A posição chinesa

Imagem: Zhang Kaiyv
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ELIAS JABBOUR*

A posição chinesa à crise na Ucrânia, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso

Compreender a posição chinesa no recente conflito ucraniano passa por perceber ao menos dois fatos que marcam nossa época. O primeiro, relacionada à meteórica ascensão chinesa e o surgimento do que chamamos de uma “nova formação econômico-social”, centrada em uma imensa base produtiva e financeira públicas cujas lógicas de funcionamento escapam a qualquer teoria do desenvolvimento. O segundo acaba de ocorrer, mas que vem sendo desenhado desde o fim de 2021, quando a Rússia decidiu colocar seus próprios termos à mesa em relação ao destino da Ucrânia como última fronteira de expansão da OTAN.

A combinação entre os dois fatos/fenômenos nos apresenta uma dupla desmoralização do Ocidente: a Covid-19 expôs os limites do capitalismo financeirizado frente à força do socialismo chinês; e a atual cartada russa marca a desmoralização política e militar dos EUA e, consequentemente da OTAN. Estaríamos, assim, diante de condições objetivas ao surgimento de um nova Paz Vestfália – inclusive já proposta pelas chancelarias russa e chinesa. No documento apresentado pelos dois países, fica evidente uma proposta à opinião pública de “refundação” do sistema internacional criado pelos europeus há quatro séculos.

É no contexto desta carta que os chineses – pedindo cautela aos envolvidos e sugerindo distância aos EUA – se posicionam. Sem alardes, sem palavras de ordem. Apenas levando à reflexão do quão é inaceitável e sem lógica racional as ondas de expansão da Otan. Qual seria a reação da opinião pública internacional caso Rússia posicionasse mísseis e armas nucleares em direção à Washington, utilizando-se das fronteiras dos EUA com o México, Canadá ou reabrindo uma base militar em Cuba?

E a ação militar russa. Ficamos entre a estática e a dinâmica. A estática é a preferência dos analistas e jornalistas ocidentais. Em dinâmica, a posição chinesa é no mínimo certeira. “Acredito que a operação militar da Rússia é uma reação de Moscou à pressão dos países ocidentais sobre a Rússia por um longo tempo”, disse Yang Jin, pesquisador associado do Instituto de Rússia, Europa Oriental, e Estudos da Ásia Central sob a Academia Chinesa de Ciências Sociais, ao jornal chinês Global Times.

A chancelaria chinesa é ainda mais objetiva. Segundo sua porta-voz, “as preocupações legítimas de segurança da Rússia devem ser levadas a sério e tratadas”. Há relatos de que Putin considera que a melhor solução é que a Ucrânia se recuse a aderir à OTAN e permaneça neutra. A opinião convergente não diz respeito somente ao caso ucraniano, mas também às constantes ameaças à soberania nacional chinesa impostas pela presença militar ocidental.

A China de hoje não é mais aquele país que recebia capital estrangeiro e fazia engenharia reversa. Acabou o tempo do low profile. Na mesma proporção, os legítimos interesses chineses em matéria de segurança nacional têm sido violados pelos EUA. Taiwan continua se armando e sendo atiçada a declarar sua independência. Uma aliança militar foi formada por EUA, Austrália e Reino Unido para conter (sic) um tal de “expansionismo chinês”. Novamente a broma. É como se porta-aviões chineses estivessem passeando impunemente pelo golfo do México, mas ocorre o oposto. A China é constantemente provocada no estreito de Taiwan e no mar do sul da China.

Após a completa derrota e desmoralização dos EUA no Oriente Médio, e com a China ocupando rapidamente o espaço econômico aberto pelo lastro de destruição deixado pelo “ocidente”, restou ao atlantismo uma jogada arriscada e nada inteligente: unir a China e a Rússia em um jogo que nada tinha a ver com a conveniência ideológica pós-1949, cujas fissuras foram muito bem contra a URSS. O movimento hoje é oposto. Uma união eurásica está sendo imposta de fora para dentro dos territórios russo e chinês.

A posição chinesa, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso. Se a ascensão chinesa em si já era o grande fato de nosso tempo, junta-se a ela o xeque-mate de Putin sobre os EUA e a OTAN. Uma nova história começa no mundo. Talvez uma nova Vestfália.

*Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ari Marcelo Solon Francisco Pereira de Farias Bernardo Ricupero Michael Roberts Henri Acselrad José Machado Moita Neto Dênis de Moraes Henry Burnett Daniel Brazil Vinício Carrilho Martinez Ricardo Antunes Jorge Branco Leonardo Sacramento Matheus Silveira de Souza Vladimir Safatle Manuel Domingos Neto Afrânio Catani Atilio A. Boron Celso Frederico Luis Felipe Miguel Luiz Roberto Alves Marcos Aurélio da Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. Annateresa Fabris Denilson Cordeiro Daniel Afonso da Silva Armando Boito Bruno Machado José Geraldo Couto Rubens Pinto Lyra Eugênio Bucci José Raimundo Trindade Leda Maria Paulani Marjorie C. Marona Liszt Vieira Francisco de Oliveira Barros Júnior Leonardo Boff Renato Dagnino Anderson Alves Esteves Milton Pinheiro Flávio Aguiar Elias Jabbour Mário Maestri Tarso Genro Everaldo de Oliveira Andrade José Dirceu Chico Alencar Marcelo Guimarães Lima Mariarosaria Fabris Alysson Leandro Mascaro Benicio Viero Schmidt José Micaelson Lacerda Morais José Costa Júnior Francisco Fernandes Ladeira Rodrigo de Faria Jorge Luiz Souto Maior Celso Favaretto João Lanari Bo Lucas Fiaschetti Estevez Valerio Arcary João Sette Whitaker Ferreira Claudio Katz Leonardo Avritzer André Singer Berenice Bento Manchetômetro Walnice Nogueira Galvão Jean Marc Von Der Weid Heraldo Campos Alexandre de Lima Castro Tranjan Ricardo Fabbrini Eliziário Andrade Samuel Kilsztajn Luiz Werneck Vianna Paulo Martins Sandra Bitencourt Caio Bugiato Boaventura de Sousa Santos Otaviano Helene Fábio Konder Comparato Marcus Ianoni Eleonora Albano Antonino Infranca Priscila Figueiredo Fernando Nogueira da Costa Antonio Martins Gerson Almeida Luís Fernando Vitagliano Andrés del Río Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Bernardo Pericás Maria Rita Kehl Osvaldo Coggiola Érico Andrade João Carlos Loebens Alexandre Aragão de Albuquerque João Feres Júnior Ronald León Núñez André Márcio Neves Soares Bruno Fabricio Alcebino da Silva Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Alexandre de Freitas Barbosa Fernão Pessoa Ramos Bento Prado Jr. Thomas Piketty Kátia Gerab Baggio Carla Teixeira Gilberto Lopes Gabriel Cohn Slavoj Žižek Airton Paschoa João Carlos Salles Luiz Carlos Bresser-Pereira Salem Nasser Dennis Oliveira Michel Goulart da Silva Julian Rodrigues Marcos Silva Jean Pierre Chauvin Ricardo Abramovay Gilberto Maringoni Marilena Chauí Paulo Fernandes Silveira Anselm Jappe Marcelo Módolo Ronald Rocha Eleutério F. S. Prado Flávio R. Kothe Andrew Korybko Carlos Tautz Luiz Eduardo Soares Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Capel Narvai Lorenzo Vitral Igor Felippe Santos Michael Löwy José Luís Fiori Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Musse Tadeu Valadares Daniel Costa Lincoln Secco Tales Ab'Sáber Luiz Marques Rafael R. Ioris Yuri Martins-Fontes João Paulo Ayub Fonseca Chico Whitaker Eugênio Trivinho João Adolfo Hansen Eduardo Borges Vanderlei Tenório Remy José Fontana Antônio Sales Rios Neto Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Renato Martins Juarez Guimarães Luciano Nascimento Ladislau Dowbor Ronaldo Tadeu de Souza

NOVAS PUBLICAÇÕES