as catracas era justa e que deveria ser apoiada. Aliás, havia tantos motivos para protestar que… talvez fosse o caso de ir também às ruas protestar. Assim, o fechamento das estações de metrô impulsionou muitas cidadãs e cidadãos para as ruas, no que se tornou um gigantesco protesto. Em algum momento da noite, dezenas de estações de metrô foram incendiadas. (Aqui um balanço dos danos descritos pelo próprio metrô de Santiago no dia 19 de outubro de 2019).
Não consegui chegar a uma conclusão sobre exatamente o que aconteceu com as estações de metrô naquela noite. Alguns jovens seguem presos hoje, mais de dois anos depois, acusados como responsáveis pelos incidentes e danos daquela noite, e também dos dias que seguiram. Vários, porém, já foram inocentados por faltas de provas de que estariam envolvidos nos incêndios. A polícia chilena – ou os carabineros, como são chamados – começaram desde logo uma ação repressiva violenta às manifestações políticas (aqui alguns vídeos). No dia seguinte, 19 de outubro de 2019, Piñera voltou atrás e revogou o aumento de 30 pesos no preço das passagens. Mas… não eram 30 pesos, eram 30 anos de políticas neoliberais organizadas também pela Constituição de 1980. Mesmo com a decisão governamental de manter as tarifas antigas para o transporte, tanto o final de semana como a semana seguinte seguiram com inúmeros protestos.
É interessante registrar algumas reações do sistema político aos eventos. Desde o dia 19 de outubro, sábado, instalou-se em algumas cidades o toque de queda, ou toque de recolher. Ninguém estava autorizado a sair ou estar nas ruas entre às 22h e às 7h em Santiago e outros centros urbanos, a medida se manteve nos dias que se seguiram. Em 20 de outubro de 2019, domingo, Piñera anunciou que o país estava em guerra e suspendeu as aulas da semana que estava por começar. No entanto, logo na segunda-feira, 21 de outubro, o General a cargo do Estado de Emergência no Chile, Javier Iturriaga, declarou “soy un hombre feliz, y la verdad es que no estoy en guerra con nadie“. Contrariava explicitamente, assim, a declaração do Presidente. O Exército não era mais um caminho de contenção da crise social. A repressão ficou mesmo a cargo da polícia, e seu saldo trágico foi o seguinte:
“Entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, para proteger o “modelo”, o governo do presidente Sebastián Piñera prendeu 22 mil pessoas, feriu quatro mil (sendo 282 crianças), torturou mil cidadãos (ou mais, pois este número diz respeito aos que tiveram coragem de denunciar), produziu traumas oculares em 460 chilenos, violentou sexualmente 183 vítimas e assassinou 27 vidas. Tudo isso em quatro meses, dentro de uma “democracia protegida”, blindada contra experimentos populares de tipo allendista.” (SALEM, Joana. A normalidade era o problema. Revista Rosa, 2021.
A violência usada contra os manifestantes parece ter aumentado o apoio da população às manifestações. Na segunda-feira seguinte, 21 de outubro, as ruas estavam cheias de manifestantes novamente. Em cidades de todo o território do Chile. E as manifestações foram ficando cada vez mais cheias, sempre com muita violência e repressão.
Parte da elite chilena começou a dizer “No lo vimos venir”. Afirmavam, assim, ser uma surpresa o enorme mal-estar social que se manifestava nas ruas. Uma frase da esposa do Presidente Piñera, dita em um áudio que foi vazado para a imprensa, ficou famosa. Afirmava parecer que o Chile parecia ter sofrido uma invasão alienígena. Ato contínuo, imagens de alienígenas passaram a ser usadas pelos manifestantes simbolizando o grau de desconhecimento e alienação de uma parte da sociedade chilena com as condições de vida em que vivia a maior parte da população.
O auge das manifestações ocorreu no dia 25 de outubro de 2019, a sexta-feira seguinte ao dia 18 de outubro. Um milhão de pessoas foram às ruas. Os protestos já não diziam respeito aos 30 pesos que já tinham sido revogados. Um mal-estar geral muito mais amplo e disperso estava sendo manifestado ali. Muitos de meus entrevistados falaram a palavra “enojo” ou “nojo, repulsa, repugnância” para descrever o sentimento que levou os chilenos às ruas naquele fim de 2019.
O sistema político e as desigualdades – outra palavra repetida em praticamente todas as minhas 21 entrevistas – geravam uma raiva misturada com repugnância. O sentimento era de rejeição, “destituinte” do que existia até ali. Contra o sistema. Contra os partidos políticos. Contra a lógica do Estado subsidiário, que se retira da vida social e deixa à iniciativa privada a responsabilidade por garantir, a depender da capacidade econômica, direitos tão ligados à dignidade humana: saúde, educação, aposentadoria, transporte, água… Era um basta que se transformava em manifestações de grandes proporções nas ruas de todo o país.
Mesmo todos os esforços repressivos não foram capazes de diminuir nem a frequência nem a quantidade de pessoas das manifestações daquele fim de outubro e início de novembro de 2019. Em 30 de outubro, Piñera teve que anunciar publicamente que não seria possível sediar a COP 25, Conferência do Clima da ONU, que estava prevista para acontecer no Chile em novembro.
Piñera estava enfraquecido, sem apoio da Forças Armadas. A crise política e social “caiu no colo” do Congresso Nacional Chileno, como descreveram também entrevistados. Alguém tinha que dar alguma resposta. O “Acuerdo Por la Paz Social y la Nueva Constitución” foi a saída encontrada para dar uma resposta institucional à imensa insatisfação que os manifestantes levavam para as ruas.
*Ester Gammardella Rizzi é professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP.
Publicado originalmente na revista Consultor Jurídico.
Para ler a primeira parte do artigo clique em https://aterraeredonda.com.br/a-constituinte-chilena/?doing_wp_cron=1645708864.5600080490112304687500