Por MARIAROSARIA FABRIS*
Considerações sobre o filme “Assassinato de um inocente”, de Mauro Bolognini.
No romance Petrolio (1992), que deixou incompleto e foi publicado póstumo, Pier Paolo Pasolini assim se referia ao início da década de 1970 em seu país: “O Oriente árabe, na realidade, parecia ser a Itália. Estávamos apenas no dia dezesseis ou dezessete de março, mas a primavera estava tão adiantada que já parecia pleno verão. […] Em Milão, é verdade, o tempo estava cinzento, apesar do calor […]. Mas lá, o “oriente” tinha outras formas: poucos dias antes, havia sido travada uma batalha entre os grupos extraparlamentares e a polícia (enquanto os fascistas tinham realizado tranquilamente seu comício, acredito, com Birindelli e Almirante[1]).
Os grupos extraparlamentares haviam organizado aquele que mais tarde seria considerado, de fato, o primeiro embate de “guerrilha urbana” na Itália: tudo o que o havia antecedido era casual e amadorístico. Os jovens de Lotta Continua[2], tecnicamente, estavam armados e organizados quase como um pequeno exército etc. Milão exibia ainda as marcas daquele confronto; e a fumaça das bombas incendiárias e de gás lacrimogêneo parecia não ter-se todavia dissipado.[3] Depois, veio a notícia da morte de Feltrinelli: a imagem da torre de transmissão, aos pés da qual Feltrinelli morreu, devorava qualquer outra imagem real que o curso da vida começava logo a oferecer como alternativa consolatória […]. E veio o comunicado tempestivo, assinado por um grupo de intelectuais, com a declaração de que ele havia sido assassinado pelos fascistas – ou antes, provavelmente por uma organização não italiana, isto é, a CIA – para criar um clima favorável à direita nas eleições iminentes.[4] […] Era a morte de Feltrinelli, portanto, que conferia à Itália um ar oriental, quase palestino, nos fatos, nas coisas, nos corpos, nos aspectos da vida, no ar[5]; mas, ao mesmo tempo, lançava sobre ela uma luz de enlouquecedora novidade”.
O quadro sócio-político descrito pelo narrador pasoliniano é o pano de fundo de filmes italianos rodados naquele período, dentre os quais Imputazione di omicidio per uno studente (Assassinato de um inocente), de Mauro Bolognini, e Sbatti il mostro in prima pagina (O monstro na primeira página), de Marco Bellocchio, ambos de 1972. Como já analisei a realização de Bellocchio no artigo “Aqueles poucos minutos em que a história adentrou a ficção” (publicado no site A Terra é Redonda em 30 de novembro de 2021), no presente texto vou focalizar o filme do diretor toscano.
Assassinato de um inocente pode ser considerada uma obra anômala na filmografia de Bolognini. Até então, o cineasta havia se destacado por ter dirigido sobretudo comédias – seja no início da carreira, seja nos anos 1960, quando o cinema italiano, para sobreviver, havia enveredado pelo filão dos filmes em episódios – e também por ter-se dedicado à transposição de obras literárias para as telas, principalmente a partir de sua colaboração com um jovem roteirista, Pier Paolo Pasolini. Além de anômalo, Assassinato de um inocente também não se encaixava bem em gêneros preestabelecidos. Era um poliziottesco ou integrava o cinema de engajamento político?
O poliziottesco, isto é, a vertente italiana do filme policial, surgiu “oficialmente” em 1972 com La polizia ringrazia (A polícia agradece), de Stefano Vanzina, mas seu protótipo pode ser considerado La polizia incrimina la legge assolve (A polícia incrimina… a lei absolve, 1973), de Enzo G. Castellari.[6] Embora se alinhe mais com ideais conservadores, o poliziesco all’italiana não deixou de se caracterizar por uma forte carga política, pela constante contestação do establishment. De fato, esse gênero que se destacou nas décadas de 1970 e 1980, se, de um lado, como afirma Davide Pulici, foi fruto de “uma maciça obra de transferência e adaptação do arsenal western aos contextos urbanos atuais”, de outro, segundo F.T., alimentou-se de “filmes de ação que provinham do outro lado do oceano, como The French connection (Operação França, 1971), de William Friedkin, ou Dirty Harry (Perseguidor implacável, 1971), de Don Siegel” e do caráter engajado de produções como Confessione di un commissario di polizia al Procuratore della Repubblica (Confissões de um comissário de polícia ao procurador da república, 1971), de Damiano Damiani, e Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto (Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, 1969), de Elio Petri.
Se a realização de Castellari representou o protótipo do poliziottesco, a de Petri pode ser considerada o marco zero do cinema político italiano, sendo um filme que “respondia à necessidade de deslocamento à esquerda da média burguesia italiana”, na opinião de Gian Piero Brunetta. Os dois gêneros espelhavam anseios daquela sociedade na passagem dos anos 1960 para a década seguinte, mas enveredavam por caminhos diferentes, pois, enquanto o primeiro acentuava “seu caráter de ação e representação da violência, tornando-se um gênero reacionário por excelência”, o segundo, “embora por um breve tempo, parecia ter todas as credenciais de uma visão progressista e democrática”, sempre nas palavras de Brunetta.
Segundo Angela Prudenzi e Elisa Resegotti, organizadoras de Cinema político italiano – anos 60 e 70 (2006), este gênero era integrado por diretores que “observaram a realidade italiana de um ponto de vista extremamente ético”, ou seja, “autores que, movidos por um profundo desejo de justiça – na maioria dos casos derivado de engajamento político pessoal e/ou coletivo –, marcaram profundamente, com suas obras, o panorama intelectual da Itália e produziram, ao mesmo tempo, grande impacto na cultura internacional”. Uma definição bastante vaga, pois poderia ser aplicada a boa parte da produção italiana do Neorrealismo em diante, assim como é impreciso o rol de cineastas por elas enumerados – Mario Monicelli, Dino Risi, Carlo Lizzani, Damiano Damiani, Francesco Rosi, Vittorio De Seta, Elio Petri, [Paolo] e Vittorio Taviani, Giuliano Montaldo, Francesco Maselli, Ettore Scola, Marco Bellocchio, Bernardo Bertolucci e Roberto Faenza –, pois muitos deles poderiam encaixar-se também em outras vertentes, como o Neorrealismo (embora em seus estertores), a comédia à italiana, a nova onda do cinema italiano ou o poliziottesco. E, de fato, as autoras, englobaram filmes produzidos entre 1960 e 1979, alargando de quase uma década o espectro do cinema político.
Mauro Bolognini não integra esta lista, mas as autoras, além dos catorze diretores depoentes, entrevistaram também Ugo Pirro, roteirista de muitos dos filmes do cinema engajado, dentre os quais os de Elio Petri, sua parceria mais importante dos anos a cavaleiro entre a década de 1960 e 1970. [7] E Ugo Pirro, junto com Ugo Liberatore, roteirizou o filme de 1972 do cineasta toscano. Embora desconsiderado como obra engajada, Assassinato de um inocente consta de Il vero poliziottesco, de Tania Di Massimantonio (2015), enquanto expoente daquelas realizações que contestaram a “grande família judicial”[8], representada tanto por magistrados quanto por policiais, na execução de uma justiça “distante, dilacerada, desviada ou postergada”.
E, de fato, com o tempo, a inclusão de Assassinato de um inocente no filão do cinema político veio se impondo, impulsionada também por sua recepção na França, onde foi lançado tardiamente: em DVD, em 2009, e, nos cinemas, em 2015. Embora alguns críticos – como muitos, no calor da hora – ainda torçam o nariz para esta realização de Bolognini, com o passar dos anos, o filme ganhou novas leituras ligadas principalmente à sua trama, cujo pano de fundo, os constantes confrontos que caracterizaram os conturbados anos de chumbo na Itália, foi esquadrinhado por Pirro e Liberatore com um olhar carregado de intenções políticas e sociológicas.
Durante um violento choque entre policiais e estudantes de arquitetura da Universidade de Roma que apoiam uma manifestação por moradias populares na Borgata Focene (subúrbio da capital italiana), cada um dos lados sofre uma baixa. A investigação, no entanto, dedica-se apenas a descobrir quem matou o agente da lei e a acusação recai sobre Massimo Trotti, quando, na verdade, o culpado é Fabio Sola, filho do juiz que será encarregado do caso. O jovem milita, sem que seus pais saibam disso, num grupo de extrema-esquerda, e, em nome desses ideais, chega a repassar a seus companheiros informações copiadas, na calada da noite, do dossiê sobre o caso, que seu pai havia levado para casa a fim de continuar a examinar os autos do processo.
Apesar de toda uma carreira dedicada a servir o sistema, Aldo Sola começa a questionar cada vez mais a sanha da polícia e do Procurador da Justiça em descobrirem um culpado a qualquer custo, enquanto sua consciência lhe pede para indagar não uma, mas as duas mortes. Então, resolve interessar-se pelos ideais dos jovens e dispõe-se a tentar entender o gesto do filho, quando Fabio, depois de ter admitido sua culpa e ter-lhe trazido o soco inglês com que havia atingido o policial, declara sua intenção de não se apresentar à justiça até que o culpado pela morte do estudante não for encontrado: “por que deveria entregar-me enquanto outro assassino está solto por aí protegido por todos vocês? Você precisa da polícia para que continue a fornecer-lhe culpados para condenar. Quero ver o que vai fazer agora que conhece a verdade. O dia em que souber que você ou outro prenderam o agente que matou meu companheiro, vou me entregar, só então. Os mortos são dois e dois devem ser os assassinos”.
Tocado pelas palavras e pela atitude do rapaz, o juiz joga no rio Tibre a única prova que poderia incriminá-lo, pois o diálogo lhe parece o melhor caminho, não só para reaproximar-se do amado filho, mas também para resolver a situação explosiva que o país está vivendo. De fato, havia se demitido de seu cargo com as seguintes palavras: “Nunca mais quero julgar alguém. De agora em diante, quero começar a entender. Quero entender por que tantos jovens estão contra nós. Por trás das ideias que nós recusamos, estão nossos filhos, suas certezas, suas hesitações, seus crimes muitas vezes. Quero encontrar uma explicação para cada um desses crimes, não uma sentença. Quero juntar-me a seus problemas. Eu não quero ficar sozinho”.
Embora Assassinato de um inocente seja uma obra de ficção, sua sequência inicial é impactante, na reconstrução quase documental do choque entre policiais e manifestantes, em que material de arquivo (em preto e branco) se alterna com cenas filmadas (em cores). Os manifestantes gritam slogans como “Lotta dura, senza paura” [Luta com rigor, sem temor], erguem seus punhos fechados, carregam paus e cartazes que pregam a ocupação de casas, de escolas, de fábricas, de bairros, da cidade. Durante o enfrentamento, um estudante é atingido fatalmente por um tiro, muitos são presos e quando um companheiro, também agredido pela polícia, encontra no chão um soco inglês, com este acaba matando sem querer um policial. É um longo encadeamento de imagens violentas, de mais de dois minutos e meio de duração, quase sem música (a qual começa a insinuar-se a partir da reação infausta do segundo estudante), que serve de disparador narrativo, pois é a partir dele que a trama propriamente dita começa a desenrolar-se[9].
A sequência, que introduz abruptamente o espectador no clima de então, talvez fosse dispensável na ocasião; porém essas imagens, ao serem vistas ou revistas posteriormente, conseguem transmitir a que ponto tinha chegado a tensão social na Itália. O filme foi rodado em fins de 1971[10], ano que marca a passagem da fase da contestação estudantil, iniciada em 1967, para o período da violência política, a qual vai recrudescendo até 1977, para atingir seu ápice em 16 de março de 1978 com o sequestro do líder democrata-cristão Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas. É quando se percebe que o país vai se encaminhando para uma progressiva guinada autoritária, a chamada “estratégia da tensão”, em que o cenário nacional é manipulado pelo poder, por meio de atos terroristas que apavoravam a população, para manter o status quo e conter o avanço do Partido Comunista Italiano nas eleições e das conquistas das lutas sociais de 1968-1969. Seus marcos cronológicos são 12 de dezembro de 1969 (explosão de uma bomba no Banco Nacional da Agricultura, na Praça Fontana de Milão, com um saldo de dezessete mortos e oitenta e oito feridos) e 2 de agosto de 1980 (atentado a bomba no saguão da estação ferroviária de Bolonha, no qual morreram oitenta e cinco pessoas e mais de duzentas ficaram feridas).
Embora o filme não nomeie diretamente nenhum grupo político e no local em que os estudantes se encontram haja referências a várias correntes – nas paredes, ao lado do símbolo da foice e do martelo, há escritas referentes a Potere operaio (Poder operário)[11], Luta Contínua, Il manifesto (O Manifesto)[12], cartazes como o de Morte accidentale di un anarchico (Morte acidental de um anarquista)[13] e retratos de Ernesto Che Guevara, Mao Tse-tung e Karl Marx –, os slogans gritados durante a manifestação não deixam dúvida de que se trata de um braço de Luta Contínua.
O embate entre forças da ordem e manifestantes e o posterior choque entre policiais e estudantes – depois do ataque de um grupo de fascistas à Faculdade de Arquitetura para sustar a divulgação de dados dos autos do processo publicados pelo jornal La causa del popolo [A causa do povo] – trazem à memória um fato similar. Trata-se da mítica batalha de Valle Giulia, travada aos pés da colina que sedia a Faculdade de Arquitetura, em 1º de março de 1968, a qual, segundo artigo de Giampaolo Bultrini e Mario Scialoja, com suas “duas horas e meia de ira e de sangue”, miraculosamente sem mortos apesar de dezenas de feridos, se tornou um dos símbolos da revolta estudantil.
Isso não impediu vozes dissonantes, mesmo à esquerda, como a de Pasolini que viu, na contestação dos jovens, “nada mais do que a última, planificada ‘moda’ de filhos de burgueses, completamente desprovida de qualquer real intenção de subversão da ordem constituída”, nas palavras de Gianpaolo Fissore. No poema dedicado ao acontecimento, “Il PCI ai giovani!! (Appunti in versi per una poesia in prosa seguiti da una ‘Apologia’)”, sem levar em conta que os universitários dos anos 1960 não eram mais só filhos da burguesia, pois muitos deles provinham da camada média ou de classes populares, Pasolini tomava o partido dos policiais, enquanto representantes do proletariado:
“Quando, ontem, em Valle Giulia, vocês trocaram socos com os policiais,
eu simpatizei com os policiais!
Porque os policiais são filhos de pobre.
Provêm das periferias, rurais ou urbanas, que sejam. […]
Têm vinte anos, sua idade, meus caros e minhas caras. […]
Os jovens policiais
que vocês por venerável vandalismo (de elevada tradição insurrecional)
de filhinhos de papai, espancaram,
pertencem à outra classe social.
Em Valle Giulia, ontem, teve-se assim uma amostra
de luta de classe: e vocês, amigos (embora do lado
da razão) eram os ricos,
enquanto os policiais (que estavam do lado
errado) eram os pobres. Bela vitória, então,
a de vocês! […]
Inebriados pela vitória sobre os rapazes
da polícia obrigados pela pobreza à servidão, […]
deixam de lado o único instrumento de fato perigoso
no combate contra seus pais:
ou seja, o comunismo. […]
Se querem o poder, apoderem-se, ao menos, do poder
de um Partido que ainda é de oposição […]
e que tem como objetivo teórico a destruição do Poder”. [14]
Por seu polêmico ataque ao movimento estudantil, o autor foi tachado de reacionário, apesar de não defender o sistema em nenhum trecho da obra[15]. Na opinião de Fissore: “A definitiva condenação da burguesia coincidia assim, paradoxalmente, com a definitiva condenação das forças a ela antagonistas: de fato, negar a identidade de uma correspondia a negar a identidade (e o papel histórico) das outras”.
Enquanto Pasolini teria negado uma identidade à burguesia e ao proletariado, na leitura de Fissore, embora em chave inversa, Bolognini faz o mesmo na sequência da morgue, quando coloca lado a lado os cadáveres do estudante e do policial, praticamente despidos de indícios que possam identificá-los como pertencentes a um grupo (o que se rebelou à ordem burguesa) ou a outro (o que reprimiu em nome dela), como se quisesse evidenciar que ambos são vítimas da violência de Estado, que os condenou a morrer tão jovens. E, se um dos delegados se encarniça contra os estudantes, xingando-os de covardes e drogados, o juiz repreende-o dizendo: “Para o senhor, nem a morte tornou iguais aqueles dois”. Uma igualdade que apagou as diferenças sociais e que, mesmo por um instante, arrancou do anonimato as duas vítimas, devolvendo-lhes uma identidade não de classe, mas de seres humanos.
Trazer um acontecimento fictício (a batalha campal da sequência de abertura) da mesma proporção de um fato real (a de Valle Giulia) para dentro de um microcosmo familiar é uma estratégia narrativa que visa envolver cada espectador individualmente num drama cujas repercussões sociais mais profundas, frequentemente, escapavam à compreensão da gente comum, só amedrontada pela violência daqueles anos. E as diferenças geracionais entre pai e filho, transformadas em embate ideológico, também são uma estratégia para tornar mais concreta a crítica ao sistema judiciário alinhado com o poder.
Além disso, sem essa passagem do geral para o particular, não teria sido possível entender a mudança no comportamento do pai, uma vez que este comportamento não se generaliza, representando antes um auspício de dias melhores; no entanto, os acontecimentos históricos posteriores sufocarão essa tênue esperança, uma vez que o ápice da violência na Itália ainda estava por vir. Porque – parece dizer o filme, ao tomar o partido dos jovens –, enquanto Fabio se mantém firme em suas convicções, não importa se certas ou erradas, caberá ao juiz, representante da geração dos pais, libertar-se de suas amarras e dar o primeiro passo desse longo caminho que poderá levar à abertura do diálogo com o filho e à reconciliação familiar e social.
E o jovem Sola enveredará por esse caminho de renovação das relações familiares e sociais, porque, se já havia se desvencilhado da chantagem dos laços afetivos, exercida principalmente pelo amor transbordante da mãe, ao admitir sua culpa ao pai, o que acarreta a soltura do outro estudante, começa a subtrair-se à chantagem dos laços ideológicos, exercida pelo grupo, que à confissão do verdadeiro culpado, a qual podia ser alardeada nas manchetes da imprensa burguesa, preferia o sacrifício de uma vítima inocente, pois isso servia à causa.
Num livro intitulado 1500 film da evitare: dalla A alla Z, le divertenti stroncature “al vetriolo” di un critico controcorrente, [1500 filmes a serem evitados: de A a Z, as divertidas críticas corrosivas de um crítico contracorrente], Massimo Bertarelli, ao arrolar Assassinato de um inocente, escreve: “Mauro Bolognini constrói um drama sociopolítico que pende (para a esquerda) mais do que a Torre de Pisa, segundo a regra férrea, não apenas cinematográfica, dos anos 1970. Os bons são os de esquerda, os maus são os de direita. Sempre e seja como for. E quem não é nem uma coisa nem outra? Ora essa, é mau ele também até que consiga demonstrar que é de esquerda”.
Dessa forma, o filme também se vê envolvido no embate entre forças progressistas e forças reacionárias, pois se Bertarelli o faz pender para a esquerda, outros autores não são da mesma opinião, enfatizando que o diretor não está em sua seara e sublinhando as intenções comerciais da obra. Para Heiko H. Caimi: “a tentativa de narrar a inquietude de uma época é atropelada pelos acontecimentos familiares, e não consegue ser afiado como outros filmes da época, perdendo pelo caminho o veio anarquizante que Pirro conseguiu criar junto com Petri. Os policiais são realmente odiosos, mas estamos a léguas de distância de Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, e o quadro de época é enfrentado por Bolognini com seu costumeiro esquematismo retórico”.
Outro crítico, anônimo, segue nesta mesma linha, ao afirmar, em site sobre o filme: “a reflexão crítica sobre o valor da justiça (operação escolhida, naqueles anos, por muitos autores: basta pensar em Elio Petri e Giuliano Montaldo) parece forçada e pretenciosa e o filme acaba por colapsar sobre si mesmo, resultando aproximativo e amorfo”.
Numa análise instigante, anterior à realização de Assassinato de um inocente e de O monstro na primeira página, Goffredo Bettini e Elena Miele já alertavam para as armadilhas que a indústria cinematográfica podia representar para obras de teor político: “Filmes que propõem aparentemente conteúdos interessantes, procurando entrar na esfera do chamado cinema engajado – os quais, na verdade, por meio de escolhas tradicionais ou nada engenhosas e que, por cima, se rendem ao cinema comercial –, participam integralmente do jogo produtivo e ideológico do poder, colocando-se, aliás, como falsa alternativa ao cinema espetacular e declaradamente burguês, mistificando, desse modo, fatos e homens, que pertencem à cultura e à ideologia revolucionárias”.
Se, de um lado, isso é verdade, principalmente se pensarmos que, naquele período, havia todo um cinema militante, empenhado em modificar as relações com o público – um público, em geral, já afinado com as ideias propostas por ele –, por outro, como fazer chegar às grandes massas os problemas daquela época? Será que Assassinato de um inocente ou O monstro na primeira página – o qual, apesar de denunciar o conluio imprensa-poder, também foi execrado pela esquerda e pela extrema-esquerda [15] – e os demais filmes da indústria cinematográfica italiana ditos engajados não levavam seus espectadores a refletirem?
Como assinalou Udo Rotenberg: “é falso [dizer] que o filme não assume uma atitude clara, só porque se abstém de declarações políticas. Ao contrário, estava apenas tentando subtrair-se às costumeiras suspeitas ideológicas, mas não fez nenhum segredo de sua postura de que a sociedade precisa mudar”.
Para a pergunta que fiz acima, não tenho uma resposta definitiva, mas comecei a colocar-me a questão diante da recepção que esta realização de 1972 de Bolognini teve em vários países, em anos mais recentes, quando passou a ser considerada uma obra de caráter político, por permitir recuperar o clima de contestação geral do período focalizado.
*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (Edusp).
Versão revista de artigo publicado em Anais do IX Seminário Nacional do Centro de Memória – UNICAMP e I Colóquio do Patrimônio Cultural, 2019.
Referências
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Notas
[1] Giorgio Almirante foi secretário e um dos fundadores do Movimento Sociale Italiano (Movimento Social Italiano – MSI), partido de direita herdeiro do ideário fascista. Nas eleições de 1972, o MSI fundiu-se com o Partito Democratico Italiano di Unità Monarchica (Partido Democrático Italiano de Unidade Monarquista), dando origem ao MSI-Destra Nazionale (MSI-Direita Nacional – MSI-DN). A nova coalizão consegui eleger 56 deputados (8,7% dos votos) e 26 senadores (9,2% dos votos), aproximando-se posteriormente dos grupos extraparlamentares de extrema-direita Avanguardia Nazionale (Vanguarda Nacional) e Ordine Nuovo (Nova Ordem). Um dos deputados eleitos foi o almirante Gino Birindelli, o qual, em seguida, se tornou presidente do MSI-DN.
[2] Integrado por grupos revolucionários da esquerda extraparlamentar, Lotta continua (Luta Contínua) surgiu na segunda metade de 1969, a partir da cisão do Movimento operai-studenti (Movimento operários-estudantes) de Turim, que, no primeiro semestre daquele ano, havia articulado as lutas na universidade e na FIAT.
[3] Referência aos graves distúrbios que sacudiram a cidade no dia 11 de março de 1972, quando forças da ordem e militantes extremistas se enfrentaram numa batalha campal.
[4] No dia 15 de março de 1972, o corpo de Giangiacomo Feltrinelli foi encontrado destroçado aos pés de uma torre de alta tensão nas imediações de Milão. A morte do ex-partisan e fundador da editora Feltrinelli foi causada pela explosão de uma carga de trotil, na noite anterior. Feltrinelli havia sido expulso do Partito Comunista Italiano (Partido Comunista Italiano – PCI) por ter lançado, em 1957, a primeira edição mundial do romance Doutor Jivago, de Boris Pasternak, cuja publicação havia sido proibida na União Soviética. Nos anos 1960, em viagens pela América Latina, tinha entrado em contato com Régis Debray e, anteriormente, com Fidel Castro, o qual lhe havia confiado O diário do Che na Bolívia, que Feltrinelli divulgará, assim como a foto do guerrilheiro tirada por Alberto Korda, que se tornará icônica. Depois de ter entrado na clandestinidade, em 1970, havia fundado um dos primeiros grupos armados de esquerda na Itália, o Gruppo d’Azione Partigiana (Grupo de Ação Partisan – GAP), para fazer frente a um provável golpe fascista. Embora expoentes de esquerda e de extrema-esquerda tenham defendido a hipótese de assassinato, acabou prevalecendo a tese de que sua morte aconteceu durante um ato de sabotagem, com o qual pretendia provocar um apagão na cidade para prejudicar o congresso do PCI, versão confirmada sete anos depois por integrantes das Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas – BR). Em Petrolio, o personagem Carlo opinava que o editor “tinha se matado sozinho, ao bancar o guerrilheiro; que, se ele tivesse sido pobre, ou simplesmente um pequeno-burguês qualquer, teria acabado numa clínica, ou até mesmo num hospício, há alguns anos, e que, definitivamente, era um louco que teve o fim de um idiota; não havia desprezo, nessa sua interpretação, havia, aliás, certa compaixão – mas, decerto, não havia piedade”.
[5] Na década de 1970, a OLP – Organização de Libertação da Palestina (criada em 1964 com o objetivo de lutar pela independência de seu território) intensificou a resistência armada contra Israel com ações de guerrilha que atingiram também alvos civis.
[6] As raízes do gênero estariam em Svegliati e uccidi (Lutring acorda e mata, 1966) e Banditi a Milano (Bandidos de Milão, 1968), ambos de Carlo Lizzani e tendo a capital da Lombardia como cenário (cf. verbete da Wikipedia sobre “Film poliziottesco”). Na introdução de A nebulosa, tradução portuguesa de La nebbiosa (1959), Alberto Piccinini aventa uma hipótese sobre Milano nera [Milão negra], de Gian Rocco e Pino Serpa, extraído (com várias modificações) do roteiro acima citado de Pasolini. Segundo Piccinini, essa produção de 1963, pelo título, “antecipa com grande antecedência os ‘poliziotteschi’ dos anos 70”. A intepretação, no entanto, não se sustenta ao assistir ao filme, mesmo se num dos cartazes, um dos protagonistas é retratado, em primeiro plano, empunhando um revólver. Nesse caso, o adjetivo “nero” (“preto”) remete antes à locução “cronaca nera” (“crônica policial”), por focalizar uma noitada de um bando de jovens arruaceiros, cujo comportamento resvala na criminalidade, do que referir-se propriamente ao gênero policial.
[7] Depois do estrondoso êxito internacional de Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, a dupla Petri-Pirro emplacou outro grande sucesso, La classe operaia va in paradiso (A classe operária vai ao paraíso, 1971).
[8] Tais como o já citado Confissões de um comissário de polícia ao procurador da república; Processo per direttissima (1974), de Lucio De Caro; Corruzione al Palazzo di Giustizia (Corrupção no Palácio da Justiça, 1975), de Marcello Aliprandi; La polizia ha le mani legate (1975), de Luciano Ercoli.
[9] O mesmo impacto é causado pelos minutos iniciais da realização de Bellocchio, na qual cenas documentais filmadas por sua equipe (um comício no qual discursou um expoente do MSI; uma rua de Milão tomada pelas faixas dos partidos que disputavam as eleições; o enterro de Feltrinelli) se intercalam com material de arquivo sobre o fatídico dia 11 de março, antes de introduzir a trama propriamente dita.
[10] Seu lançamento foi em 4 de fevereiro de 1972.
[[1]1] Poder Operário foi um movimento de extrema-esquerda, ativo entre 1968 e 1973. Seus representantes mais famosos foram o professor universitário Antonio Negri e o escritor Nanni Balestrini.
[12] Expulsos do PCI, em fins de 1969, por criticarem a invasão da então Tchecoslováquia pela União Soviética, os integrantes de O Manifesto se organizam posteriormente em partido político, participando das eleições de 1972.
[13] Representada pela primeira vez em 5 de dezembro de 1970, a comédia de Dario Fo registrava a queda “involuntária” de Giuseppe Pinelli de uma janela da sede central da polícia de Milão, na noite de 15 de dezembro de 1969. Junto com Pietro Valpreda, outro anarquista, Pinelli havia sido acusado do atentado de Praça Fontana, embora o crime tenha sido perpetrado por forças reacionárias.
[14] O poema foi publicado originalmente no n. 10 da revista literária Nuovi argomenti (abr.-jun. 1968). Embora a obra tenha sido vertida para o nosso idioma – “O PCI para os jovens! (Apontamentos em verso para um poema em prosa, seguidos de uma ‘Apologia’)” – e publicada na edição portuguesa de Empirismo hereje (Lisboa: Assírio e Alvim, 1982, p. 122-129), tornei a traduzi-la por não concordar com a versão de Miguel Serras Pereira.
[15] Em Um ano depois (Un an après, 2015), Anne Wiazemsky registra a opinião de Jean-Luc Godard: “Para ele, Pasolini se tornara um traidor depois que ele tomara partido a favor dos policiais italianos, ‘filhos do proletariado’, contra os estudantes, ‘filhos abastados da burguesia’. Ao mesmo tempo, porém, continuava a admirá-lo”. A atriz foi intérprete de Teorema (Teorema, 1968) e Porcile (Pocilga, 1969), obras nas quais, como em “La sequenza del fiore di carta” (“A sequência da flor de papel”), que integra o longa-metragem Amore e rabbia (Amor e raiva, 1968), o cineasta também se posicionava contra a ideia de revolução dos jovens.
[16] Uma das críticas mais contundentes a essas realizações diz respeito à caracterização dos militantes. Em Assassinato de um inocente, embora os jovens não sejam demonizados, mesmo quando a prisão de um deles é a tática para acusar o Estado, a representação foi considerada vaga. Não podemos esquecer que, a não ser por uma ou outra produção fora do esquema do cinema industrial, a maioria dos filmes, como o de Bolognini, era realizada por equipes cujos membros pertenciam a uma ou duas gerações anteriores à dos personagens ficcionais, ou seja a pessoas que não tiveram uma vivência direta daqueles acontecimentos. Esse tipo de crítica afetou também O monstro na primeira página, cujos militantes de extrema-esquerda foram considerados figuras folclóricas e pouco críveis, apesar de Bellocchio ter integrado uma organização maoísta. Resumindo, para a crítica militante, o cinema político como era praticado pela indústria cinematográfica não existia. Esta questão foi abordada mais a fundo por mim em “Pela lente da ideologia”.